domingo, 18 de novembro de 2018

Versalhes

Trechos de Primeira Guerra Mundial (2003), de Michael Howard.


The Signing of Peace in the Hall of Mirrors, de William Orpen (1919)

O ACORDO

Os estadistas Aliados que se reuniram em Paris em janeiro de 1919 para estabelecer o acordo de paz estavam em uma situação muito diferente da de seus antecessores em Viena em 1814. Eles não tinham as mãos livres para remodelar o mundo de acordo com os princípios de ordem e justiça, nem de autodeterminação nacional, nem mesmo do tradicional equilíbrio de poderes. Tinha uma dívida com eleitorados ainda presos à febre da guerra, e cujas paixões e preconceitos eles não podiam ignorar. Em todo caso, o crescente caos na Europa central após a queda dos impérios russo, austríaco e dos Hohenzollern colocava em dúvida a existência de algum regime estável a leste do Reno com o qual a paz pudesse ser negociada.

ALEMANHA

A conferência girou em torno de um duelo tácito entre o presidente Wilson, que participou de forma imprudente, pessoalmente, e o primeiro-ministro francês, Georges Clemenceau. Ambos tinham prioridades diferentes. A de Wilson era estabelecer uma nova ordem mundial sob os auspícios de uma Liga das Nações, para cuja criação ele estava disposto a dedicar seus máximos esforços; só para ver depois que seu trabalho foi destruído quando o Congresso dos Estados Unidos se recusou a participar da referida Liga nos termos propostos por ele. A de Clemenceau, com o apoio incondicional de seus compatriotas e inicialmente de seus aliados britânicos, era reconstruir a Europa de tal maneira que a Alemanha nunca mais pudesse ameaçar sua estabilidade. A França, agora com uma população de quase quarenta milhões, enfrentava uma Alemanha de sessenta e cinco milhões de habitantes com poder industrial e um potencial muito maior do que a França jamais poderia ter. O contrapeso sobre o qual a França se baseara antes de 1914, o Império Russo, desaparecera, levando consigo centenas de bilhões de francos em investimentos. Portanto, na opinião da França, tudo deveria ser feito para enfraquecer a Alemanha. A leste, teriam que arrancar o máximo possível de território para construir novas nações, formando um cordon sanitaire sob influência francesa para proteger-se dos avanços do bolchevismo e para ocupar a posição da Rússia como instrumento de contenção do poder alemão. A oeste, não apenas teriam que restituir a Alsácia e a Lorena à França, com seus valiosos recursos minerais, mas também adicionar ao lote a bacia do Sarre, rica em carvão. Para lá da região da Renânia, os territórios alemães na margem esquerda do rio deveriam, se possível, ser desconectados da Alemanha e formar um estado autônomo ou um grupo de estados sob proteção francesa como defesa de sua fronteira. Os britânicos não aceitaram essa proposta, alegando que tal protetorado não seria nada mais que uma Alsácia-Lorena ao contrário, motivo para constantes atritos. Eles consentiram apenas com a desmilitarização da margem esquerda do Reno, e da direita até uma profundidade de 65 km, com uma presença militar Aliada até que o pagamento integral das reparações se tornasse efetivo. A posse das bacias de mineração do Sarre permaneceria nas mãos dos franceses, mas o território seria administrado pela Liga das Nações por quinze anos, ao final dos quais seu destino seria decidido por um plebiscito. Era um acordo razoável, que seria ratificado pelo Acordo de Locarno de 1924, e que não deveria provocar qualquer outra guerra.

As fronteiras orientais da Alemanha apresentavam um problema muito mais complicado. Um dos quatorze pontos de Wilson havia estipulado a restauração da independência da Polônia, que desde o final do século XVIII havia sido dividida entre a Alemanha, a Rússia e o Império Austríaco. O núcleo da nova Polônia era o grão-ducado de Varsóvia, etnicamente de predomínio polonês, mas reconhecido como parte do Império Russo desde 1814. Agora os russos não estavam em melhor posição para discutir a sua independência nem a das suas antigas províncias bálticas - Finlândia, Estônia, Letônia e Lituânia - do que estavam os austríacos para conservar seus territórios poloneses na Galícia. No entanto, as províncias polonesas da Alemanha - Silésia, Posnânia e Prússia ocidental - eram outra questão. Haviam sido habitadas por alemães durante gerações. Mas o pior de tudo era que fora prometido à nova Polônia um acesso ao mar, o que só poderia ser obtido cedendo a ela o vale do baixo Vístula, cuja população era mista, e o porto de Danzig, que era quase inteiramente alemão. Isso implicava separar a Alemanha da Prússia oriental, geralmente considerada como seu coração histórico. O acordo foi provavelmente o melhor que poderia ser alcançado sem a maciça "limpeza étnica" que ocorreria em 1945, mas os alemães nunca esconderam sua intenção de revogá-lo à menor oportunidade.

Além de aceitar a perda desses territórios, a Alemanha foi forçada a realizar um completo desarmamento, a ceder suas colônias no exterior e a pagar elevadas reparações a seus inimigos vitoriosos. Seu exército foi reduzido a 100.000 homens e privado de "armas ofensivas" como os tanques. Seu Estado-Maior, demonizado pela propaganda Aliada, foi dissolvido; sua força aérea, abolida; seus estaleiros limitavam-se à construção de navios com menos de 100.000 toneladas de deslocamento. Desta maneira, os vencedores argumentavam, "seria facilitado o começo de uma limitação geral de armamentos em todas as nações". Não foi assim, e a falha nesse assunto seria usada pelos alemães quando eles denunciaram essas restrições e começaram a se rearmar quinze anos depois.

A Alemanha perdeu automaticamente suas colônias, mas como os Aliados, sob a liderança de Wilson, haviam renunciado a adjudicar "anexações", as potências que as adquiriram (principalmente a Grã-Bretanha e seus domínios ultramarinos) fizeram-no como "mandatos", em nome da Liga das Nações Os Aliados também haviam renunciado às "indenizações" que os poderes vencidos costumavam pagar a seus conquistadores. Em vez disso, eles exigiram "reparações" pelos danos causados à população civil. Inicialmente, esse conceito deveria ser aplicado apenas para as populações das áreas ocupadas e devastadas da França e da Bélgica, mas os franceses e os britânicos estenderam-no imediatamente para cobrir não apenas os custos marginais, tais como juros sobre empréstimos e os custos gerais de reconstrução, mas também as pensões de soldados com deficiência e os órfãos e as viúvas da guerra: uma soma tão alta que não poderia sequer ser contabilizada. A conferência de paz repassou o assunto para uma Comissão de Reparações que teve que apresentar um relatório em 1921. Enquanto isso, os alemães tinham que se comprometer antecipadamente a aceitar as conclusões da Comissão e fazer um pagamento inicial de vinte milhões de marcos. Os Aliados manteriam suas forças militares no Reno para garantir o pagamento e reocupar o território alemão em caso de descumprimento.

As implicações de todas essas exigências seriam brilhantemente denunciadas por Maynard Keynes em sua filípica As Consequências Econômicas da Paz. No final, elas acabariam sendo modificadas, mas não antes que os alemães pudessem culpá-las por todos os desastres econômicos que os abateriam. No entanto, as alegadas justificativas para a imposição de reparações foram ainda mais inaceitáveis: a alegada responsabilidade dos alemães por terem sido os primeiros a iniciar a guerra. De sua parte, os alemães ainda acreditavam quase sem exceção que a guerra lhes havia sido imposta por seus inimigos, e que todos os seus sacrifícios nos últimos cinco anos tinham sido por uma causa nobre. Além disso, muitos sentiam que não haviam sido derrotados. Argumentavam que foram surrupiados da vitória que mereciam porque os Aliados trapacearam com os termos do armistício. Que foram "apunhalados pelas costas" por Reichs Feinde, socialistas e judeus, os quais aproveitaram as dificuldades do momento para tomar o poder. Mesmo para aqueles que não aceitaram o mito de uma Dolchstoss (facada nas costas), a legitimidade de qualquer governo alemão dependeria de sua capacidade de modificar as servidões impostas pelo tratado e, se possível, aboli-las. Este seria o grande êxito de Adolf Hitler, que lhe valeria o amplo apoio que obteve.

ÁUSTRIA-HUNGRIA

A dissolução da monarquia de Habsburgo deixou um legado igualmente amargo. A metade austríaca da monarquia perdeu, no norte, os checos, que se juntaram a seus primos eslovacos da Hungria em uma República Checoslovaca que abarcava, nos Sudetos em sua fronteira ocidental, uma preocupante minoria de alemães. No sul, [os austríacos] perderam os eslovenos, que com seus primos croatas da Hungria uniram seus destinos aos dos sérvios no desajeitadamente chamado "Reino dos Sérvios, Croatas e Eslovenos", mais tarde renomeado Iugoslávia (Eslávia do sul). Também perderam seus territórios italianos ao sul dos Alpes, incluindo Trieste, seu principal porto no mar Adriático. Mas as terras prometidas à Itália nas costas orientais do Adriático estavam agora nas mãos dos iugoslavos "libertos", que reivindicavam Trieste e seu território para o interior. O setor de língua alemã, que era tudo o que restou da Áustria, inicialmente tentou se juntar à nova república do norte da Alemanha, mas os aliados não consentiram. Assim, a Áustria permaneceu independente por mais vinte anos até 1938, quando um de seus antigos cidadãos, Adolf Hitler, realizou um Anschluss por aclamação popular universal. Os húngaros perderam não só os eslovacos no norte e os croatas no sul, mas também a província da Transilvânia no leste, que foi anexada à ampliada Romênia, sofrendo uma pequena e desagradável guerra civil no processo. O ditador de direita que emergiu de toda essa agitação, o almirante [Miklós] Horthy, recusou-se a admitir a validade da abdicação dos Habsburgos e declarou que ele governava apenas como regente em nome da dinastia. Ele continuou nessa posição até que foi derrubado perto do final da Segunda Guerra Mundial.

TURQUIA

Quanto aos turcos, de início eles foram tratados com a mesma dureza que os alemães. Não só perderam suas possessões na Península Arábica em favor de novos estados sob controle francês ou britânico - Síria, Líbano, Iraque, Arábia Saudita, Palestina e Transjordânia - mas também foram invadidos por forças italianas que reivindicavam Antália invocando o Tratado de Londres de 1915, e pelos gregos que reivindicavam a Trácia e regiões da Anatólia, especialmente Esmirna (Izmir), onde vivia uma importante minoria grega. O ressentimento popular contra esta imposição levou ao poder um novo regime sob Mustafa Kemal Atatürk, que expulsou os gregos da Anatólia e ameaçou fazer o mesmo com as tropas britânicas que ocupavam os Estreitos. Depois de três anos de confusão, chegou-se a um acordo em Lausanne em 1923, que deixava para a Turquia o controle exclusivo da Anatólia e dos Estreitos - assegurando sua desmilitarização -, mais a Trácia oriental servindo de ponto de apoio na Europa. A população grega de Esmirna foi brutalmente expulsa, e as disputas entre Grécia e Turquia pela posse das ilhas do mar Egeu continuaram até o final do século, e mesmo além dele.

O acordo de paz de Versalhes sempre teve má fama, mas a maioria de suas disposições resistiu ao teste do tempo. Os novos estados que foram criados sobreviveram, ainda que com fronteiras flutuantes, até a última década do século, quando os checos e os eslovacos se separaram pacificamente; e a Iugoslávia, sempre volátil, desintegrou-se ameaçando com novas guerras no processo. A fronteira franco-alemã permaneceu estabilizada. A "questão oriental" suscitada pela presença da Turquia na Europa foi resolvida para sempre. Mas a "questão alemã" permaneceu sem solução. Apesar de sua derrota, a Alemanha continuou sendo a nação mais poderosa da Europa, determinada a modificar o acordo pelo menos no que dizia respeito às suas fronteiras orientais. A tentativa da França de restaurar o equilíbrio foi condenada pela desconfiança ideológica da União Soviética, pela fraqueza de seus aliados na Europa do leste e pela profunda resistência de seu povo a voltar a passar por outra experiência comparável à que sofreu. Os britânicos também estavam relutantes: seus problemas internos e imperiais, combinados com a terrível imagem da guerra que povoava a imaginação popular, levaram sucessivos governos a buscar uma solução para aplacar as exigências da Alemanha, em vez de resistir a elas. No que diz respeito aos Estados Unidos, sua intervenção na Europa foi geralmente considerada um erro grave, algo que nunca mais deveria ser repetido.

Quando as condições do tratado foram tornadas públicas, um clarividente cartunista americano desenhou Wilson, Lloyd George e Clemenceau [e Vittorio Orlando?] deixando a conferência de paz em Paris e um deles dizendo: "É curioso, parece que ouço uma criança chorar." E assim era: escondido atrás de uma coluna havia um garotinho chorando copiosamente, com as palavras "Turma de 1940" inscritas em sua cabeça.


Mais:
http://www.youtube.com/playlist?list=PLrWPsj6fVbeVqF0RRYb6UEyZHtGghd74N
http://www.youtube.com/chateauversailles/search?query=war
http://en.wikipedia.org/wiki/Stab-in-the-back_myth (Antony Beevor)
http://www.dailymail.co.uk/news/article-1315869/Germany-ends-WW1-reparations-92-years-later.html