segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Another landmark

 

Mensagem da grande rainha Elizabeth II para o Natal de 1957, palavras ainda totalmente válidas para 2010. De acordo com a própria, do alto de suas heráldicas 31 primaveras, tratava-se de outro marco ("another landmark"). Pela primeira vez, o recado teve uma transmissão televisionada.

sábado, 30 de outubro de 2010

Secret agent man

Segunda-feira e acordo com uma preguiça tão concreta que poderia ser confundida com peça de mobília do meu modesto e semi-árido quarto. Hora de ir para o batente. Recordar a rotina do escritório é passear pela mente do Manoel Carlos, um sortimento de cacarecos de 2ª mão comparável a um bazar de caridade. A máfia das cercanias da cafeteira, o grupo de fumantes reduzindo o banheiro a uma sauna de alcatrão, a turma de RH comentando a matéria do gênero Pai Rico, Pai Pobre exibida no Fantástico de ontem à noite, a faxineira demorando em lugares estratégicos à espera de colher farelos de conversas que rendam excitantes fuxicos, as pilhas de exemplares da INFO Exame, os confrontos das nerd-facções: FAT32 versus EXT3, eu revirando o Tom's Hardware, a voluptuosa secretária cinturinha de pilão cujos sonhos de ascensão geralmente causam ondas e maremotos de divórcios.

Envergo uma camisa azul-Orkut, com gola discreta e disciplinada fila de botões. Devoro o leite com sucrilhos na tigela. Não se iludam, a vida de espião da área de TI - Tecnologia da Informação - é dura. Esqueçam a cliente loira fatal de tailleur e com voz felina. Esqueçam o Dick Tracy, o reloginho-comunicador, o chapéu de feltro e o manteigáceo figurino amarelo em cima do elegante terno preto. Dou partida no spymóvel e lá vou de novo.

No assento ao lado, um volumezinho, enfeixado por espiral de plástico, em que se lê Apostila de MySQL. É o disfarce do relatório de arapongagens da semana passada. O tema de Hawaii Five-O rola solto no MP3 player.

É quando olho por acaso para o retrovisor. Uma cena, antiga como a serra da Meruoca, se repete. Percebo que estou sendo seguido. Não tem erro. O filho da mãe dirige um Alfa Romeo prata, o nome de cor que os mercenários adoram. O manjado pigarro fingido. Entre a via engarrafada e o nevoeiro com cheiro de óleo diesel, ele crê que vai conseguir, o pilantra. Amador total, sequer de óculos escuros está. Lembro-me de Smarienberg, um comercial de Smirnoff.

A tática é proceder sem embromação. Deslizo por um cruzamento e puxo a alavanca turbo. Voooooosh, coma poeira, Rubinho. Longe do stalker, pondero sobre as cidades grandes, mosaicos gaudianos de criminalidade. Os boatos imbecis de ataques simultâneos com gás H2S a lojas da Cecomil, da Nagem e da E-Byte. As remessas ilegais de nitrogênio líquido encomendadas por lunáticos que gostam de brincar de overclocking. Os ladrões de senha de rede wireless. Fora da minha alçada, há os nigerianos com cocaína no aeroporto Pinto Martins, seqüestros, invasão de delegacia, os netos de desembargador que abastecem de ecstasy caríssimas festas VIP. Submundo, escória, alma no lodo. Fatos desagradáveis como colostomia e hemodiálise. E o combate a essa guilda de contravenções não está livre de equívocos. Como no incidente em que o alvo era o corrupto sobrinho de um rajá, envolvido até o bigodão de schnauzer com um esquema de contrabando de carcaças de Compaq Presario (ridículo; quase relíquias macabras) nas redondezas da rua Perboyre e Silva. Os desastrados deletaram foi um inofensivo carioca figurante de novela da Glória Perez. O vilão continua por aí, rindo de seu escuso lucro e deitado em coxins no salão de um palácio milenar, com escravas de sari a abaná-lo com um enorme penacho, a lixar suas unhas, a enchê-lo de cafunés, a pôr-lhe ameixas na boca. Uma patifaria.

Cantando pneu, chego ao QG. Apressado para reportar logo o caso do perseguidor frustrado. Quem seria? Incomodamos gente graúda ultimamente. Distribuímos dados inclusive para a ABIN. Caminho alguns metros e sou abordado pelo estranho que eu julgava despistado, um brutamontes com físico de estivador do Pecém. Não faz sentido. O que preciso é de apólice de seguro, não de verossimilhança. Deve ser sujeito da pesada. A clássica mão por dentro do blazer. Com certeza, não uma Tommy gun safra Chicago 1928. Uma 9mm com silenciador, talvez. É o fim. Sabemos os riscos do nosso trabalho, não reclamo. Vacilou, calça um cubo de cimento e termina jogado pelos colegas thugs do Frank Sinatra nas profundezas do lago Veronica ou da lagoa de Messejana. Um corvo fantasma pousa em meu ombro esquerdo e crocita Nunca mais. A escrivaninha em desalinho, canetas que tiram fotos, carimbos, grampeador, mata-borrão, livro oco para esconder gravador, caixa de lenços descartáveis para a sinusite catarrenta provocada pelo sopro glacial do condicionador de ar, os avisos em folhas de bloco de notas grudadas com chiclete nas beiradas do monitor LCD, atendendo telefonemas e com os pés apoiados na mesa sob um balouçante cone de luz, ouvindo uma lista no Winamp com as melhores de Lalo Schifrin, os tikis polinésios em forma de arquivo de metal enferrujado com as gavetas abarrotadas, as pastas, os dossiês em papel A4, os prazos, as caças à ponta da fita durex, os limpadores de janela, a venenosa atmosfera de CC vencido no elevador lotado, o código de batidinhas nas baias para repassar fofocas, a tremelicante máquina xerox, a sinuca depois do expediente, a parede com o gigantesco mapa de Fortaleza cravado de alfinetes nas chamadas zonas críticas. Nunca mais. Reminiscências que se esgarçam numa bruma sinistra, tal qual fumaça saindo do cachimbo do Simenon. "Ainda que eu ande pelo vale da sombra e da morte...", ah, droga, não funciona. Homem de pouca fé. Para usar uma expressão do Raymond Chandler, acho que estou rumo ao sono eterno. Ature minha muda carranca de ódio, meliante. Atire, seu bosta.

Ele estica o caluniado braço e me entrega um envelope com uma flor-de-lis pixelizada no verso. A marca registrada d'O Chefe. Para recados extraordinários, o Nº 1 sempre age desse jeito. Nada de Skype, e-mail ou SMS. Bilhetinhos manuscritos levados por mensageiros da tropa de elite, capazes de atravessar um deserto a nado. Pura questão de frescura estilo. Lacônico, dizia, em prosa telegráfica: "Permaneça em casa. Serviço especial para você. Próximo contato às oito e quinze. Carta se destruirá 30 segundos após desdobrada."

Corneta de fail, por favor. O estafeta some. Testemunhas do ocorrido, as linhas brancas e os paralelepípedos no chão do estacionamento zombam da minha cara. Sentados em uma nuvem, Kojak, Farrah Fawcett e outros anjos da lei guardam suas lunetas bisbilhoteiras e coram de vergonha. O trânsito não se aliviou. Resignado, preparo-me para voltar e assovio o refrão daquela música. They've given you a number and taken away your name.

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Casa muito engraçada

What a dump. Reforma na casa é um Deus nos acuda, barracuda. Adiei o tanto que pude, mas estava precisando master de uma. A infiltração no forro de um dos quartos do 1º andar, maçanetas e ferrolhos a serem trocados, barulhos fantasmagóricos vindos de uma tomada, aumentar o umbral do portão corrediço, recauchutar o piso de azulejos da área, nova pintura geral, dar uma mexida na calha.

Meu primeiro projeto de teto próprio ocorreu-me ainda criança, após ler sobre as aventuras do rei Arthur. Desejei um castelo, obviamente. Com calabouços. Corredores iluminados por archotes ou por arandelas. Colunatas em estilo jônico. Elmos e escudos ancestrais na decoração. Candelabros de cristal. Suntuosas e intermináveis escadarias com corrimão de jacarandá, perfeitas para empurrar filantropos caçadores de doações. Balaustradas que inspirassem na gente uma vontade de cometer crimes hitchcockianos, o pôster de Vertigo girando na mente perigosa. Ponte levadiça e embaixo dela um fosso cheio de crocodilos famintos. Torre com uma Rapunzel aprisionada. Ameias nas quais eu brincaria de disparar canhões.

A realidade, porém, é chatinha e aplainada. E teima em esmagar com uma chave de grifo nossos devaneios e nosso apreço pelo que não tem imediato sentido prático ou funcional.

No temor de cair nas garras de malucos do mundo da Arquitetura & Construção, telefonei, à procura de conselhos, para o pai. Contratei um pessoal descrito por ele como de confiança. E lá veio o inferno.

Rapidamente, minha tapera foi violentada por uma horda sinistra, ripas e caibros, sacas de cimento, latas de Suvinil, um cafarnaum de tijolos furados, um arsenal de ferramentas e de pincéis, carrinho de mão, cavalete, montinho de areia e de brita, rústicos pedreiros. Besouros no jardinzinho doméstico enfartavam de constrangimento. O chefe da equipe era o Seu Corbúsio, quarentão bigodudo de feições quadradas, de fala apressada e natural de Acopiara. Muito medo que transformassem meu cantinho em uma esdruxulice premiável.

This is Sparta: concerto de marteladas, vrrrrooooom de furadeira, vai-e-vem de serrote, irrequietas lixas. Por que não convidei logo o coral da bigorna, uma sirene de ambulância e um almuadem? Poeira bastante poeira castigando o sofá, o rack, a mesinha e até o balcão de fórmica da cozinha. Pano neles. Ao pó voltarás. À hora do almoço, a peãozada de cócoras, tendo dificuldade com os talheres, conversava alto quase sem pausas e cuspindo involuntariamente uns nos outros restos de piaba frita e grãos de feijão de corda com toucinho e alecrim; os assuntos iam desde vizinhos traficantes a bisavôs que arriscaram a sorte no Ciclo da Borracha.

Quando começar a fase dos trabalhos com tinta, é sério, fujam para as colinas. Aquele cheiro forte que dá dor de cabeça, credo, parece um recinto de usuários de ópio. Dorgas, mano. Juncando a planície devastada que era o chão da sala de estar, manchados de respingos castanhos, jornais velhos em que se viam notícias do caso Alanis e de disputa por refinaria. Atelier de alvenaria? O clima estava mais para zona de guerra, uma das bem antigas e de terceiro escalão, que não deixaram sequer um mortinho ilustre para constar nos livros.

O orçamento apertou. Em noites ranzinzas, tive um pesadelo repetido. Um lobo mau, com ares de Sérgio Naya, que me perseguia e bradava: "Sou sua verba disponível! Vou soprar, soprar e sua morada vou derrubar!" Em certa manhã, acordei assustado. Pulei da cama e fui abrir uma veneziana. Arrulhos da gangue de pombos que vandalizava o telhado. Encerrada a burocracia higiênica, desci para tomar chocolate quente na caneca de estimação. Seu Corbúsio insistindo para eu liberar a mixaria, pois necessitava comprar mais material. Eu, tentando manter a impassibilidade de estátua chinesa de terracota, observava e pensava, Caramba, que escoadouro de grana é esse, doutor? Está achando que sou uma betoneira em que você joga uma mistura de reclamação e depois tira uma argamassa de moedinhas? Hein? Música de suspense, Caçulinha. Close no meu rosto, Renatão. Tensão no Teatro Fênix. Imaginei-me afobado, indo a um desses bancos patrocinadores de cinema brasileiro. Pedir empréstimo das linhas especiais de crédito para obras em imóveis, as taxas de juros sendo de 2% ao mês. Claro que me lembrei do filme com o Tom Hanks, Um Dia A Casa Cai.

Encurtando a história: sobrevivi. E estou aqui contando. Para preocupar, não há lugar como o lar.

terça-feira, 31 de agosto de 2010

Oito casos

Vamos falar de pilhéria, de molecagem. Que experimentar um momento de humor é mais instigante que tecer cogitações a respeito dos mecanismos que nos incitam às risadas, isso é o óbvio ululante e esperneante. Mas não resisto. Restringi-me a oito casos. Quatro audiovisuais e quatro escritos. Como disse a Elizabeth Taylor, numa twittada de 18 de junho de 2009, "humor is the only way to stay alive". O piadista vive perigosamente, desarmando o estoicismo ingênuo que se pretende marmóreo, o desespero que enxerga uma centena de misérias e o cinismo patético de natureza defensiva. Os relatos são breves e a diversão é para toda a família. Play.

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Ícone das bufonarias silenciosas, o gênio por trás dos eloqüentes óculos sem lentes, Harold Lloyd caprichou na intro de Safety Last!. Quebra de expectativa, pistas falsas, brincadeiras visuais, deboche, trocadilho, um artesão com pleno domínio do ofício e pronto, nasce um clássico. É nesse filme que está também a seqüência dele pendurado no relógio no alto do prédio, competentemente homenageada em De Volta Para O Futuro.

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O Monsieur Hulot, cria do francês Jacques Tati, é uma espécie de ancestral do britânico Mister Bean, personagem de Rowan Atkinson. Na routine ali em riba, ele encarna o paladino em defesa da frágil moça. Claro que isso não passa de mote para uma sucessão de mal-entendidos. É a comédia de erros, tão velha quanto andar para a frente. Economia de palavras e tom ameno. Parece ser a receita dele.

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Lubitsch Touch, teoria e prática. Para captar a beleza triste e irônica da cena, transfigurada em romântica confraternização alcoólica, temos que saber que o calendário marcava 1939, e que Ninotchka era uma agente soviética, ou seja, vinda de um lugar onde grassava um feroz e descarado terror. Finezas como estas eram tão rotineiras quanto são comuns para nós os editais de concurso público. "There are going to be fewer but better Russians.", uma das imortais frases de efeito do cinema. E lembremos uma valiosa lição: Do riso ao siso. Em mãos hábeis, esse contraste é garantia de grandiosas realizações.

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Essa não é exatamente, ahn, engraçada. Tirada de The Pink Panther. Está mais para descontraída. Fran Jeffries, com suas caras e bocas, interpreta uma excelente canção italiana, Meglio Stasera. Imaginem a situação. Happy hour no chalé de uma estação de esqui, uma fogueira crepitando, o pessoal, pouco escondendo a fascinação, comentando as peripécias d'O Fantasma, um sofisticado ladrão de jóias, o clima lounge dos anos 60, Peter Sellers, o inspetor Clouseau, num pulôver estiloso e entrando na dança. Reparem na hilária empolgação coreográfica do gordinho de cinza no encerramento da música. E em uma das extremidades da mesa central, a linda Claudia Cardinale, representante da força das morenas e vestida num púrpura profundo. Considero Blake Edwards o diretor Nº 1 para comandar cenas de festa.

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Conheci Hector Hugh Munro - nome artístico: Saki -, exímio e sarcástico cultivador do final-surpresa, através desta coletânea. Aliás, descobri muita gente nessa seleção de contos. Recomendo fortemente uma lida. Se de outra época fosse, Saki poderia ter sido absorvido por diferentes mídias e elogiado como bem pago roteirista da série Doctor Who. Morreu ao levar um balaço enquanto bancava o soldado nas trincheiras da 1ª Guerra Mundial.

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Há uma turma que, quando menciona autores russos canônicos, baixa a voz para um volume solene e receoso, como se conversasse sobre tomada em casa de eletrocutado. E para completar o cenário, uma orquestra invisível ensaia acordes da Marcha Eslava, de Tchaikovsky. Tudo para ressaltar nossa insignificância diante daquela imensa terra, seus czares, samovares, águas do Volga, afrescos de Andrei Rublev e os inconfundíveis bulbos da catedral de São Basílio. Só uma boa palhaçada, elaborada por um ruskie, para nos livrar de tamanho cerimonial besta.

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Com mil bigodes, vocês acham necessário explicar quem foi esse sujeito? Aqui, em 01:13, uma curta e justa descrição: "the really authentic wit of our time". O texto é um proverbial exercício de síntese e de malícia. Sutil como deve ser. Longe de ambicionar reflexão ou de zoar com assunto grave, a matéria-prima é a popular safadeza.

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Maranhense devidamente carioquizado e ótimo colecionador de histórias da outrora capital federal. Subestimado por uma parcela da crítica por ser visto como "mera recreação". O incidente acima é saborosamente mordaz. Simples e direto, soa como algo bastante particular do Rio de Janeiro de antigamente e convida a releituras.

sexta-feira, 30 de julho de 2010

Alan Turing e aquelas ondas

Alan Mathison Turing, um dos pioneiros da computação. Nascido em Londres em 1912. De infância isolada e excêntrica, longe dos pais. Desde pequeno, demonstrou interesse por matemática e talento para o cálculo. Graduou-se em King's College, Cambridge. Quando a II Guerra Mundial incendiava a Europa, ele e sua equipe deixaram sua marca no esforço Aliado. Torrando as pestanas de coruja e a paciência de ourives, quebraram o código do Enigma, o brinquedo moderno que os nacional-socialistas utilizavam para trocar correspondência ultra-secreta. Frustraram sorrateiros planos da quadrilha nazi, por meio de interceptação e decifração dos padrões de embaralhamento - alterados constantemente - de mensagens.

E tem a Máquina de Turing, que a gente estuda no último semestre de Ciência da Computação. Esboço futurístico considerado a base, a chave, o sinsinsalabin da expansão da era eletrônica/digital. Turing era brilhante. Turing era gay. Fora apaixonado por um colega que morreu de tuberculose bovina.

Sujeito fleumático e discreto (meu nonagenário avô reaça diria: bichinha sonsa), andava pelos cantos a bater na mesma tecla de culpa-repressão. Às escondidas, tinha encontros com rapazes que lhe mitigavam a solidão. Até que foi pego no flagra, com a mão na, er, na massa, seus maldosos. Homossexualidade era ilegal no Reino Unido. Para escapar ao cumprimento de pena na prisão, aceitou submeter-se a tratamento para curá-lo de seu vício que tanto afrontava as famílias abrigadas em casinhas estilo Tudor. Sofreu castração química via injeções de hormônio estrógeno e desenvolveu humilhantes e flácidos peitinhos de garçonete decadente.

Seqüela do escândalo, seu lado G começou a afetar sua vida profissional. Por ordem judicial, teve que se afastar de suas pesquisas. Apesar da excepcional ficha de serviços prestados, as propostas de trabalho escasseavam. Entra em cena a obsolescência, esta pantera. Comentários escarninhos, no inconfundível sotaque britânico, empolgavam as rodas de conversa. Na bocarra do povo, enfim. Desencriptografada e exposta na vitrine sua condição de invertido. Sua ffenffibilidade não agüentou. Alan suicidou-se merendando uma maçã com cianureto em 1954, num estranho decalque de Branca de Neve vitimada pela Bruxa. Tilt. Outra versão diz que ele costumava armazenar descuidadamente produtos químicos pela residência e envenenou-se acidentalmente. No ano passado, veio a público um pedido formal de desculpas do governo inglês pelo modo como as autoridades procederam com o cientista.

Seu epitáfio:

Hyperboloids of wondrous Light
Rolling for aye through Space and Time
Harbour those Waves which somehow Might
Play out God's holy pantomime

segunda-feira, 31 de maio de 2010

Salta aos olhos a perfídia

A velha surda Boris Casoy vacilou feio no episódio com os garis.

Observem. Eu, que já atendi a clientes inacreditáveis na manutenção de hardware, sei. Eu, que já freqüentei famigerados e universalmente assustadores churrascões-com-a-fauna-da-empresa, sei. Vendedores de Lamborghini ou de planos Golden Cross com uma lábia de serpente do Éden sabem. Popstars e moviestars divulgando lançamentos e conclamando o público, idem. O redator sempre pronto a defender seu jornal-patrão & os anunciantes - isso marchando lado a lado com a antipatia aos concorrentes, pelo menos enquanto não for contratado por eles -, mesma cousa. Porém, É. Uma. Vergonha. O ancião âncora de boca murcha parece ter ignorado: Você nunca imagina quando vai precisar das criaturas que despreza profundamente.

Vejam nossa busca pelo vil metal. Carecemos de ir atrás das pessoas e apresentarmo-nos com alguma utilidade. Nessa caça ao tesouro, raramente ao quadrado seremos compelidos a pensar sobre a validade do lucro porque o fulano pagante usa o funk da panela de pressão como ringtone do celular, tem laços comerciais com China e Arábia Saudita ou diz "pogresso", "abadonar" e "tóchico". Em outras situações, sem o perigo de estragar relacionamentos ou de arriscar a sobrevivência financeira, a gente julgaria sem dó nem piedade esses - cof, cof - detalhes irrelevantes para os negócios. Os amigos de longa data ou parentes queridos nos quais atenuamos/encenamos vista grossa a/toleramos defeitos intoleráveis. O receio de espinafrar aquele ridículo que nos elogiou. Ou ainda: nós próprios sendo o alvo desse tipo de análise clínica cínica. É mentira, Terta? Salta aos olhos a perfídia, como diria o manifesto da Confederação do Equador.

Vejam também minhas bastardas e inglórias voltas para casa à noite, o trânsito repleto de brutamontes de vários formatos, cores, idades, gêneros e procedências. A vontade que dá é de espancá-los com um retirante morto até o cadáver famélico gritar "Asa Braaanca". Mas isso não se faz. A que se deve a obviedade dessa proibição? A uma geringonça chamada civilização. Tem muito de boas maneiras. E mais um tanto de falsidade. Civilizar é refrear instintos, elaborar rituais, condutas artificiais. E isso envolve sim uma certa dose de hipocrisia, a qual, para fins ornamentais, apelidamos de diplomacia. Sinceridade desembestada ladeira abaixo é mania de rebelde da geração Toddynho ("Falo na cara, morô!"). O máximo a que podemos aspirar é tentar dar um pouco de engenho a essas necessárias máscaras, dissimulações e incoerências de cada dia.

sexta-feira, 30 de abril de 2010

As aventuras de Doris Day

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Este post é singela e respeitosamente dedicado à atriz e cantora Doris Mary Anne Kappelhoff, mais conhecida como Doris Day. Ela completou 88 anos - há controvérsias: 86, dizem alguns - no dia 3 de abril de 2010. Totalmente afastada do show business, ocupa-se atualmente com uma fundação que cuida de animais. Siga em frente, garota. Que sera, sera. Whatever will be, will be.

domingo, 28 de março de 2010

Vinte anos esta noite

Ali circa início de 1983 - período do abajur cor de carne, de acordo com uma profecia asteca e uma centúria de Nostradamus - aconteceu-me um negócio extravagante. Nasci. Empurrado para aquele mundão de novidades, eu observava o perímetro. E rabiscava anotações, em segurança numa fralda e pendurado em uma das sérias e pudicas tetas de mamãe. Era um cenário pitoresco. Grandes répteis, mainframes e monitores de fósforo verde andavam sobre a terra. Desconhecidos apertavam-me as bochechas. Celebridades com um gosto bastante duvidoso para penteados e maquiagem. Os da indústria fonográfica insistindo nos backing vocals em ôôô, nos sintetizadores e no canto falsete. Clipes abusando do efeito gelo seco, de quadriculados preto-e-branco e de precárias aplicações de chroma key. Pale Shelter e Overkill, musiquinhas da moda. O jurássico rádio-relógio no topo da obesa geladeira. A moeda era cascalho. Brinks, era o cruzeiro. O presidente Figueiredo era peça rara. Em abril, no pasquim que os caros amigos adoram odiar, foi publicada a inesquecível matéria do boimate. Em maio, Playboy com Luiza Brunet na capa. Em junho, entrou em cartaz um bom filme, WarGames, em que o Matthew Broderick se encrencava com os sisudos protagonistas da Guerra Fria, grávidos de ogivas nucleares; e a marcante sentença no final:


Falar nisso, no Império do Kremlin, reino das robustas mercearias e da vitoriosa economia planificada, a população satisfeita com a realidade do socialismo e dedilhando balalaicas, dançando trepak, brindando com vodka no centro de Moscou e buzinando sua frota de Lada 1500, enquanto caças MiG-31 aprontavam-se para formar no céu o contorno da foice e do martelo. Правда. Gorbachev com a nódoa na careca. Numa tarde de agosto, deitado esplêndido no berço, estava eu, um prodígio de bebê, ruminando uma tese que viabilizaria a cobiçada fusão atômica; quando fui interrompido pelo triângulo de um vendedor de chegadinha; jamais recuperei a linha de raciocínio. Em setembro, o Black Sabbath lançou, talvez em homenagem a mim, o álbum Born Again. Homenagem suspeita, porque o trabalho era fraquinho que nem sopa do Lar Torres de Melo. Ronald Reagan e suas piadas, reagags, confundindo Jesus com Genésio, tupi com tamoio e Brasil com Bolívia. 2 Alemanhas. Da da da. 99 Luftballons. VHS e Betamax. Paletós de ombros estapafúrdios e justíssimas calças imitando pele de onça ou de zebra eram o total eclipse da sensatez. Sigue Sigue Sputnik, Eurythmics, Devo, The B-52's. Pancadaria demais em show de ska britânico. Os gladiadores do metal farofa sacudiam suas cabeleiras parafinadas, solavam epileticamente em guitarras flying V e emitiam os habituais gritos de rachar taça. Poucos ainda lamentando a Copa de 82. A situação dos fugitivos de Cuba, la isla bonita dos filhos da revolução, inspirando um remake de Scarface com Al Pacino e Michelle Pfeiffer. Cuando salí de la Habana, ¡Valgame Dios! Molecada verminando na geração 8-bits. Galaga, Pitfall, Enduro, Alex Kidd, Castlevania, Bomberman, Duck Hunt. A galera do pós-punk e suas depressões e darkzices em ré bemol devidamente remuneradas em dólares e premiadas com Disco de Platina. A rua em que morávamos, austera e banal, próxima às paralelas de uma estação de trem e à irrequieta avenida em que pipocavam infrações de trânsito e letreiros de neon. Uma solitária amendoeira de ampla sombra era a sentinela da esquina, convidava aves canoras, desafiava os postes da COELCE e amparava casais de namorados interessados em bolinagem. Nosso vizinho da esquerda era o Seu Hermínio, que vivia com uma parentada, caminhoneiro veterano que me deixava tirar onda, new wave, na boléia da enorme carreta. Lassie, a cocker spaniel metida a valentona que nos acompanhou por longas 16 voltas ao redor do sol. A tia Isaura [RIP] enviava dezenas de postais de Belo Horizonte. Meu (quanta petulância!) quintal, quartel-general de travessuras, tinha uma importância maior que o canal do Panamá, Irã-Contras, Chernobyl, as Diretas Já, a proliferação da AIDS, o sindicato Solidarność e a descolonização africana. Buliçoso, adquiri mania de desenhar com crayon e lápis no caderno pauta dupla, na mesa, na parede. Sujei e sujei o chão com massinha de modelar. Ploc Monsters, dindim de coco, bala Soft, chocolate Lollo. Numa briga, o pirralho acertou o adversário com um bilboquê. Achava maricas as figurinhas Amar É... ("... não tá pra peixe", dizia a piada; nem vi graça; abre a porta que ela passa). A campanha 1984 da Apple. Disquetões de 5¼''. Linguagens de programação em evidência midiática eram COBOL e BASIC. Microtec, Unitron, Prológica. Leite fervente transbordando na cozinha. A convecção vulcânica de panelas contendo aipo, beterraba, aspargo, brócolis, quiabo, e o forno burilando um fricassê de vitela. Da fila de LPs do pai, àquela altura mais magro e menos calvo, Glenn Miller, Ivanildo Sax de Ouro, Ray Conniff, Xavier Cugat. A Olivetti Lettera cinza logo virou um brinquedo. Na estante, também do jovem patriarca, enciclopédia Barsa, espiões de Ken Follett, calhamaços relacionados a gramática, a religião e a Direito. Advogar, o ofício do homem; ralava em dois empregos; ele que me alfabetizou, antes da escola particular; meu herói nacional. Nesse papo de leitura, eu me contentava com gibis do Pateta. Malandros adultos - 14 ou 15 de idade - às vezes apareciam com uns tais catecismos de Carlos Zéfiro, camuflando-os dentro de títulos da coleção Vaga-Lume. Alguns até se arriscavam em visitas ao Cine Jangada. Nas festas da família, desfile de camisas US Top e de vestidos balonê, razoáveis bebedeiras, tiazonas mexeriqueiras cacarejando críticas à atuação da Malu Mader em recente capítulo da novela Ti Ti Ti, machos-de-tacape preocupados com inflação e queda de poder aquisitivo ou reclamando do preço da gasolina e dos gastos com o Monza na oficina, partidas de damas gamão ludo Genius PulaPirata pega-vareta dominó, petiscos da culinária hardcore do distante e folclórico sertão, a importuna piscadela na pose para foto, primos de tênis Conga e primas de gigolete pondo para rolar no som uma fita com gravações de: Lado A) Cyndi Lauper, a garota do Time After Time e Lado B) Ultraje A Rigor, os matusquelas que bagunçavam a quermesse. Numa dessas, girei vinil da Xuxa ao contrário, para ouvir as mensagens satânicas. Passeávamos em parques. Íamos a la playa, asa delta era diversão de esportistas temerários, Ícaros do litoral, e aparato de banhistas ousadas, Afrodites de bronzeador. Os momentos guardados em monóculos. Vassourito, o apelido óbvio que me puseram. Pior foi com a menina que rebatizaram de Adelaide Anã Paraguaia. Criança não perdoa. As memórias absorvidas da corpulenta e desengonçada televisão da sala, impossível citar todas, entre contemporâneos e reprises. Kate Mahoney, Xerife Lobo, Dallas, Super Máquina, Chacrinha, Pole Position, Lagoa Azul, Thundercats, Juba & Lula, Miami Vice, Zé Colméia, Jetsons, Punky Brewster, Cavalo de Fogo, O Elo Perdido, Krull, os japoneses, A Teia De Charlotte, Caverna Do Dragão, Pantera Cor-de-rosa e seu eficaz tema composto por Henry Mancini, o piano tristonho que encerrava os episódios do Incrível Hulk, loja A Esmeralda - o gerente endoidou -, vamos à Casa Pio, Cabaré Do Barata, véi Barbosa, MacGyver, Kissyfur, Pedro de Lara, Elke Maravilha, sereia Madison, Benji, He-Man, Tron, Indiana Jones, Flashdance, anime do Pequeno Príncipe, Roletrando (po**a, Silvio), Sessão Aventura, GP de Mônaco, juiz Margarida, Corey Feldman, Molly Ringwald, Bud Spencer & Terence Hill. Depois, foi época de se assustar com formigas gigantes, A Mosca, A Fortaleza, A Coisa, Sexta-Feira 13, O Exorcista, piranhas voadoras (?) e dobermans. A safra de saudosas comédias de sacanagem, Porky's, Almôndegas, Férias Do Barulho, A Primeira Transa De Jonathan, O Último Americano Virgem. Boicote vermelho nas Olimpíadas de 84. Cometa Halley. Menudo. Kátia Cega. Sarajane. Candidato a vereador discursando em cima de lata de querosene. Fiscais do Sarney, VSF, maranhenses me mordam, que troço patético do cacete. O kaboom do ônibus espacial Challenger. O aguilhão do merthiolate no joelho arranhado. Lancheira dos Comandos Em Ação. Papel carbono. Kim Wilde e Laura Branigan, as beldades que me arrastaram para o inferno-paraíso das paixonites precoces e estupidamente ingênuas. Acidente com o Césio-137. Constituição de 88. O escritor esquisitão presenteado com uma fatwa. Jornais sensacionalistas deram destaque a um irrelevante confronto estilo Fla-Flu provocado por meia dúzia de baderneiros amarelos na praça Tiananmen em 1989. Caiu a reputação do atleta Ben Johnson. Caiu o Muro de Berlim.

Pausa para tomar uma Mirinda. Que esse esquema narrativo, extenso painel com recortes de um assunto separados por vírgula ou por ponto, requer um tanto de preparo físico.

E agora, um salto para 2003, no mesmo dia de minha estréia por essas bandas. Eu cursava faculdade. E o salário, ó. A White House chefiada pelo George Wacky Bush. Começava a invasão do Iraque. Motivo oficial, as comentadíssimas armas de destruição em massa. Ambígua efeméride no meu aniversário. Continua curioso ver os sites e noticiários que mencionam a data. Ou folhear almanaques e livros de História e, shazam, ela ressurge, em fonte Garamond ou Arial tamanho 12. No restinho daquela quinta-feira, em outra residência, em outro bairro, em outro século, em outro milênio, quase que em outro convulsionado planeta, eu jantava empanado de frango com arroz parboilizado e refresco de tamarindo. Ao assistir, em outra TV, à cena em que soava um alarme de ataque aéreo na região para lá de Bagdá, foi como se ele anunciasse: Vinte anos esta noite.