segunda-feira, 24 de janeiro de 2005

Andando de ônibus

Outro dia, andando de Mercedes-Benz com motorista - era um ônibus -, presenciei o seguinte diálogo:

- Pocotó, posso fazer uma brincadeira de pergunta e resposta contigo?
- Manda lá, Chicletinho, macho véi!
- Como é que a gente chama uma pessoa que não tem perna?
- Perneta!
- Muito bem! E uma que não tem mão?
- Maneta!
- E uma que não tem punho?
- Eita! Aí é fuleiragem sua!

O que provocou rústicas e sinceras risadas em alguns passageiros. Chicletinho e Pocotó eram palhaços devidamente paramentados e pintados, que estavam em missão das mais sisudas. Iam em coletivos vendendo cartões com mensagens brega-líricas ao preço de 1 Real ou um vale-transporte, para arrecadar recursos para a manutenção de um projeto que levava atrações circenses e farsas pueris para crianças vítimas de AIDS e de câncer em hospitais. Chamava-se Terapia do Riso, diziam. Surgiu em minha mente sem ordem nem sentido, um turbilhão de binômios paradoxais. Palhaços/doentes terminais, sorrisos/ríctos, piada/quimioterapia, infância/morte, cambalhotas/agonias, maquiagem espalhafatosa/rostos cadavéricos, cócegas/AZT, peruca colorida/queda de cabelo, bicicleta/radioterapia, feijão da mãe cozinhando/cheiro de éter e de amoníaco, tropeço de patins/infecção hospitalar, casa da vó/UTI, sorvete de chocolate/injeção nada indolor.

Há tempos, só de gaiatice, batizei um tipo de fenômeno com o neologismo "marróia". Quando a dupla de bufões artistas do subemprego, para arrancar uma verba, explicasse o porquê de estar ali, alguém exclamaria "Mas olha!" (que em cearensês pronuncia-se marróia). Certa vez, abestadamente contribuí com um cara desse ramo de negócios. Ainda tenho o cartão, pois fiz dele marcador de páginas. Isso me lembra de algo. Todo sábado, das 19:00h às 21:00h, tiro a máscara cotidiana, ponho outra, hospitalar, e atuo como voluntário no Hospital Infantil do Câncer Albert Sabin. Marróia. A classe média desocupada ataca novamente.

E como é chato ver a dona da Bunda do Momento doando microscópica fração do gordo cachê do seu ensaio na Playboy para uma associação beneficente. Sob uma horda de trêmulos microfones e ávidas câmeras, beijando cabeças calvas de frágeis e debilitados pequenos seres. Um desinfetante de eucalipto escondido na bolsinha. Faz parte do show business. Subir os degraus da fama montada na cacunda de uma massa infanto-cancerosa. É mais um cata-audiência.

Mas esqueçamos essa lengalenga tétrica, pseudo-filosófica e inútil. Até aqui, tudo não passou de uma digressão. O que eu queria falar mesmo, a idéia principal de hoje é que andar de ônibus pode ser estranhamente divertido. Cuidado com a linha 052 (Grande Circular 2), que ocorre muito assalto nela.

sexta-feira, 21 de janeiro de 2005

Sub

Eu, escrevinhador. Sim, tornei-me blogueiro. Novato na classe dos subliteratos virtuais. Talvez, futuramente, eu até seja laureado com um Framboesa de Pior do Ano entre os blogs. E que estratégia batida, essa autodepreciação festiva.

E se eu almejasse, porém, galgar, pela porta dos fundos que é um blog, a escada para o Céu que o Robert Plant cantava e desfrutar todas as benesses que cabem aos eleitos que chegam lá ao alto pela senda das letras? Gordo contrato com uma editora, prêmios, cadeirinha na ABL, entrevista-monólogo no Jô Soares, adaptação cinematográfica, propaganda subliminar de meus escritos em novela da Globo, fãs-leitores exaltados, defendendo com gadanhos e caninos minhas qualidades de best-seller?

Como agiria para sobressair-me nesse monturo de candidatos a Vedete do Parnaso, de aspirantes a Autor de Sucesso? Invente, tente, faça um 05 diferente? Claro que não! É um plano manjado demais. Ser diferente, ser underground, ser marginal, ser escritor/músico/cineasta maldito, ser todas as tribos, ser Foda-se o Sistema, ser Odeio Bush, execrar Paulo Coelho, declarar-se antipop. E aí eu seria apenas mais um nessa barafunda de seres vorazes rabiscadores de parágrafos à caça de fama, cada um querendo seu momento Andy Warhol e com uma ânsia de corista da Broadway pelo estrelato.

E agora, José?

The End

(Tomara que ninguém esperasse que de fato eu fornecesse macetes, receitas ou fórmulas mágicas de como fugir desse esquema. Mas se houver alguém insatisfeito e com esse fetiche de ser ensinado/adestrado, é só encarar a prateleira de Motivacionais da livraria mais próxima.)

quarta-feira, 19 de janeiro de 2005

Cortina de fumaça

Vou ser mais um a meter o bedelho no assunto drogas.

Antes de tudo, devo fazer uma confissão estarrecedora. Uma declaração que soará até ignominiosa em determinados setores, desalentadora para colegas como o Paulo Gabriel (João Kléber: PÁRA! PÁRA! PÁRA!). Bomba: nunca dei nem o clássico tapinha-na-maconha-por-curiosidade. Não, nunca. Nem artigos caretas, desses disponíveis na farmácia, no boteco, no supermercado ou no banheiro da escola. Acredito que por mera inércia. Um dia, reparei que não usava absolutamente qualquer troço para ficar doidão e vi como isso me tornava outsider em relação a um monte de gente. Que se exploda, pensei. A essa altura, não vejo o que isso me acrescentaria. Que prevaleça o menor esforço. Que eu permaneça sem arriscar a 1ª degustação.

Parece-me é que a discussão sobre drogas vive embaçada por uma espessa cortina de fumaça gerada por centenas de baseados tamanho GG, dificultando a visibilidade, tais são os disparates que soltam os envolvidos na questão, sejam pretensos cidadãos de bem ou reles drogados metidos a revolucionários.

Na época em que eu ia a festas cheias da molecada que batia no peito por se achar underground ou bosta semelhante, era fatal. Os amigos (termo não muito adequado) trocavam gestos cúmplices, formavam uma caravana e escolhiam um canto. Era chegada a hora. Um prefaciador desembainhava o papelote com o prensado, acochava a seda e lá ia o irregular cilindro mágico na rota Medo & Delírio, de boca em boca, deixando por onde passava um rastro de sorrisos infanto-debilóides e olhos avermelhados. Isso sem mencionar outras modalidades. Loló, cachaça, comprimidos, garrafinha com chá de cogumelo, pó que não poupa ninguém.

Regra que tem quase a força de uma lei de Newton: prazer implica risco. Considerei que turbinar a cachola com químicas extravagantes era um prazer cujos riscos implícitos no ato eu não tinha - e não tenho - disposição para encarar.

No País das Maravilhas, o consumo de droga traria eventuais problemas somente para o próprio usuário. A situação complica mais ainda porque, num ambiente em que responsabilidade é démodé, invariavelmente apelamos para soluções-gambiarra como a descriminalização irrestrita da venda de lombras.

terça-feira, 18 de janeiro de 2005

O Réquiem do Malandro

Bezerra da Silva era, ahn, como direi... Pitoresco.

Frasista rápido no gatilho, autor de disparos como "não preciso fazer a cabeça, já nasci com ela feita".

E ainda escolheu o dia 17 de janeiro para morrer.

Explico. 17 de janeiro = 17/01 (leiam um sete um, 171).

Ou seja, sua última matreirice foi armar com o dia do próprio falecimento uma alusão ao artigo do Código Penal que enuncia:

"Obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento."

Isso é a pedra angular da filosofia da malandragem dos morros, estilo de vida para o qual os rústicos sambas de Bezerra são a trilha sonora irretocável. Sem emprego fixo, o malandro vive de bicos ou aplicando pequenos golpes (os tão comentados 171). Todos já ouvimos falar do tal jeitinho. Trata-se de um remake à brasileira da ancestral personalidade picaresca, oriunda do Velho Mundo. O sujeito que nos proporciona fartas risadas quando suas estripulias restringem-se ao território da ficção (livros, filmes, anedotas), mas que muito provavelmente não suportaríamos - eu não suportaria - ter como vizinho.

Assim como o futebol, o carnaval, o narcoterrorismo, a floresta amazônica, a prostituição infantil, os seqüestros-relâmpago, a indústria da seca, o coronelismo, a Bahi-iá-iá, a pistolagem, as mutretas políticas, a caipirinha, a pororoca, a pururuca, a feijoada, a jabuticaba, o xerém, a buchada de bode, a macumba, as novelas, as piadas de português e de argentino (ou sobre o Acre), Paulo Coelho, Carmen Miranda, os violeiros e as onças-pintadas do Pantanal, as enchentes paulistanas e cariocas, os quase-furacões de Santa Catarina, as top models do Rio Grande do Sul, as chacinas de índio, as invasões do MST, a impunidade galopante, as lambadas do Kaoma, o ET de Varginha, a mão truncada do Lula, o foguete que explodiu, a plataforma que afundou e o clone bovino que saiu errado, o 171, em seus vários trajes (malandragem, ginga, lei de Gérson), também é uma grande referência do Brasil varonil. Ninguém segura este país. Tipo no jogo da batata quente.

Eu, escrevinhador

Suponho que até dançarinas de forró, lutadores de jiu-jitsu e estudiosos de candomblé percebam o seguinte: o mundo está mudado. Outrora, o esquema era relativamente simples. No meio dos matos, o sujeito plantava as sementes e após um tempinho vinha a colheita. Arranjava uma prima disposta a 1) encarar o negócio de até que a morte os separe e 2) parir uns 10 rebentos, para cumprir o outro negócio de crescei e multiplicai-vos. Na selva de pedra, cursar datilografia, inglês básico e informática elementar, conseguir trabalho no Banco do Brasil, comprar o tão sonhado Chevette. Daí, escolher uma moça de família e com ela formar um casal feliz para sempre, ele assistindo a esportes na Telefunken ou tomando um martini, ela costurando na máquina Vigorelli ou cuidando das tulipas e a filharada brincando no Atari ou pulando em festinha de aniversário. É quando lá vem o arrastão de mudanças - insistente, cada vez mais ligeiro - fazer sua visita periódica e deixar uma série de paradigmas de vida com um tom acinzentado de vintage. Cenas dos próximos capítulos: missões interplanetárias, andróides que surrupiam empregos, carros (e computadores) + velozes e + furiosos, bombas caseiras de hidrogênio, DVD, GPS, fibra óptica, nanotecnologia, TV digital, clones clones, globalização e... Internet.

Internet. Esse meio que, de certa maneira, ameniza a nostalgia por um Deus, brindando-nos momentaneamente com um de Seus dons, a ubiqüidade. Significa poder, quase ao mesmo tempo, postar no Orkut, fofocar no MSN, ouvir uma web radio de Adis Abeba (Etiópia), pesquisar receitas de pudim ou de suflê, downloadear um filme (XXX ou nada disso), conferir na versão online do The New York Times as novidades mais sórdidas e fascinantes sobre as vítimas do tsunami e saber no site de celebridades quem é o figurão da Rede Globo que está com câncer. Limitados são os outros. Nós temos acesso banda larga aos dons da onipresença e da onisciência.

Foi pensando em tudo isso, e também movido pelo ócio das férias, que resolvi, depois de muita enrolação, soprar um hálito de vida no barro amorfo e inerte que era o espaço aqui para blogar. O título "Fatos & Ficções" é inspirado em uma seleção de ensaios que adquiri por acaso em uma feira maluca de usados, na troca por uma pistola Zillion quebrada. Encerro o début com um trecho desse livro - de um texto publicado em dezembro de 1967 -, uma breve reflexão sobre o ato de escrever:

Nossa adorável arte trivial e tão humana está num fim, se não estiver no fim. Só que isso não é razão para deixar de querer praticá-la, ou mesmo de lê-la. De qualquer maneira, um pouco como padres que já esqueceram o significado das orações que recitam, iremos continuar falando de livros e escrevendo livros durante muito tempo, fingindo que não estamos notando que a igreja está vazia e que os paroquianos foram para outro lugar, servir outros deuses, talvez em silêncio, talvez com palavras novas.