sexta-feira, 31 de julho de 2009

Terra Nostra

Foi em um distante julho. Tive um problema na matrícula e precisei ir ao Pici em mês de trégua universitária.

O coletivo linha 389 conduziu-me ao território federal. Vi a lagoa e sua cômica imundície. Da janela do ônibus, percebi uma véia maltrapilha a ensaboar roupa na calçada em frente a um prédio da Engenharia Civil. Dada a gravidade do fenômeno, preferi ignorar.

Ao descer na parada, notei esquisitas e esfarrapadas turmas que passeavam. Comecei a esperar a trilha sonora com cantiga de lavadeira de novela da Globo rodada na região cacaueira da Bahia, ou que a qualquer momento surgisse, com saltos de ginasta, o aéreo vocalista do grupo Cordel do Fogo Encantado recitando Waly Salomão. Imaginei que logo veria o Manu Chao no maconhódromo das mangueiras, ele a escrever a letra de uma cumbia sobre o Fórum Econômico de Davos.

No galho de um sapotizeiro, um gigantesco papagaio palrava excertos do carnavalesco livro Cem Anos De Solidão. Da entrada de uma unidade didática da Química Industrial, os incríveis Nerso da Capitinga e Amácio Mazzaropi gritaram: "Vorta, lôro!" Perguntei: "O que é tudo isso?" A tagarela ave respondeu: "São ELES!"

Captei. Andei por uns blocos e era um tal de redes, esteiras, tendas de lona, fogareiros improvisados, odor de cachaça. Na porta do auditório do Centro de Tecnologia, anúncio de uma mostra de filmes. Só crássicos. A Greve, do Eisenstein; Vidas Secas, do Pereira dos Santos; Viva Zapata!, do Kazan; Queimada, do Pontecorvo; Memórias Do Subdesenvolvimento, do Gutiérrez Alea.

Eram eles. Matutos. Arigós. Tabaréis. Hillbillies. Família Buscapé. Rei do Gado, Jackson Antunes, Patrícia Pillar. Capa da Playboy de outubro de 1997. Os queridinhos da CNBB. Vermelhou no curral. MST. Soube depois que era tradicional aquela invasão ocupação. Colônia de férias. Zeladores, seguranças, pesquisadores, bolsistas e geral não reparavam. Era como uma visita de gansos migratórios.

Na coordenação, a secretária defensora de animais, com a simpatia de um prego enferrujado transpirando tétano, balbuciou que o sistema, para variar, estava fora do ar. Uma rima, e longe de ser uma solução.

Decidi aguardar. Fui jogar SuperTux no LEC, um dos laboratórios de informática.

Meu desempenho ia bem, obrigado. De repente, a meu lado esquerdo, materializou-se o Bob Relative, com sua voz de marreco e corpo de Jotalhão. O eterno insurgente caricato, o teleguiado #1, o mamulengo-mor, o capo di tutti i capi da série sub-25 - poderia ser QI, mas é idade - do PSOL no curso de Computação. E PSOL parece nome de doença, não acham? "Lamento profundamente. O senhor foi diagnosticado com psolíase. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino. E também dá tempo de preparar um Nissin Miojo." Ele me mandou um tapinha cafona no ombro e disse: "Chapa, tu libera a máquina aí? Vai ter uma aula prática de software livre pro povo do Movimento, beleza?" Ok, tovarich Bob. Concordo que aprender a lidar com texturas e vetores no Gimp será de grande importância para badernas no Pontal do Paranapanema, pilhagens de adegas, barricadas em sede do INCRA, manifestações com máscaras anarquistas e depredação de instalações malvadas da Monsanto.

Minutos voaram, o NPD colaborou e resolvi minha complicação. Curioso, corri a espiar flagrantes do inusitado cenário de varizes abertas da América Latina. Canavial de paixões revolucionárias. Já assistiram a O Ataque Dos Vermes Malditos, sucesso das tardes do SBT? Monstrengos relacionados ao solo.

Na cantina do departamento de Física, aglomerava-se uma cambada jovem. Alguns com a fatal camiseta escarlate. Todos ostentando um visual sertanejo mais epic fail que as sobrancelhas de Leonid Brejnev. Receei que me passassem piolhos. Era uma rodinha de violão. Acústico M(S)TV jeca exalando subversão fashion da roça. Avizinhei-me. O encardido seresteiro e o coral de posseiros arranhavam Namoradinha De Um Amigo Meu, do Roberto Carlos. Dichter und bauer. Poeta e camponês. Que brutal ironia ouvi-los ganir o trecho "O que é dos outros não se deve ter". É a grei dos vestidos rotos de chita, dos chapéus de palha, da enxada, das puídas alpargatas de couro, dos calcanhares rachados, da iniciação sexual com caprinos, ovinos, eqüinos, suínos e bovinos. Os netos abirobados do Urtigão. Os primos debilóides e rebelóides do Chico Bento. Os filhotes degenerados de John Lackland. Aposto um fio do bigode do José Bové como havia caboclo ali que, de agricultura mesmo, conheceu apenas, quando era criança pequena lá em Barbacena, a tarefinha do colégio de cultivar o pezinho de feijão no algodão dentro da vasilha.

Mudaram de faixa. Acordes de um brega do Reginaldo Rossi. Animado pelo espírito de fuleiragem que imperava, cogitei pedir ao menestrel que executasse a melô do Olavo de Carvalho. Seria linchado à base de foice afiada, isso sim. No clima de descontraídas vaias, inevitáveis onde quer que apareça uma sessão de música de corno, empolguei-me e disparei uns TOCA RAUL em meio à barulheira. Estranhamente divertido. A parte que me coube deste latifúndio de insensatez.

N'As Vinhas Da Ira pelo menos existiam os caipiras falidos pés-de-poeira sem eira nem beira que, enquanto descansavam da árdua labuta de procurar um Eldorado, gostavam era de dançar Turkey In The Straw e Oh! Susanna com a rabeca e o banjo dominando. Em vez de flertar com estelionato rural.

Um dia eles foram embora, brincar de acampamento alhures. Não me consta que durante a estada dos capiais tenha ocorrido registro de agressividade ou do costumeiro vandalismo. Reza a lenda que uma figura do alto comando encontrava-se na pracinha que fica perto de uma das saídas do campus e teve uma epifania. No playground, garotinhos burgueses berravam que o velho McDonald tinha um sítio, ia-ia-ô. A liderança escutou e rapidamente transmitiu aos companheiros que era hora de partir e atacar a filial de lanchonete multinacional mais próxima, a fim de apurar a informação. Brilha muito na reforma agrária.