sábado, 28 de fevereiro de 2009

Telúrico

No início do ano, a prefeita, sob o signo do constrangimento, tomou posse sem a presença de seu vice. Eles estavam em desavença. Imaginem. O sujeito fazendo beicinho e caprichando na expressão de magoei. Acredito que isso pertença à tradição que inclui nomeação de cavalo para o Senado de Roma e congressistas sul-coreanos trocando socos no parlamento. Foi nossa modesta contribuição ao eclético anedotário. No Ceará é assim.

Não é o caso de eu encarar Fortaleza em plena canícula do meio-dia e bradar "Basta, cidadezinha. Esse hemisfério é pequeno demais para nós dois. Bang!" Seria uma bobagem.

Sei que há o charme oscarwildeano de quem investe na gaiatice depreciativa e sarcástica. Mas hoje não, obrigado. Não bancar o cronista da raiva contra o local em que se nasce. Partindo do pressuposto de que não seja exercício de sátira ou de provocação, é uma raiva que se leva excessivamente a sério, que se ressente de não ser, e pela convicção de que jamais será, amor. De nada encontrar em seu torrão de origem que desperte um amor capaz de suplantar o asco pelo que é vício nativo. Ao colunista Mainardi, velho palhaço, aquele abraço.

O desafio cotidiano de não deixar emergir minha porção Falling Down ao ver um Del Rey com adesivo "RASTREADO POR FOFOQUEIROS", candangos me convidando para ir ao Ceará Music ou ao Fortal, reportagens mostrando crianças feiosas do interior almoçando mandacaru, topetes à Chimbinha da Banda Calypso (eles que provam como o Norte não é apenas malária e canibais) e discussões sobre literatura regionalista.

Não tropeçar ao ensaiar ginga de equilibrista no canteiro central abarrotado de lixo em frente ao Shopping Benfica, para não ser atropelado enquanto espero o sinal abrir para os pedestres. De segunda a sexta, quando volto para casa à noite.

Testar a paciência de Jó. Diante de um batalhão de repentistas recitando Nordeste Independente, da voz do Fagner (Fag: nome é destino) ou da Samantha Marques, de sobralenses bravateiros (redundante?) comentando a experiência do Dr. Einstein, de flagelados grunhindo nóis sofre, de forrozeiros encharcados de Ypióca e gasguitando cultura da gente ou alevanta as mãozinha, de políticos que falam assoviando, de competições de quadrilhas de São João, de entrevistas com o Zé Genoino, de zoada de mobilete ou de Jangadeiro FM às 2 da madrugada, de pedintes tocando sanfona ou pandeiro.

Permanecer nas CNTP ao pensar na existência de determinados bairros. Desses bairros é que saem bandas de pagode chamadas Prabalá, Kilenhada ou Kebraê. Desses cafundós que vem aquela saraivada de pedras nos trens. Nesses buracos é possível ouvir, às toneladas de watts, Beto Barbosa, Pinduca, As Marcianas, Carlos Rilmar, Dedim Gouveia e Zezo dos Teclados. É desse chão que brotam as obesitas com topzinho rosa e shortinho de lycra e comendo pipocas amanteigadas + xilitos sabor torresmo ou arremessando sabugos de milho roídos até o derradeiro grão pela janela do ônibus em movimento. Nesses becos que surgem grupos de rap mamãe-quero-ser-do-Compton admirados pelos cheiradores & pitboys moradores do Dionísio Torres. Por essas vielas transita aquele pessoal, com camiseta de Aviões do Forró ou da Pitty, que forma as quilométricas filas para pleitear isenção da taxa de inscrição do vestibular da UFC. É de lá que vêm candidatos a vereador da estirpe do Praxedes da banquinha de churrasco. Nessas áreas residem os PMs de baixa patente que aparecem nos tablóides policiais da TV relinchando "diuturnamente", "positivo", "lograr êxito", "o mesmo evadiu-se". Esses redutos que são infestados de seres de menor idade brincando de bila, soltando raia com cerol, pulando elástico, rebolando com bambolês ou gazeando aula para ir à LAN house. É lá também que começa a carreira das mulheres-fruta, gordinhas com cara de favelada que toma banho de sol na laje ouvindo KLB e se lambuzando, via palito de picolé, com bronzeador caseiro estocado em pote de maionese.

Os ricaços e seu rosário de besteiras tornadas solenes pelo cifrão. Levando pela Praia do Futuro caríssimos chihuahuas encoleirados que parecem sobreviventes de barroada ou de incêndio. Comparecendo em peso ao vernissage de artistas péssimos, os cavalheiros de colete de camurça recomendando um balé indígena a que assistiram no Theatro José de Alencar, as damas trajando tafetá e debatendo as dicas de livros feministas que viram no Saia Justa de ontem. Glamour arretado. O rude e influente Barão do Crime, de infância no cortiço, reservando uma mesa no elegante Famiglia Giuliano, para desespero dos habitués descendentes de industriais e de joalheiros, que engolem calados a afronta e engasgam-se com ravioli. Realizando megafesta de 15 anos em que o Dado Dolabella é contratado para dançar com a monstrinho debutante ao som de Mariah Carey ou de Wanessa Camargo. Descrevendo a viagem a Miami, balneário oficial dos milionários kitsch. Enveredando pela pilantr, ops, filantropia, cada doação é um flash. Confiram a lastimável pronúncia deles no programa do Walney Haidar.

Não tecer insinuações ao ataque dos super-vilões no Banco Central, a guerra de gangues, a matadores oriundos de Jaguaribe, a trombadinhas do calçadão da Beira-Mar. Prefiro celebrar a memória do clássico diálogo do Chapolin:

- Veja, as Pirâmides do Egito.
- Veja, o Colosso do Ceará.

Ri do recente impasse entre o governador e o Fernando Carvalho, professor lá da Computação, sobre a paternidade de um projeto, egos mais inchados que cururu no brejo.

Ao ler os textos apócrifos na internet com as tradicionais Pérolas do Enem, recordo-me de Patativa do Assaré. Fama por escrever errado.

Às vezes percebo-me simpatizando até com os robozinhos dos preparatórios ITA/IME e campeões em olimpíadas internacionais de matemática.

A decoração de Natal da fachada da Secretaria Regional I, simplicidade que fascinava o pirralho que fui. Bailes e tertúlias no Clube dos Diários ou no Náutico Atlético. Cafiaspirina e elixir paregórico na farmácia Oswaldo Cruz. Caldo de cana na Leão do Sul. Guerra de pipocas no Cine São Luiz. Fantasmas no Casarão do Português. Compras na Samasa, na Paraíso, na Arca da Aliança, no Romcy. Cochilo na rede. Vestuário do período Accioly. Harmonias de Alberto Nepomuceno. BEC dos peixinhos. A maresia e sua corrosão acelerada litoral afora. Prédios sepulcrais e suas luzes de pinball. Binóculos de rapina espreitam por trás de solitárias cortinas suburbanas. A melancolia dos pândegos no vácuo pós-êxtase da saída dos bordéis. Arriscadas acrobacias em evento na Base Aérea. Orson Welles no Mucuripe. Eu ia a shows na Biruta e passeava na Ponte dos Ingleses. Já contei que o Tiririca foi meu vizinho?

Entre a vanguarda do atraso e o sonho de ganhar na loteria, vamos seguindo. Cafona, hein? Procuremos executar o melhor com o parco e defasado kit de ferramentas que nos coube. Ainda que esse "melhor" seja motivo de piada para a ABNT e a ISO 9000. Não pioremos a situação. Tinha que sobrar um caipora para ser a raspa do tacho, o anão da hierarquia, contentar-se por encarnar o ciclope no reino de cegos, o astro das notas de rodapé. Parem de reclamar e voltem para o batente, magote de filho duma égua sem costume.

É perda de tempo traçar cotejos com Metrópole da Garoa, Big Apple, Ville-Lumière, Città Eterna. Ou mesmo com Irauçuba. Lilian Sem Calcinha Ramos com o Itamar Franco no sambódromo não é Marilyn Monroe cantando Happy Birthday para o John Kennedy. O bode Ioiô empalhado não é o touro de Wall Street. Cearense vaiando sol na Praça do Ferreira é tão patético quanto carioca aplaudindo crepúsculo. Deborah Soft = Cicciolina. Ruim-zianne Lins não é Rosa Luxemburgo. Não iremos nos desculpar por nosso estilo de vida. Somos o que somos. E vice-versa, acrescentaria o jogador de futebol da lenda urbana.

A terra é um lugar onde se vive, onde há que suportar visões, ruídos, odores. E não sou eu que digo. Só repito o aventureiro Conrad.

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