quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

Cidadão Demóstenes

Lá vai ele insistir na inglória lavoura. Pregar num deserto de idéias mais árido que uma tarde egípcia. O cidadão Demóstenes acostumou-se às reações a suas prédicas. Apupos, cacarejos, "Velho malucooooh", "Cai fora, imperialistaaaah".

Surgem objeções decorosas, porém não menos tolas. Não se passa um arco de 15 graus no relógio de sol sem que lhe apareça um chato, seja diplomata ou bodegueiro, que venha conversar, com a benevolência forçada de quem se dirige a um esclerosado vovô Simpson: "Demóstenes, meu caro, Atenas tem uma reputação a zelar! Você quer que hostilizemos assim um povo? Eles são excêntricos e de têmpera violenta, é verdade... Daí a vituperá-los de bárbaros... Suas propostas absolutamente não se coadunam à nossa fama de sofisticação, da qual quiçá até os selenitas e os klingons já tenham ouvido falar. Francamente, meu querido...!"

Caduco, obtuso, paranóico, intolerante, doido com mania de perseguição, brucutu, papangu, véi turrão e mula manca, alcunhas que brotam de boca em boca nos locais por onde ele transita. Rob Crusoé ilhado por suas opiniões.

Volta para casa sobrecarregado de conjecturas após a n-ésima sessão de Filípicas, fracasso de público e de crítica. No trajeto, muros poluídos por cartazes que dizem "Oráculo de Delfos trás [sic] a pessoa amada" ou "Quer emagrecer?". Pensa em seu prestígio de orador, que está indo por Egeu abaixo, além do alcance de exímios escafandristas. E é com hipóteses sombriamente aparentadas dessas que ele chega a seu lar, em um ponto elevado da região. É um excelente - $$$ - bairro, o dele, e a julgar pelo que silvam as áspides especialistas do mercado imobiliário, a valorização do metro quadrado vai de vento em popa.

Aboletado em uma cadeira de vime na varanda do 2° andar, ele tem uma privilegiada visão da pólis. "Triste é o tal de Sebastião Salgado!", imagina o prócer, "Por que ele não fotografa portentos como ESTE?" (tenta representar as maiúsculas com um teatral abrir de braços). Diante da grandiosa panorâmica, sua disposição melancólica persiste. É com lentes de preocupação que ele vê aquele amontoado de vida. Que inusitado, [um lugar] exalar tamanho vigor e ter raízes tão frágeis. Aflige-o um medo pueril de avistar, na lonjura, os cães rosnantes da Macedônia. Será ele um visionário, uma Cassandra? Ou um sujeito por demais amedrontado?

"Atentem para o que esses arruaceiros andam cometendo, e observem tudo isto aqui!" Sim, fato inconteste. Os Seus haviam construído Algo. E quão regozijante era sentir-se envolvido naquilo - cheio de virtudes e de defeitos -, na manutenção daquilo. Eles poderiam ter ficado indefinidamente a pular em galhos e a catar piolhos das peludas namoradas. Mas não. Desceram dos amieiros, trataram de endireitar a coluna e rumaram para o serviço pesado, a trabalhar, a erigir, a reformar, a guerrear. O receio de ver arruinado o produto do esforço ancestral contaminava-o com uma sensação ruim e misteriosa, uma nostalgia precoce, análoga à cinematográfica saudade do trenó Rosebud. Paradoxalmente, era espetacular reparar nos mínimos detalhes e ver que eram tributários da labuta de seus antepassados.

Inclusive os jovens vulgares que avacalham seus discursos. Atingiram a adolescência sem precisar enfrentar uma tradicional loteria na qual o azar significaria ser abatido aos 4 meses de idade em um rito de infanticídio para amenizar o mau humor de uma divindade depravada. Seu filho, que estuda Engenharia Bélica em um instituto militar de Esparta (a Esparta da extremamente severa injunção de lançar bebês ineptos do alto de um desfiladeiro), graças a Zeus já saiu da fase punhe-teen. Uma vez, flagrou o maroto no quarto de banhos com uma dessas publicações eivadas de mulheres desnudas equilibradas em sandálias com salto de acrílico. Limitou-se a retirar-se do recinto. Por trás - sem trocadilho - da revista licenciosa havia uma editora. Uma empresa igual a tantas, com CNPJ e uma sede no Centro. E o que comentar das garotas sem talento e com suas alentadas nádegas expostas nas páginas? Provavelmente, distribuem autógrafos para filas de atrasados mentais. Elas não foram jogadas em um buraco para ser mortas a pedradas, como punição por conduta desavergonhada (cenas do pesadelo que ele teve em uma incômoda madrugada). O porteiro estrangeiro que fala "seje" e "menas". Um homem que nunca fez de seus frugais recursos motivo para rebelar-se. Ele resigna-se, melhor que uns com título de doutor, com o que a estrutura reserva aos que falam "seje" e "menas". O lacaio gosta do nababesco apresentador de TV que também pronuncia enormidades, sabe que o showman é uma exceção. O apresentador, por sinal, está na capa da atual edição de um tablóide cretino e retardado dedicado a futricas concernentes a subcelebridades. Tal papel sujo circula livremente por aí. E se um imenso aparato de patrulha e de censura truculenta monopolizasse as decisões a respeito do que é ou não cretino, do que deve ou não sair do prelo para as bancas? Que infâmia! Lembrou-se de sua bela e confortável morada, de arquitetura primorosa, um indicativo de que sua família não era um bando de nômades sem eira nem beira condenados a bater perna pelo continente em surtos de pilhagem, matungos xucros ocupados unicamente em fuçar os cochos alheios. E a corja de artistas - a maioria, reles trocatintas, espancadores de lira ou versejadores de 5ª -, depressivos da geração Fluoxetina, que para o delírio de tietes exercem o ofício e hobby de projetar a causa de seus achaques afrescalhados no que vulgarmente chamam de sociedade decadente & conformista. Pois experimentem arremessá-los no coração da anarquia de alguma das nações cujo nome termina em -istão. Ei-los prestamente esquecidos de seu culpado espírito oprimido pelo usufruto de bem-estar elitista, e em permanente fuga de barata tonta, para não morrer por ninharias no meio de incessantes, cruéis e inúteis refregas tribais ou entre seitas ou entre facções políticas. E muito ainda citaria. Sua filha de férias em Canoa Quebrada, os aposentados praticando hidroginástica no SESI, os museus, as bibliotecas, as cariátides, a cafonice festiva dos jogos olímpicos.

A comparação com o que ocorrerá - afirmam que não é sensata sua certeza - deixa-o em condição de ridículo e abestalhado ufanismo. Orgulhando-se do restolho, do que minutos antes considerava lamentável nos modos da sua gente. No paroxismo de uma breguice épica, seria capaz de abraçar intratáveis nerds como Tales e Pitágoras, agradecendo-os por suas valiosas descobertas para a humanidade, bla bla bla. Gênios com qualidades ótimas de se elogiar e péssimas de se conviver. E outros aspectos da riqueza, que inexplicavelmente raros enxergam, ziguezaguearam pela atribulada mente do ilustre palrador ateniense. Apesar do predomínio do recente modismo filosófico que é a dúvida, encontra gáudio junto a uma convicção: ele e seus semelhantes, os de ontem e os de hoje (míopes, coitados), criaram e foram/são parte de Algo que definitivamente vale a pena conservar. Mas o pior há de prevalecer. Diagnostica que sua ansiedade é sintoma da iminente débâcle do mundo como ele o conhece.

Sente-se no direito de guardar a ínfima esperança de que os invasores botocudos tenham uma vaga intenção de preservar o que foi feito em sua requintada e cobiçada terra natal. Humilhante agarrar-se a um fiapo tão mirrado de fé no porvir. Partidários de não-agressão, colegas de Areópago, idiotas úteis de diferentes matizes, na hora da queda final iriam às ruas com um miniletreito à Las Vegas ao pescoço com a frase "COMPREENDEMOS VOCÊS" piscando em diversos idiomas. E os gângsteres futuros donos desse chão lidam com sutilezas? Ou com linguagem escrita? Veriam apenas mais dos nossos. Ergo, merecedores de terem a cabeça esmagada por uma clava sem a menor cerimônia. Esses senhores da oposição, por enquanto ilesos, são os que argumentam que "é só o jeito deles", "não há razão para alarmismo", "ajamos na defensiva, se for o caso".

Atina que sequer tem o consolo - agora, um luxo - de perguntar "Consumada a derrota, o que acontecerá?". Não se indaga a um pé-duro que corre a latir no encalço de uma veloz Brasília 79 o que ele faria se o calhambeque parasse. Porque era possível que eles fizessem: Nada. Ok, vão com o fito de aniquilar, depois escravizar a meia dúzia de sobreviventes. Entendido. Mas, e em substituição ao que existia e foi pulverizado, o que vão pôr? Nada. Um totalitarismo orwelliano lotado de suntuosas estátuas ao estilo Niyazov seria brando. Eles talvez simplesmente espezinhem a argamassa de suor e de sacrifício, façam churrascos profanos de tudo o que é mais estimado, confraternizem durante umas semanas entre as ruínas e... Partam, sem olhar para trás, em busca de outra aventura bucaneira. Ora bolas e cubos, e por acaso mencionaram reivindicação do quer que fosse? No máximo, os incivilizados ergueriam, à base de entulho, uma réplica do Coringa com a inscrição "Why so serious?". Uma homenagem a nihil, a nova ordem do dia. A brutalidade pela brutalidade, um fim em si. É espremido por inquietações que o ateniense intranqüilo acaba dormindo, de puro cansaço especulativo. Na varanda, sentado à cadeira de vime, a aragem soprando um hálito de sono.

EPÍLOGO: 2009, d.C. América Latina. Brasil. Ceará. Fortaleza. Benfica. Bar Pitombeira. Happy hour com membros do baixo clero do curso de História-UFC bebendo cerveja. Em contenda, professores prosti, ops, substitutos, broxas e mal remunerados, divergem de alunos do 2° semestre, andróginos usuários de Valium e fãs-leitores de Emir Sader, numa questão sobre personagens da Batalha de Queronéia e a posterior capitulação de Atenas à Macedônia. E sobre o suicídio do cidadão Demóstenes.