terça-feira, 30 de abril de 2013

O homem desesperado que era quinta-feira

O rosto do Caio me lembrava do quadro O Homem Desesperado, do pintor francês Gustave Courbet. A barbicha de cabrito albanês, as feições gaulesas, os olhos castanhos e assustados que transmitiam tensão como uma antena transmite ondas em hertz, o cabelo em desalinho que o deixava parecido com o humorista Adamastor Pitaco. Conheci-o nas cervejadas da faculdade, ele era aluno da Geografia. Repleto de furores anarquistas, ele possuía o dom e a arte de estragar qualquer roda de conversa ao trazer à tona a luta dos índios Parakanan, a importância dos gasodutos, o drama do polígono das secas, o perigo dos rios assoreados e o potencial das jazidas de manganês. Tocava baixo num trio de punk rock, Os Bolsonaros. Ao saber que eu estudava Computação, pediu que eu produzisse um vírus para infectar o site do governo estadual.

Certa vez ele requisitou meus serviços e fui à casa dele fazer manutenção num defeituoso PC Duron. Mal entrei e enroscou-se em minhas canelas um gatinho mestiço que ele recolhera da sarjeta e que se chamava Hassan Mimi (Hassan em alusão ao fundador da Irmandade Muçulmana). Ou seja, o surrado e patético perfil do revolucionário misantropo que busca refúgio no convívio dos quadrúpedes pulguentos. Enquanto labutei com a chave de fenda na carcaça da máquina esse falastrão não me deu sossego. Atulhou-me de recomendações bibliográficas, Diógenes de Sínope, Max Stirner, Bakunin, Kropotkin, Malatesta. Cultivava até um panteão particular de ídolos, uma extensa e cansativa galeria de depravados idealistas, de degenerados por uma causa, os antípodas da minha classe, a dos conformados e confortáveis. Indivíduos que provocaram um barulho dos diabos e magnetizaram milhares de opiniões, a favor ou contra, em suas respectivas épocas. E agora evanescentes na quilometragem do tempo, na poeira do esquecimento. Max Hödel, Nikolai Rysakov, Roderick Maclean, Ravachol, Santiago Salvador Franch, Leon Czolgosz, Gaetano Bresci, Gennaro Rubino, Manuel Buíça, Alexandros Schinas, Fanni Kaplan, Mario Buda, Bhagat Singh. Ele era autor de um blog, o Granada Verbal, e postava sob o pseudônimo de Princip. Obviamente, nada relacionado a essa instituição decadente e cheia de sífilis que é a monarquia. Mas sim uma referência ao sujeito que ele considerava o maior arquiteto de destruição e projetor de ruínas de toda a História, aquele cujo nome pode ser tortuosamente associado a eventos tão díspares quanto a Batalha de Verdun e a Ofensiva do Tet, o assassinato do veadão nazista Ernst Röhm e a crise dos mísseis em Cuba: Gavrilo Princip. Caio era ainda um garotinho quando assimilou o radicalismo, espécie de catapora ideológica. Apedrejava vitrines de delicatessen e fugia gritando "e as criancinhas carentes morrendo de fome!".

Arrisquei uma sincera questão:

- Por que tu não arruma uma namorada?

- Tive uma. Ela era do PETA, manja? Um dia rolou um desentendimento brabo, rompemos e ela me trocou por um corgi. Cachorro de elite! Que sacanagem.

- Rapaz, essas teorias de atentado são boas no papel. (mentira; na ocasião eu já suspeitava; e hoje percebo que era um papo tão convincente quanto uma peruca de Donald Trump, tão confiável quanto um foguete da Coreia do Norte, tão sensato quanto um texto de Eliane Brum, tão agradável quanto um exame proctológico) Mas na prática quase sempre terminam prejudicando gente inocente.

Ele respondeu, incisivo e na lata, ecoando as palavras do implacável Émile Henry:

- Não existem inocentes na burguesia.

Era um ateu assumindo prerrogativas do deus Enlil dos sumérios, tomando decisões de vida e de morte, arrependido da criação e invocando o dilúvio purificador.

Horas depois de concluído esse trabalho, eu estava de bobeira deitado no meu quarto, mirando a brancura do teto. Tentava recordar onde eu vira um aparte para o monte de bosta perniciosa que escutei naquela tarde. Levantei-me, encarei a estante e puxei um volume. O Homem Que Era Quinta-Feira, G.K. Chesterton, 1908. Procurei trechos marcados. Era isto:

"O punhal era simplesmente a expressão da velha pendência pessoal com um tirano pessoal. A dinamite não é apenas nosso melhor instrumento; é o nosso melhor símbolo. Para nós é um símbolo tão perfeito como o incenso para as orações dos cristãos. Expande-se; só destrói porque se expande. Assim também é o pensamento: só destrói porque se expande. O cérebro do homem é uma bomba, bradou abandonando-se subitamente à sua estranha paixão e golpeando o crânio com violência. Meu cérebro sente-se como uma bomba, noite e dia. Precisa explodir! Precisa explodir! O cérebro do homem deve explodir, ainda que arrebente todo o universo."

E isto:

"É natural, portanto, que estas pessoas falem no advento de uma era de felicidade, no paraíso do futuro, numa humanidade liberta da servidão do vício e da servidão da virtude, e de coisas semelhantes. Assim também falam os do círculo interno, os do sacerdócio sagrado. Também falam para as multidões aclamadoras da felicidade futura e da humanidade que um dia será livre. Mas em suas bocas (e aqui o guarda baixou a voz), em suas bocas essas frases ditosas têm uma significação aterradora. Eles não têm ilusões; são demasiadamente intelectuais para crer que neste mundo o homem possa libertar-se uma vez sequer do pecado original e do combate. Suas palavras querem dizer morte. Quando asseveram que a humanidade há de ser livre algum dia, têm em mente que a humanidade há de suicidar-se. Quando falam de um paraíso fora do bem e do mal, têm em mente o túmulo. Visam apenas dois objetivos: destruir primeiro a humanidade e depois destruírem-se a si mesmos. É este o motivo por que lançam bombas em vez de disparar pistolas. A tropa dos inocentes fica desapontada ao ver que a bomba não matou o rei, mas o alto sacerdócio regozija-se por saber que matou alguém."

Perdi contato com a excêntrica figura em 2005. Aconteceu um confuso protesto de metalúrgicos na Avenida da Universidade, perto do prédio da reitoria, e o Caio lançou um Molotov num policial militar. No tumulto consequente, o vândalo conseguiu livrar a cara misturando-se à multidão enlouquecida. Segundo comparsas, ele juntou umas economias e despachou-se imediatamente, de carona em um navio cargueiro que rumava para a Espanha. O guarda escapou vivo, ao custo de 20% do corpo queimado. A velha e macabra receita dos ovos quebrados para a omelete. Iguaria que, apesar das medidas extremas para seu preparo, nunca chega a nossas mãos, como no mito de Tântalo.

E aí que semana passada eu observava umas manchetes no portal Terra e cliquei na notícia de uma manifestação de rua em Madri. Fulanos na Plaza de Cibeles bradavam slogans sobre o nudismo cicloativista, os drones no Paquistão e o desemprego que assola o continente do welfare state. O negócio desandou em pancadaria e um baderneiro com máscara de Guy Fawkes tombou morto com um tiro no peito disparado pela tropa de choque. Sem documentos, a vítima circulou na imprensa identificada apenas por um vago apelido de guerra, Caballero Princip. Será?, especulei. Se for, topou com o destino que as mentes intempestivas e atormentadas fatalmente encontram: o estouro. Blow out.