domingo, 27 de fevereiro de 2005

Viva la muerte

A filha de uma amiga da minha mãe já tentou suicídio.

Ingeriu uma dose de raticida.

Falhou.

De acordo com a Central Leão Lobo de Notícias, a garota havia sido dispensada pelo namorado.

Ficou deprimida.

Quando mãe me contou, achei engraçado.

¿Quién es esa niña? Who's that girl? Não sei até onde foi a sinceridade do procedimento da fútil garota mimada, mas sei isso: o quase-crime contra si põe a pirralha 3,5 centímetros acima de sua habitual mediocridade de fêmea púbere da classe emergente, concede-lhe por 15 minutos uma aura de pseudo-Ofélia (a da peça de Shakespeare, não a da Cozinha Maravilhosa, óbvio) cearense, além de presentear blogueiros e as vizinhas gordas e varizentas e de cabeças enxameadas de bobs com uma excitante ruptura na pasmaceira do bairro. Digna de drama de novela das 8 e logo ali na outra calçada. Emoçãozinha barata, de R$ 1,99, para nossas alminhas suburbanas. Há também uma efêmera e duvidosa celebridade que aposto como até a autora sobrevivente da travessura, no momento oportuno vai apreciar ou mesmo envaidecer-se de.

Essa tragédia abortada é o Sazon que transforma a insípida jovenzinha em questão numa spice girl, é uma façanha de baixa ordem, é merecedora de nota de 6 linhas curtas em jornal local, é uma turbulência com máscaras caindo do teto da rotina, chega a ser charme para uma parcela do público. É, enfim, um tchanananan na ausência do qual eu dificilmente sequer saberia da existência dessa menina, que seria apenas mais uma deficiente de prendas num ecossistema onde abundam lambisgóias exibindo minissaia, camiseta da Avril Lavigne e imaturidade.

Brotinhos passionais e instáveis à parte, a galera ishperta e pragmática de plantão, essa sim entende do riscado e sabe como extrair dividendos de flertes com a indesejada das gentes. É fácil. Você aí, que toca numa banda de pop. Quer uma boa jogada marketeira para quando seu grupo, por um desses insondáveis mistérios tipo neutrinos e mãe virgem de messias, for selecionado para tocar no palco secundário ou terciário do megafestival que reúne todas as tribos? Na véspera do show, enforque-se no quarto com uma corda fuleira, ou engula também uma quantia light de chumbinho, ou beba mililitros de água sanitária, ou corte os pulsos com borda de papel ofício, ou tenha uma overdose meio fake, ou arme um circo midiático de horas ao ameaçar pular do viaduto da Mister Hull. É garantido, tudo pronto para sua sonoridade (híbrida de Jota Quest com Kelly Key) tomar de assalto, tal qual blitzkrieg, o top hits das rádios, as manchetes de jornais e a parada de clipes da versão regional da MTV. Que passaria em brancas nuvens se você teimasse em permanecer enfadonhamente ileso.

sábado, 19 de fevereiro de 2005

Uma conversa

Aconteceu-me um caso curioso. A imagem do meu profile no Orkut incomodou um jovem muçulmano que por ali passava. O califa tá de olho no decote dela e no avatar dele. Como bom protótipo de carinha super duper legal preocupado com o bem-estar do próximo e do distante, tratou de advertir-me. Percebi que aquilo poderia ser o prenúncio de algo engraçado e, de fato, travamos o seguinte colóquio absurdo via scrapbook (é sério; a quem interessar, aqui e aqui):

Guilherme: pq vc usa uma figura de um mujahidin islâmico? vc deveria trocar...tem muita gente q não acha isso certo

Salaam

(OBS: Em "tem muita gente q não acha isso certo", leia-se "eu não acho isso certo, mas vou enrustir".)

Silvio: hehehe
aí é que está a graça...
eu tinha várias opções de avatar:
- um traveco fantasiado de hitler
- jesus cristo com uma máscara de jason
- o osama comendo o rabo do w. bush
Mas acabei escolhendo essa, sem nenhum motivo especial. O importante era ter um aspecto lúdico e politicamente incorreto.

Guilherme: troque irmão...não é bom brincar com a religião alheia...use outro...mas cuidado... Jesus é um dos profetas sagrados do Islam...E vc não deve brincar com terroristas como Laden...

Melhor seria vc usar sua própria foto...o que acha?

(OBS: Viram o que eu disse, haréns do meu Brasil? Como sempre, desejando o melhor ao próximo. Lindo.)

Silvio: aí é q tá: eu não tenho nenhuma!

(OBS: Mentira. Sou mais manhoso que a Sherazade.)

Guilherme: lembre-se, essa foto de um mujahidin não é motivo para risos...ele luta pela glória da religião que ele acredita...respeite-o...

a comunidade muçulmana brasileira agradeçe

Allahu Akbar

(OBS: "agradeçe". Abdullah, meu filho, favor dar um descanso para o Corão e consultar livrinhos com dicas ortográficas do Itamar Filgueiras ou do Napoleão Mendes de Almeida.)

Guilherme: use outra irmão...vc certamente tem alguma outra opção...

Que a Paz esteja com você e que Allah te ilunine para que você siga o caminho reto

(OBS: Promoção: as 50 primeiras pessoas que ligarem ganharão um mapa do caminho reto e um cinturão de TNT. Tem como você vender para mim um par daqueles sapatinhos de bicos extravagantes?)

Silvio: não sei, não sei, vou pensar...
valeu! gostei da conversa! abraços!
só lembrando: BUSH IS STUPID

(OBS: Falsidade comanda. Tática "fale o que acha que a platéia gostaria de ouvir". Sou hipnotizador de naja.)

Guilherme: vou acompanhá-lo irmão...

desejo que vc entenda que não deve usar imagens de irmãos na jihad para uso cômico...

acima de tudo...

Em nome de Allah, O Clemente, O Misericordioso

(OBS: "Cômico" é o novo, viu, moço da esfiha. Conheço um forró de duplo sentido que é assim: "eu sou o cômi-cuh/eu sou o cômi-cuh/eu sou o cômi-cuh da televisão".)

Silvio: Pronto! Q tal agora?!
Esse aí é o Jason Vorhees da série Sexta-Feira 13. Sem a máscara!

(OBS: Pronto, Alladin. Fiz minha boa ação do dia. Tudo pela deferência à comunidade Mussum-mana. É nóis na fita e no tapete voador. Quero um troféu Leila Khaled e uma medalha Amin al-Husseini de pacificador.)

E esse foi meu momento Theo van Gogh. Salam 'Alaik.

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2005

Uma vitória

Agradeço a meu pai e a minha mãe por terem me educado tão bem e ainda assim eu ter sucumbido a esse ótimo vício desgraçado. Agradeço à Michele da comunidade DKC do Orkut, que me ajudou a encontrar o diacho do bônus com moeda DK que estava me tirando o sono. Agradeço a meus amigos, sem exceção, que solenemente ignoraram essa minha empreitada e não me deram qualquer tipo de apoio. Agradeço às férias, coitadas, que já estão se finando, sem vocês eu nada seria. Agradeço à Nintendo por ter criado um jogo tão bom. Agradeço ao King K. Rool, que foi o grande responsável por toda a loucura. Agradeço ao Mario - que vocês já conhecem - e ao Yoshi pelas ilustres participações. Foi difícil a odisséia, mas valeu a pena. Agradeço ao W. Bush por ter livrado o mundo daquele ditador malvadão. Agradeço, in memoriam, ao japa que morreu de tanto jogar Diablo, um mártir, exemplo de vida. Dedico essa vitória a todas as espécies de sedentários, obesos ou magricelos, devoradores de pizza calabresa com refrigerante, odiadores de academia, ratos de locadora, fugitivos da escola, fãs do Homem-Aranha e dos X-Men, de seriados japoneses com monstros gigantes, de RPG e fracassados no sexo em geral, aos disformes, esquizofrênicos que se relacionam melhor com macacos virtuais que com pessoas de verdade, que tanto veneram nossa tão incompreendida arte. A luta continua. E mando um alô também para a caravana dos(as) masturbadores(as). Sim, é, masturbadores(as). Que semelhantes a nós, gamemaníacos, sabem cultivar um prazer solitário ao alcance das mãos. Foi bom estar com vocês, brincar com vocês.

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2005

O reino que não é deste mundo

Voltei a jogar um dos clássicos do Super Nintendo, Donkey Kong Country. Ainda me empolgo e fundo uma seita para os que cultuam jogos eletrônicos. Acho que não é tão difícil. É um nicho de mercado que nunca satura. O de seitas, não o de jogos.

Começando por um mito de criação do universo, da vida. No início eram as trevas. Mais duas barras brancas, uma linha demarcatória central, um rústico placar e uma bola quadrada. O Jardim Pong.

Também seria interessante um Messias. Deixem-me ver, adotaria o japa que morreu de tanto jogar Diablo, sem se alimentar nem nada. "Ó irmãos, em breve ele voltará (será o dia do arrebatamento) e guiará os eleitos para a terra de onde mana PS2 e outros consoles."

Pregações aos urros em terminais de ônibus, nas praças, de porta em porta. Braços abertos, olhar transfigurado, na mão direita um livro sagrado, na esquerda, um símbolo idem. Os sacerdotes teriam uma dieta à base de trinta menininhas virgens por mês. Nada de menininhos, para diferenciar-nos dos procedimentos da Igreja Católica Apostólica Romana. Tamanha atividade copular justificar-se-ia pelos escritos do importantíssimo livro Sega Sutra, no qual é explicado que isso serve para manter-nos em sintonia com o reino espiritual, o reino que não é deste mundo.

Contribuições, lógico. Voluntárias, por favor, só de boa vontade.

Para depois do inexorável game over que há de cair sobre todos nós, a promessa de uma eternidade paradisíaca como recompensa para os que forem exemplo de retidão. Um dogma de metempsicose. Muitas vidas. E muitos continues (credits). Além de um código de conduta, códigos secretos.

Nos suntuosos templos, altares e pedestais para serem adorados consoles, cartuchos e joysticks de todas as eras. Venda, por preços módicos, de passwords para os que almejam alcançar mais rápido o Céu. O lucro seria investido em obras da santa congregação.

Orar e vigiar para defender-se dos seres iníquos e diabólicos da geração Paulo Cintura. A súcia do quarteto soja, granola, aspartame & açaí. Súcubos a tentar seduzir-nos com a heresia das vitaminas e das proteínas. Com sua influência deletéria e blasfema, afastando-nos do correto caminho, empurrando-nos para a acadimia, para a prática de esportes, para o suco de cenoura e para comidas com gosto de isopor.

Praticar a caridade e sempre convidar desafortunados amigos menos providos para uma partida de King Of Fighters.

Nosso credo teria sofrido um cisma tempos atrás, devido a membros, provavelmente possuídos por espíritos das sombras, que fundaram uma nova denominação. Cuidado com o que eles pregam. Eles não passam de farsantes. Aquilo em que eles crêem absolutamente non ecziste.

Realizaria um megaculto no Rancho Pixel, reunindo centenas de seguidores de vários rincões. Berraríamos de modo ensandecido cânticos de louvor. Às seis horas da tarde, a grande hora mística, cada um tomaria uma cuia do chá da erva Cannabis sativa e cometeríamos suicídio coletivo jogando o game do Sapo Xulé até a exaustão completa do organismo e da sanidade. Despojando-nos dos vãos corpos materiais, nossas almas, agarradas ao asteróide NGC666, pegariam carona para a morada cósmica, conhecida por nós como Castle Of Illusion.

Antes disso, recomendaria que comprassem o CD (só original) dos nossos grandes popstars e mascotes, divulgadores da doutrina entre a sociedade, o reverendo Marcelo Tetris e sua filhinha Eva, a menina pregadora precoce, cantando hinos de louvor. 20% do dinheiro arrecadado seria doado à Associação de Pais e Amigos das Vítimas de Minas Terrestres e Tsunamis de Baturité. Amém.

Acredito que seria divertido.

terça-feira, 8 de fevereiro de 2005

No carnaval, Juízo - Parte II

Os anjos (ou demônios) alados continuavam sua obra implacável. Moribundos contorciam-se de dores pelo chão, com pungentes gritos de pavor. Dos buracos dos olhos vazados escorrendo grossas lágrimas de sangue. O fenômeno rapidamente chamou atenção. Os gatos pingados que ficaram em casa corriam para as calçadas ou espiavam curiosos pelas janelas dos condomínios. Tudo era tão hediondo que quem via demorava a atentar para o real significado. E a algazarra complicou. Crianças chorando esgoeladamente, histéricas mulheres como que arrancando os cabelos, exaltados caíam de joelhos no asfalto e principiavam a debulhar um rosário de orações incoerentes em línguas estranhas. Todos eles foram atingidos pelo fio das espadas. Para os eleitos não havia o menor resquício de dúvida. O Dia chegara. O Fim. O Arrebatamento. O Juízo.

No rebanho dos escolhidos estavam (pelo menos eles próprios assim se consideravam): os que engordavam o dízimo da Igreja Universal do Reino de Deus S/A com cheques e jóias; os abnegados irmãos que nos admoestavam nos terminais de ônibus sobre as coisas de Deus e do Diabo; os homens santos que promoviam ressurreições ao estilo Lázaro na Praça José de Alencar; os menininhos que, após a missa, iam com o padre a um lugarzinho secreto para sentir a Pomba (esse pássaro é uma figura que remonta às celebrações cristãs primitivas, nas quais a ave representava o Espírito Santo; é só lembrar o episódio em que, quando João Batista batizou Jesus Cristo nas águas do rio Jordão, o Espírito Santo sob a forma de uma pomba pousou na cabeça do Ungido).

Cristãos fiéis, com um sorriso exultante e pleno contentamento, apareciam nas ruas para comemorar esse dia tão aguardado por tantas gerações. Alguns com filhos nos braços, explicando aos pequeninos que não tivessem medo. Um pastor evangélico bradava: "Deus é infinitamente sábio. Implantar Seu reino eterno com toda honra e toda glória justamente no período do supremo festim orgíaco de Satanás! Neste exato instante, em cada recanto do planeta devem estar ocorrendo tais e quais cenas como estas! Arrependei-vos! Ainda há tempo! Vou ter que cobrar um pouquinho a mais, devido à situação de urgência!" Ele e outros também tiveram a visão ceifada, sem clemência, pelas lâminas justiceiras.

Mas eis que surge, de dentro do mesmo vórtice que cuspiu os arautos da morte, uma nuvem alvíssima e, sobre ela, proeminente, estava um vulto de braços abertos. Um clangor de trombetas estrugiu tão brutalmente nos tímpanos dos que por ali estavam que daria para crer que ele retumbou até os ares do Cariri. Seria possível? Era Ele que finalmente voltava. Depois da tempestade, a bonança. Para os felizardos, claro, sem débito no carnê das virtudes. Os poucos que haviam preservado o dom da visão desmaiavam ante o prodígio.

Em verdade, era ele.

George Lucas. Uma das grandes personalidades do cinema norte-americano.

(seu discurso foi traduzido simultaneamente por um intérprete, através de um equipamento de som que repercutia pela avenida inteira)

- Aham... Minhas senhoras e meus senhores, bom dia. Desejo que tenham se divertido com mais um evento realizado pela Industrial Light & Magic (ILM), a divisão de efeitos especiais da LucasArts Entertainment. Querida platéia, espero que logo percebam o inefável privilégio que tiveram, participando de um arrojado e ambicioso projeto, acalentado por meu staff há anos, inédito e sem precedentes na história do entretenimento em massa. Vocês acabaram de ver, diante de seus narizes achatados, material de altíssima vanguarda, tecnologias utilizadas em superproduções como Star Wars (Guerra Nas Estrelas) e Back To The Future (De Volta Para O Futuro). Empregamos no show o que é top de linha atualmente em ilusões geradas por computadores, maquiagem, cenografia, holografia, luzes, projetores de imagens, trucagens com espelhos, transparências, películas (como as colossais usadas para isolar essa avenida), enfim, uma parafernália cuja compreensão está além de suas mentes terceiro-mundistas, hehehe. Fantástico. Como é que vocês dizem, hã, em espanhol? "Muy rico", acho. Si, muy rico. Pois bem, gostaria de começar os agradecimentos. Ao ilustre e visionário prefeito desta cidade. Aliás, vocês devem estar se perguntando: por que selecionaram nosso vilarejo, entre tantos? Um dos sócios majoritários de minha empresa já passou férias aqui. Na ocasião, ele se afeiçoou bastante a uma jovem acompanhante local, recomendada por um taxista e pelo gerente do hotel em que ele permaneceu. Era uma graça de menina, ele dizia, 12 anos de idade. Com aquele trabalho, ajudava a humilde e numerosa família. Imagine o desalento dele quando, em outras férias, contaram-lhe que sua infantil amante fora assassinada por vendedores de entorpecentes. Lamentável. Ao concebermos esse projeto, ele não pensou duas vezes e sugeriu a cidade de sua falecida amada para o espetáculo. Foi uma bela homenagem. Sou grato também aos nativos que, em troca de módicos cachês, aceitaram atuar como figurantes mutilados pelos nossos vingadores, realmente assustando os que não sabiam da brincadeira (nesse momento, pessoas descolavam suas feridas, feitas de uma camada de plástico; ex-mutilados e ex-mortos davam risadas e recebiam tapinhas de felicitações nas costas). Saudações aos nossos Cavaleiros do Apocalipse (os citados postaram-se lado a lado, montados sobre seus cavalos mecânicos e tiraram suas máscaras, acenando para o respeitável público; seus rostos eram de canastrões hollywoodianos). Ok, muito obrigado a ustedes. Tenham um excelente restante de Carnaval. Adios, muchachos!

(fortes aplausos de todos)

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2005

No carnaval, Juízo - Parte I

Aquelas ancestrais histórias acertaram em um ponto. Aconteceu quando ninguém esperava. Foi durante as orgias sambadélicas e chacinas automobilísticas do Carnaval. Em Fortaleza, os festejos não eram uma Brastemp, mas nas praias, o clima de liberou geral, dança do trenzinho, vai rolar bundalelê, trajes minúsculos, arrastão, porradas lado B lado A e pansexualismo garantiam a diversão. Falando em pansexualismo, nem as garrafas de cerveja long neck escapavam dos hedonistas da orla. Um festival de sensações em que o próprio Calígula pediria arrego antes do fim. A urbe desertificava-se com o êxodo em massa da população foliã para as Sodomas do interior, mais promissoras no que diz respeito a desrespeito e a desregramento.

Os programas policiais, ávidos por novidades. Com o fluir dos dias feito confete e serpentina ao vento, essa libido mórbida era satisfeita. Cito o caso de um turista, trucidado à base de navalha por membros de uma gangue originária da região de Maracanaú que resolveram curtir o feriado momino na capital. Fizeram uma limpeza nos pertences do estrangeiro e abandonaram em um calçadão o que restou dele. Próximo dali, dentro de um cemitério, realizava-se uma rave. Encerrado o evento, três sujeitos completamente embriagados e que não arranjaram mulheres foram para a praia curar a ressaca e o celibato. Caminhando, viram o local em que os meliantes largaram a vítima de latrocínio. O cadáver importado era um desses europeus em busca de aventura e topando tudo, das internacionalmente famosas meretrizes mirins a go-go boys. Acabou mal. Um dos pinguços, com o raciocínio ainda seriamente afetado pelas libações etílicas, mirou obliquamente um comparsa, pensando na matéria que tanto abundava nos contos da revista EleEla. Uma compreensão sem palavras e voaram trôpegos em cima do morto. O terceiro não entendeu de imediato, mas logo entrou na jogada. Horas depois, diligentes guardas da Polícia Militar rondavam por ali e perceberam a cena. Deram umas borrachadas nos papudinhos necrófilos e, como nada encontraram para uma extorsão, algemaram todos e chamaram o IML. Violado no mais estreito e íntimo, o defunto, posteriormente, protagonizou reportagens em ritmo de thriller.

Naquela mesma manhã, perto da inusitada ocorrência, perambulavam pelas ruas Petrônio e sua namorada Bitínia. Ele de bermuda, exibindo os cambitos e segurando uma máscara de plástico do Osama bin Laden. Ela de biquíni e canga, suas carnes flácidas à mostra, com uma peruca simulacro de dreadlocks jamaicanos. Ambos lambuzados com uma mistura de maisena com líquidos não-identificados, pois participaram da tradicional brincadeira carnavalesca conhecida como mela-mela. Pelo cheiro, o casal desconfiava ter sido atingido também por fezes humanas. Ele, jocoso. Ela, sob forte efeito de lança-perfume, a cantar marchinhas. Ambos flanando, à procura de aglomeração junto a uma Hilux com aparelhagem de som ultrapotente, da qual emanassem miasmas incoerentes de funk, forró analfabeto ou universitário, pagode, axé, techno, brega, pop brega, pop rock e sertanojo. Ao longe, era possível escutar várias dessas manifestações. Estavam numa ampla avenida. Foi quando Bitínia viu.

Agora, quem tiver ouvidos que ouça.

Houve um grande tremor de terra. E o sol tornou-se negro como um saco de silício. E o céu retirou-se como um livro que se enrola. O verão foi suplantado por um imenso véu de nuvens espessas, que giravam formando uma extensa espiral em cujo núcleo havia um vórtice de vento devastador. Dele surgiram silhuetas. Quatro cavaleiros devidamente paramentados, com uma empáfia de hussardos, montados suntuosamente sobre furiosos cavalos que expeliam fogo santo pelas narinas. Tinham a missão de exterminar parte do gênero humano. Porque chegara o dia da ceifa. Assim vaticinara o Deus de Abraão, de Isaac e de Jacó. O Deus que fez o Órion e o Sete-Estrelo. Bitínia testemunhava. Caíam seixos enormes no mar, provocando gigantescas ondas sedentas de morte. Abalos sísmicos, afrontando a milenar tranqüilidade geológica da cidade, geravam subitamente buracos abissais capazes de tragar dezenas de viventes de uma única vez. Em outros lugares, abriam-se fendas das quais brotavam dançantes línguas de fogo, assando sem dó alguns desprevenidos. Na escuridão quase total, só se ouviam os estrondos, o crepitar do fogo, os pedregulhos chocando-se contra as águas poluídas do mar e os gritos de horror lancinantes e desesperadores. E os cavaleiros deram uma violenta arrancada em direção ao solo com seus corcéis alados. Começaram a punir os pecadores sobreviventes com monstruosas espadas afiadíssimas, perfurando os olhos de todos. O insano e extremamente alto relinchar dos eqüinos era apenas mais um acorde na macabra sinfonia.

Bitínia assustou-se e ficou com enxaqueca. Sentou-se num banco de praça, encolheu-se com a cabeça entre os joelhos e aguardou que a bad trip passasse. Mas iniciaram-se os puxões de seu companheiro.

Após pedidos infrutíferos e vãs tentativas de erguê-la, ele pegou uma pedra tamanho médio e mandou com força no cachaço dela. Estava grogue. Anestesia geral. Bitínia apagou instantaneamente e tombou. A peruca que usava rolou pelo chão. Um pouco de sangue pelo cabelo pixaim.

Petrônio pendurou sua carga no ombro e, com as pernas bambas, meteu o pé na carreira. Como um condenado. Numa pressa de kartódromo do Eusébio. Parecia africano na corrida São Silvestre. De repente, sentiu o baque,

PAF!

Tropeçou para trás e caiu com seu fardo. Levantou-se. Que mandinga era essa? No final da avenida, existia um desmedido nada que o separava da esquina. Percutiu a superfície transparente contra a qual trombara. Toc toc. Vidro. Uma descomunal barreira feita de nada que estabelecia dois territórios bem diferentes. Da banda de lá, tudo vazio, sol de rachar, muita sujeira, exatamente como estava a banda de cá uns dez minutos atrás. Olhando para o céu, via-se onde terminava a porção com aparência amena e começava a parte com furiosas trevas. Uma finíssima linha reta distinguia os ambientes. Aquilo era catimbó dos brabos. Petrônio deixou-se cair, abraçou-se à desfalecida e ensaiou um choro tímido e sem graça.