sexta-feira, 1 de abril de 2011

Além do Bojador

Tomar banho todo domingo no chuveirinho dos fundos do cavernoso boteco praiano Ressaca de Tubarão deve ser morte lenta, arriscar-se a terminar igual à madame Curie ou ao elenco de Sangue De Bárbaros. Observação que me ocorre sempre que atravesso a ponte do rio Ceará. Ao redor, um insistente cheiro semelhante ao de salmoura que impregna a avenida Duque de Caxias nas imediações do prédio do DNOCS. É, paisagem insalubre. Saveiros balançam tristes numa massa líquida espumosa e turva que é quase um resíduo de siderúrgica. O ocasional vôo de gaivotas míopes. Sujeitos de aspecto rude descamam pargos e tilápias. A opressiva mudez de um cargueiro inválido, a ferrugem e as cracas que não dão a mínima para seu aventuroso pretérito de contrabando e de capitães com exóticas gripes meridionais. Entre os nativos das Goiabeiras, endemia de micose e de bicho-de-pé.

Com a maré da imaginação, porém, a gente consegue navegar para longe. Do nada, surgem os imponentes destróieres da arrebatadora última parte de Os Canhões De Navarone. A esquadra bombardeia sem piedade o feioso pedaço de cinzento mundo real, que se esboroa como se fosse de papel machê. Isso sim é equipe de edição. A área é reduzida a um monte de fragmentos de um branco de terno de almirante. Ótimo. Vou preenchê-los com um cardume de memórias delirantes. Preparar velas da gávea, içar âncora.

O destino, ao som de ukulele, é o Batoque, o ano é 2006. Eu sob um alpendre de palha, mirando o oceano Atlântico e sorvendo água de coco, único vivente em milhas, herdeiro de duna. A cada 20 minutos, um piloto de motocross riscava uma trilha em frente à barraca, o capacete de viajante espacial, o uniforme com dezenas de logotipos de patrocinadores. Siris e náutilos curtiam o ciclo das ondas. Uma brisa peregrina trazia acordes de reggaeton do Caribe, fedor de marijuana da ilha de Fernando de Noronha e gritos fantasmagóricos das garças e dos biguás que pereceram em demorada agonia no colossal vazamento de óleo na Baía de Guanabara em janeiro de 2000. Para eu não ter uma síncope de tédio, providenciei I) um monstro marinho que às vezes emergia o pescoço guindástico, II) um galeão pirata com o tombadilho repleto de um butim de especiarias, III) testes nucleares em um atol próximo, IV) rumores de especulação imobiliária desordenada no litoral e V) alemães interessados em roubar a patente da rapadura. Foi quando apareceu a Sra. Redonda. É sério, ela andou exagerando. Na caranguejada, nas toneladas de anchova, no sarrabulho, na jaca, no bolo confeitado de três camadas. Entabulou diálogo a gordossaura. Simpática a cetácea figura. A simpatia, republiqueta onde os jaburus costumam exilar-se. Mas até que funcionava, e dava para esquecer por poucos segundos sua total falta de noção e seu abuso de poluição visual na amaldiçoada hora em que escolheu o diminuto traje de verão, feito provavelmente de algum material de nome engraçado, popeline, tactel, pelanc, ops, helanca. Ela resolveu encarar o mar. Novo circunstante, brotou da areia, acho, um moleque fortão com jeito de surfista, talvez o Jonas do caso. Refletindo barulhentamente, comentei: "Espia aquilo, parece um peixe-boi, uma baleia encalhada, uma caravela adernando com excesso de peso. É a Ariel tamanho GG. Vai causar é uma procela com essa batida de pernas. Qualquer problema, vamos precisar de uma operação de dragagem para resgatar a hipopótamo." No que ele devolve: "Você diz, uh, ali, minha mãe?"

Antes que eu desfaleça de vergonha, ou pior, de um mata-leão, uma brainstorming dissolve bruscamente a constrangedora cena e me afoga num redemoinho que me arremessa no banco traseiro de um Celta verde. Julho de 2002. Uma peça do comboio que regressava de uma confraternização no Iguape. 2 pranchas no bagageiro do teto. Céu alaranjado de 5 da tarde. Pelas laterais dos caminhos, perto ou distantes, vimos sítios, bangalôs, carnaúbas, estrela cadente da Texaco, fábrica de suco de fruta cítrica, o ponto das tapioqueiras, silos graneleiros, hortas, moendas, madeireiras, olarias, maquinário das docas. De volta à capital, os contornos de uma cordilheira de edifícios já insinuantes, as janelas indiscretas, as luzes rubras das antenas de telecomunicação. Os tripulantes do veículo digeríamos recordações de bons momentos, barcos contra a corrente, rumo ao passado. O CD player afiado na seleção musical, Spy vs Spy tocando Clarity Of Mind. Na dianteira, o Thiago - ao volante - e o Lu. A meu lado, Debbie, estudante de Biologia e morena mais linda da turma. Dona da risada explosiva que me embargava o estômago, pensem em duas lagostas, as danadas brigando no meu bucho. Em nosso recém-concluído episódio de férias, fotografaram-na a jogar vôlei e pingue-pongue, a fingir-se de vesga, a mergulhar na imensa colcha azul-turquesa e a esquivar-se de lambidas da cachorrinha malhada Sigourney, mascote local cujas fileiras de tetas emprestavam-lhe a aparência da estátua da loba amamentando Rômulo e Remo. Dançou (biquininho letal, cabelo solto), com requebros de sacerdotisa balinesa, Superstylin', do Groove Armada, segurando uma lata de refrigerante com a canhota - o indicador e o polegar da direita em L espetando ritmicamente o alto - e usando grandes óculos escuros que lhe deixavam com ares de mulher-inseto de gibi dos 50s. Eu era caidão por ela. Garota nos trinques, de conversa magnetizante. Descemos na calçada do North Shopping, que fervilhava numa agitada lotação de gafieira. Debbie saboreava um copinho de sorvete. Em meio ao zunzum daquele templo de compre-e-parcele, eu disfarçava minha ansiedade contando piadas corrosivas sobre carecas safenados que xavecavam vendedoras. Declara logo para a diva as intenções, tanga frouxa. Quem quer passar além do Bojador tem que passar além da dor. Pigarreei e lancei a abordagem, meu anzol. Eu encerraria a história agora. Só que o intrometido de um demoniozinho interno, que preza pela veracidade - também senta na primeira cadeira da fila, adora o gestinho de abre aspas e gosta de apagar a lousa para o professor -, puxa-me uma orelha e sopra: colidi com um arrecife de evasivas em que se destacavam cortantes um Não e um Apenas amigos. Náufrago.