quinta-feira, 31 de maio de 2012

Folhas de um caderno do cárcere

A Primeira Guerra Mundial foi a aplicação do que posteriormente o general alemão Erich Ludendorff chamaria de guerra total. Um teatro de implacável encenação no qual figuraram marmanjos tão díspares quanto o comediante americano Bob Burns e o poeta franco-suíço Frédéric-Louis Sauser (Blaise Cendrars; ferido em uma explosão, teve o braço direito amputado).

Para uns, as batalhas eram uma aventura, um esporte varonil. Para outros, uma lástima, um morticínio degradante. A marcha dos pelotões, o ratatá das metralhas, a fuzilaria de rifles Mauser e Lee-Enfield, os estilhaços de granadas, os lugares reduzidos a escombros pelo canhoneio de howitzers, os pulmões destruídos pelo insidioso gás de cloro, tanques Mark em procissão, zepelins e aviões trafegando por um céu impassível, submarinos torpedeando navios brasileiros (e ensejando a entrada de reforços canarinhos no confronto).

Naqueles tempos conturbados, um inquieto inglês de quarenta e tantos anos foi preso por seu engajamento em atividades que advogavam um boicote à participação britânica no conflito. No período atrás das grades, ele escreveu um livro. Mais um para torrar-nos a santa paciência com frases imperdoavelmente pueris sobre paz, liberdade e rouxinóis? Não é esse o caso. Em novembro de 1918, encerrou-se a fúria dos filhos de Marte. Em setembro do mesmo ano, após quatro meses de detenção, o cidadão que referi saiu do cárcere. Era o matemático e filósofo Bertrand Russell, trazendo com ele o rascunho de Introdução À Filosofia Matemática. Na obra, comentava assuntos como classes, definição de número, lógica proposicional, silogismos. Falava de suas influências: Leibniz, Frege, Peano. Defasado em alguns pontos para os padrões de hoje, é um material cuja leitura vale pela curiosidade histórica e pelo estilo do autor.

Reproduzo dois trechos. Em I), ele explica de maneira didática e sucinta seu famoso paradoxo. O II) é uma crítica a certas abordagens do pensamento abstrato.

I) "A classe compreensiva por nós considerada, que deve abranger tudo, deve abranger a si mesma como um de seus membros. Em outras palavras, se há algo chamado 'tudo', então tudo é alguma coisa e é um membro da classe do 'tudo'. Mas normalmente uma classe não é membro de si mesma. A humanidade, por exemplo, não é um homem. Forme-se agora a reunião de todas as classes que não são membros de si mesmas. Essa reunião é uma classe: será ou não um membro de si mesma? Se o for, será uma daquelas classes que não são membros de si mesmas, isto é, não é membro de si mesma. Se não o for, não será uma daquelas classes que não são membros de si mesmas, isto é, ela é um membro de si mesma. Assim, das duas hipóteses - a de que seja e a de que não seja um membro de si mesma - cada uma implica sua contraditória. Isso é uma contradição.

Não há dificuldades em elaborar contradições similares ad lib. A solução de tais contradições pela teoria dos tipos é apresentada por inteiro em Principia Mathematica e também, mais resumidamente, em artigos deste autor no American Journal of Mathematics, bem como na Revue de Metaphisique et de Morale. Para o momento, deve bastar um esboço da solução.

A falácia consiste na formação do que chamamos classes 'impuras', isto é, classes que não são puras quanto ao 'tipo'. Como veremos em capítulo posterior, as classes são ficções lógicas, e um enunciado que pareça referir-se acerca de uma classe só será significante se for capaz de tradução para uma forma na qual não seja feita menção alguma à classe. Isso impõe uma limitação às maneiras em que possam ocorrer significantemente as coisas que são, nominal, mas não realmente, os nomes das classes: uma sentença ou um conjunto de símbolos que em tais pseudonomes ocorrem de maneiras errôneas não são falsos, mas estritamente carentes de significado. A suposição de que uma classe é, ou de que não é, um membro de si mesma é destituída de sentido justamente dessa maneira. E, com mais generalidade, supor-se que uma classe de indivíduos seja um membro, ou que não seja um membro, de outra classe de indivíduos será fazer-se uma suposição sem sentido; e construir-se simbolicamente qualquer classe cujos membros não são todos do mesmo grau na hierarquia lógica é usar-se símbolos de um modo que faz com que não mais simbolizem coisa alguma."

II) "Na falta de um aparato de funções proposicionais, muitos lógicos foram levados à conclusão de que há objetos irreais. É alegado, e.g., por Meinong, que podemos falar sobre 'a montanha de ouro', 'o quadrado redondo', e assim por diante; podemos formar proposições verdadeiras das quais essas coisas são os objetos; portanto elas devem ter alguma espécie de ser lógico, pois de outro modo, as proposições em que ocorrem seriam sem significado. Parece-me que em tais teorias há uma falha do sentimento de realidade que deve ser preservado até mesmo nos estudos mais abstratos. Sustento que a Lógica não deve admitir um unicórnio mais do que o admite a Zoologia; pois a Lógica está tão interessada no mundo real quanto na verdade o está a Zoologia, embora com suas características mais abstratas e reais. Dizer que os unicórnios têm uma existência na heráldica ou na literatura ou na imaginação é a mais lamentável e mesquinha das evasões. O que existe na heráldica não é um animal, feito de carne e osso, movendo-se e respirando por sua própria iniciativa. O que existe é uma figura ou uma descrição com palavras. Similarmente, dizer que Hamlet, por exemplo, existe em seu próprio mundo, a saber, no mundo da imaginação de Shakespeare, tão verdadeiramente quanto (digamos) Napoleão existiu no mundo comum, é dizer algo deliberadamente destinado a confundir, ou, então, confundido em um grau dificilmente acreditável. Só existe um mundo, o mundo 'real': a imaginação de Shakespeare é parte dele e os pensamentos que ele teve ao escrever Hamlet são reais. Também o são os pensamentos que temos ao ler a peça. Mas é da própria essência da ficção o fato de apenas os pensamentos, sentimentos, etc. em Shakespeare serem reais e de não haver, além deles, um Hamlet objetivo. Ao se dar conta das reações provocadas por Napoleão nos escritores e leitores da História, você não terá tocado o homem real; mas, no caso de Hamlet, você terá chegado ao âmago. Se ninguém tivesse pensado em Hamlet, nada restaria dele; Se ninguém tivesse pensado em Napoleão, ele teria, logo, providenciado para que alguém o fizesse. O senso de realidade é vital em Lógica, e, se alguém fizer prestidigitações com ele, simulando que Hamlet tenha qualquer outra espécie de realidade, estará prestando um desserviço ao pensamento. Um robusto senso de realidade é muito necessário à estruturação de uma análise correta de proposições sobre unicórnios, montanhas de ouro, quadrados redondos e outros pseudo-objetos do gênero."