quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

Matrimônio helvético

Eu conversara com a Silvia pela última vez no final de 2002, na partida dela para a Suíça. Emigrava para estudar Hotelaria numa faculdade de Basileia, capital do cantão de Basel-Stadt e berço do tenista Roger Federer. Lembro os momentos no aeroporto, a tia Ceiça efetuando um bombardeio de conselhos que iam desde agasalho a atenção na hora do troco. Pensei num filme de época, os personagens subindo a bordo do transatlântico S.S. Poseidon, de repente a atrocidade que era o rugido do apito, zarpar, os lenços em despedida, os chapéus safari ou cheesecutter acenando do deque, os vultos no cais retribuindo com tchauzinhos. Concluída a graduação, ela imergiu num voraz redemoinho de atividades e em 2012 retornou à terceiromundista, calorenta e nem por isso menos saudosa Fortaleza. E o recado que nos surpreendeu: estava noiva. E convencera seu futuro proprietário, suserano e mestre a oficializar a união no Brasil. Um matrimônio helvético nos trópicos. Dela que em breve assumiria a identidade de senhora Blickensderfer.

Peguei o Audi e guiei rumo à casa do tio Leo, no Itaperi, residência que se agitava numa animação quase elétrica, faíscas atravessando o ar. Tantas pessoas fascinadas observando a parente cosmopolita, articulada e que trazia mil notícias do país da neve eterna dos Alpes, da clássica Bond girl Ursula Andress e das barras de chocolate Nestlé. O quarto dela permanecera supersticiosamente intocado até pelo espanador, dir-se-ia que grãos de poeira suspenderam suas andanças, que o recinto desenvolvera uma instância cronológica particular. Arqueólogos interessados nos primórdios do século XXI talvez se mobilizassem para analisar a alcova. Com um interesse longe de ser científico é que a tia Ceiça às vezes entreabria a porta e dava uma mirada no lugar, tentando amenizar a saudade, que martelava em seu peito como o bleinblein de um sino de campanário; a filha agora batalhando numa terra distante e de costumes diferentes. No dia em que voltou, ela admirou-se da intrigante estagnação de seu antigo dormitório. As persianas cerradas, o armário de nogueira, o pufe acinzentado, o arsenal de maquiagem, o espelho circular, o mural cheio de fotos, os amontoados pares de sapatos, a cama com o colchão de movimentos submarinos, o relógio gato Felix cuja cauda era um pêndulo, o quadro com gravura art déco celebrando os roaring 20s, o troféu de um concurso de maquetes destacando-se em uma prateleira da estante, a caixinha de música com a bailarina num equilíbrio de flamingo, alguns CDs: Vanessa Carlton, Eros Ramazzotti, Enrique Iglesias, Sophie Ellis-Bextor, Kosheen, Lasgo; descansando na lisura de uma escrivaninha delgada, um livro: Jane Eyre, de Charlotte Brontë, um marcador entre as páginas 196 e 197, o seguinte trecho sublinhado a lápis:

"- Que história mais gosta de ouvir?
- Oh, não tenho muita escolha! Geralmente são sobre o mesmo tema... namoro; e prometem terminar na mesma catástrofe... casamento."


Encontrei-a cercada de inquisidores. Seu corpo magro de redondezas estratégicas, seus cabelos pretíssimos em cascata, sua pele bronze-de-quem-veleja, seu nariz de duquesa, seus intimidadores e dardejantes olhos verdes, sua voz de Rosamund Pike. Na dicção e nos gestos, indícios de uma complicada mistura de latitudes, as arcadas de um sisudo aqueduto europeu e os losangos de um festivo calçadão praiano.

- Primo Silvio, há quanto tempo!

- Prima Silvia, há quanto tempo!

Nada criativo, reconheço. Não é moleza ter que atualizar uma década de assuntos.

- E então, garoto, o que faz da vida?

- Uhm... Trabalho no ramo de computadores.

- Tipo aquele Steve Jobs?

- É por aí. Só que meus resultados são bem mais modestos. E possuo a vocação empreendedora de um texugo empalhado.

- Afff... Eu soube de umas fofocas. Imagino que esse será outro casamento em que as tias irão te incomodar com o papo de "Você é o próximo".

- Vão não. Pararam de me perturbar depois que passei a dizer o mesmo para elas nos funerais.

- (risos) Que horror.

- Espalharam inclusive que eu estava mais encalhado que a Playboy da Fernanda Young.

- Tu não presta. Que raios é essa Fernanda? Ah, esquece. Eu e o Chris estamos adorando esse clima de preparativos, você deveria experimentar.

- Prometo que inovarei. Pedirei a mão da moça via telefone. Numa ligação a cobrar.

- Ok, desisto. Sabe, quando eu era pequena a mãe ouvia direto o LP da trilha internacional de Mulheres De Areia, o do Marcos na capa. A faixa 5, Let It Be Me, tinha uns versos assim:

God bless the day I found you
I want to stay around you
And so I beg you
Let it be me


Foi o que respondi ao Chris logo após o "Sim" na noite em que ele me convidou para jantar no Fischerstube e me anunciou a proposta.

- Caprichou na declaração. Parece algo muito adequado de se falar ao homem que você escolheu para ser seu marido. Mas mudando radicalmente a pauta - ou não -, satisfaça minha curiosidade: e esse lance da cultura das armas, como é?

- Menino, a cada mês de julho acontece uma tal de Feira do Tiro na cidade onde eu moro. É uma farra. De todos os lados vêm rifles de assalto, espingardas Remington, carabinas, idosos com mosquetes e arcabuzes, submetralhadoras, adolescentes de bicicleta e com a bandoleira de fuzis automáticos a tiracolo, pistolas, morteiros, canhões, Gatlings, caixotes de munição. Eu sempre vou num estande em que a gente pode disparar uma Browning .50 instalada num tripé. Dizem que uma rajada certeira divide um ser humano ao meio. Grrr, que nojo.

- Saquei. Aposto que essa máquina é perfeita para derrubar minarete.

E chegou a manhã de domingo do casório. Christian, natural de Zurique, era pesadão feito um cachorro São Bernardo, pálido, loiro ferrugem, com olhos de um azul rio Reno e sotaque arrevesado em que não faltavam "os cearrensas", "t'rrânsito louca", ásperas chicotadas fonéticas de um descendente de Guilherme Tell. A cerimônia seguiu o protocolo, foi sóbria, organizada, bonita, comovente. O noivo plantado com cara de paisagem perto do altar e a ansiedade que o levava a endireitar de três em três minutos o jasmim na lapela, a Silvia atrasada e sob a grinalda, a daminha conduzindo as alianças. Tive que aturar a homilia do padre, esse catalisador de bocejos, essa solene matraca de chavões, esse dedicado funcionário de uma sucursal do Vaticano. Pulemos a igreja e saltemos para o buffet.

Ataquei sem piedade o bife ao molho com arroz à grega, nham nham. Fedelhos tramavam surrupiar os bonequinhos de marzipã do topo do bolo. Tendo enfrentado e vencido uma extensa sequência de cumprimentos, saudações, presentes, agradecimentos e poses para cliques de insaciáveis câmeras digitais, a noiva aproveitou uma rápida trégua e sentou-se em uma cadeira vizinha a mim. Eu aplicava uma dentada de predador num cupcake. Ela segurava sua quinta flute de champanhe e exclamou:

- Cortem-lhes as cabeças, ordena a Rainha de Copas.

Uma leve embriaguez monárquica. Comentei:

- Você está um pouco alta, rainha do copo.

- Q'isso, uns golinhos inocentes. Quem está para lá de Marrakesh é o tio Jango, perdeu a compostura e começou a narrar casos de adultério, o mal educado. Rapaz, se eu cair nessa situação de chifre, vou apelar para a técnica oriental Matsunaga. Apanho uma faca, decepo a ferramenta e o pacote de documentos do gringo infiel, jogo na privada e puxo a descarga, que é pr'ele aprender a não mexer com nordestina.

- É o que, diaba?

- Brincadeira, tolinho. Tu não vive contando esse tipo de comédia naquele teu blog entregue às baratas? Grrr, baratas, que nojo.

- Uma piada, claro. Eu estava bancando o desentendido. Acha que sou idiota ou o quê?

- Ou o qu «hick» Se tu publicar um texto sobre isso aqui juro por Deus que te mat «hick» Ai, soluço.

- Não se preocupe. Como diria o detetive Axel Foley: confie em mim.