segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Zé Barbeiro Mãos de Tesoura

O Zé Barbeiro corta meu cabelo desde o tempo em que ruínas da Grécia tinham a ver com Partenon e não com esgotamento financeiro. É herdeiro de uma tradição local de mestres das lâminas. Observo sua efígie grisalha, sua geografia de rugas, seus óculos de cientista louco do expressionismo alemão, sua impecável bata branca, suas mãos quadradas sem perder a leveza jamais, outra de suas calças cáqui, seus antediluvianos mocassins e uma palavra me acerta como um cruzado de Julio César Chávez: Resistente. Ascensoristas, caixeiros-viajantes, instrutores de caligrafia gótica, linotipistas, sósias das Paquitas, foguistas de locomotiva, motoristas de marinete, AOL, N-Gage. E os velhotes acendedores de poste a gás, solitários, magoados pela demissão e inconformados com a extinção das colunas - aposentadas pelo mistério dos watts da energia elétrica - que lhes garantiam o magro salário.

Vejo novamente a cadeira reclinável e de altura ajustável e me lembro da aborígene da tribo Fu estacionada logo atrás de mim ontem numa vagarosa fila do supermercado, tagarelando a mancheias (e eu desarmado, sem meus fones de ouvido), A Fazenda, Justin Bieber, planos para a merreca da pensão alimentícia, pagodão no Cumbuco, tatuagem de henna, gatinho do Facebook, quem me dera, imitando os desenhos animados, amarrar a desclassificada no assento, projetá-la para o alto e avante, furar o teto com a tampa do crânio da estrupício, elevá-la à estratosfera e torcer para que ela fosse atropelada por um meteoro ou por um satélite.

O de sempre, confirmo. Antiga espelunca, um cenário que insiste em desafiar a divindade devoradora de progênie. O soalho pelo qual a vassoura já recolheu incontáveis tufos crespos lisos ondulados. O cilindro do talco com ursinho afrescalhado no rótulo. Os múltiplos espelhos, retângulos fanáticos que não mentem, complicado aturar - supondo-me longevo - o que eles estarão alcagüetando acerca de minha figura daqui a décadas. A caneca com pincelzinho mergulhado no creme de barbear. Maquininhas aparentadas dos ceifadores de grama, vai no 1, 2 ou 3? Apenas laterais? Tudo? Navalhas na carne. Frascos de loção. Pentes. O vidrinho bojudo e de gargalo com mecanismo de bico para borrifar água nos cocurutos. O ritmo de castanhola no ataque da tesoura. Um radinho AM com antena em 45º. Nas paredes, um calendário, um relógio, imagens aleatórias com perfis esnobes, queixos aristocráticos, topetes arranha-céu, um registro P&B da Praça dos Mártires e, o orgulho da casa, a cópia ampliada de um retrato autografado de Dalva de Oliveira ("a melhor cantora do mundo! pode ir nas Zoropa e nas Califórnia que não acha uma para competir!", exclama, com gestos mussolínicos; eu diria Amália Rodrigues, Aretha, Blanca Iris, ah, tantas). Envolve-me o ritual pano. Fecha-se um velcro na nuca.

Com uma destreza de decapitador de cristãos do Império Otomano, começa o serviço de tosa. E zás. Em vez de cabeças devotas, caem fios rebeldes, um outono de madeixas. Ele é do tipo que puxa conversa. Tem voz de tenor este cidadão que conhece de orelhada Beaumarchais, Rossini e Fígaro. Recordo ter percorrido com ele tópicos tão díspares quanto a confusão com as tabelas de URV e minha aprovação na 2ª tentativa de vestibular. Em tais palestras, descobri que ele não gosta, por motivos óbvios, 1) na Bíblia, da história de Sansão & Dalila e 2) da mania de chamar péssima direção de veículos de "barbeiragem". O 2) incomoda também porque ele pensa no neto que teve a trajetória interrompida por um Renault Clio guiado por playboy chapado de lisérgico e abraçado por ninfas com ovários em fúria a exigir demonstrações de masculinidade numa noite da avenida Washington Soares, fugindo sem prestar socorro, deixando pelos ares um rastro sonoro de pancadões estilo Benny Benassi e Fatboy Slim. Vieram amedrontadas testemunhas com uma generosa amnésia para número de placa. Não houve punição. "O rapaz era mofino que só um sibite baleado. Gente molenga desse jeito atrai desgraça, igual córrego atiça boi com sede. Mimado demais..." e segue a costumeira ladainha, repleta de símiles rurais, de Dona Val nas visitas ao fardo tetraplégico.

Zé conquistou sua esposa, Dona Val, com um Soneto Do Pedido De Casamento rabiscado em papel que exalava perfume de gardênia. Missão cumprida. Do Você aceita... ao vôo célere do buquê. Na verdade, as estrofes foram compostas por um colega ébrio e poeta desempregado - em troca de 1 litro de Sapucaia; acabou sendo o padrinho - que lia muito Antero Bilac, Olavo de Quental, coisas assim, rimava nastro com alabastro, camafeu com apogeu. O casal permanece por aí, agora compartilhando erosões da memória e cartelas de comprimidos da pressão arterial, com um cansado e fiel companheirismo que parece afeto. Aliás, foi enquanto dava um trato no visual para um encontro decisivo com minha mãe que o pai recebeu do tesoureiro valiosas dicas. Com aroma de patchuli, gel fixador escorrendo pela testa, precários sapatos de solas calafetadas com betume, camisa involuntariamente psicodélica e acessórios afins, o jovem irrelevante funcionário dos Correios formou par com a moça do sorriso de anúncio de sabonete em uma sessão de Os Girassóis Da Rússia no Cine Diogo. Ela ficou doidinha com as frases encantadoras e os modos de galã dele. Refiro-me ao Marcello Mastroianni.

Cultivei felpuda e emaranhada juba por 2 anos, e era uma piada, comparecia ao salão exclusivamente na condição de turista, para resmungar um olá. Quando resolvi encerrar a brincadeira, terminada a operação de poda ele até comprou dois iogurtes de morango na mercearia ao lado e brindamos pela volta do filho pródigo. É um gaiato. Abominou a época dos arbustões afro de discoteca, argumentando que representavam evasão de lucro e eram indício de cafetão ou de integrante de gangue.

E como andam os negócios?, pergunto. De muletas em campo minado no escuro, replica. Em dias de Freddie Mac, de fraude no PanAmericano e de rumores de falência da leonina MGM, normal. É uma fase, vai passar, engano-o. É esperar em Deus, arremata. Ele retira a alva coberta das aparas com uma pompa de mágico que revela à platéia um avestruz onde antes estava um coelho. Entrego-lhe o punhado de cédulas da tartaruga marinha no verso. Inspirado pelas notas, sinto vontade de almoçar um quelônio cozido e trinchá-lo com pedantismo artístico numa bandeja. Despeço-me. Bancando o prestidigitador veterano, ele acena com uma platitude bonitinha mas ordinária a respeito de quão insondáveis são os caminhos de azares que nos põem de monociclo na corda bamba ou atados na mira do atirador de facas. De que revista barata ele roubou isso? Sobram clichês e faltam clientes.