sexta-feira, 30 de março de 2012

Enquanto isso, na Sala de Justiça

O pai me pediu para entregar uma reclamação trabalhista na Justiça Federal. E lá fui singrando até a rua Pedro I com Floriano Peixoto.

A praça Murilo Borges (ou do BNB) é realmente uma belezura, um colírio. Os convidativos e largos bancos verdes de cedro, a sombra arrepiada dos ulmeiros, os esguios postes de polpudas lâmpadas, o jardim com seu carpete de gramíneas e moitas de gerânios, o balé confuso de um inseto polinizador. A fonte, pedacinho da República de Weimar, com sua cercadura 2
πR de crisântemos; na base, os pedregulhos, os cavalos de batalha a jorrar água; logo acima, um disco parecido com aquele restaurante de Seattle, bordejado por cabecinhas de leão a jorrar mais água; as sereias protegidas por outro disco, menor, do qual cascateia mais água; encerrando, uma estrutura que é quase um bispo gigante de xadrez.

Subi uma escadaria e topei com a fachada vertiginosa de um imenso cubo cinza, templo de Maat. Um letreiro com o nome do prédio aludia ao primeiro general do regime militar. No alto de um renque de mastros, rajadas de vento produziam um ruído de flap-flap nas bandeiras, esses trapos coloridos capazes de despertar estranhas sensações de dever, honra e glória feita de sangue. Atravessei o abre-te, sésamo de uma porta giratória com detector de metais. No saguão com acústica de hangar, um invisível equipamento de som despejava pelos cantos Sultans Of Swing, do Dire Straits. Magistrados rock & roll, baby.

Dirigi-me a um guarda, mastodonte empertigado, de colete de kevlar, pistola Colt .45 à cintura, walkie-talkie. Mostrei o documento. Vá ao 13º piso, senhor, respondeu-me. Meu número de sorte. À espera do elevador, capturei fragmentos de diálogos das figuras ao redor, "usucapião", "impugnada", "tramitação", "PIPA... SOPA". O quartinho móvel chegou e recebeu os passageiros. Um ding-dong e uma macia voz feminina anunciavam os andares selecionados. Foi em um deles que, sem aviso, embarcou a A-, uma antiga inimiga minha. Espantado, notei que se vestia de maneira conservadora, genuína aeromoça da Panair. Com a mão esquerda, segurava uma pasta. Tinha mais de dez anos que eu não a via, cursávamos o ensino médio. Ela conferindo o cabelo pelo grande espelho do recinto, bastou um rápido tropeção de olhares e:

- Não acredito! Menino, há quanto tempo!

Curioso ela me saudando como se estivéssemos em bons termos. Ahn, uma trégua? É necessário que eu explique: além de artilheira do time de handebol, ela era a desinibida da turma, prafrentex total. Circulavam sobre ela histórias esquisitas, intumescentes e falopianas. Ganhou apelidos preocupantes como Engraçadinha e Nadia (este por causa da libidinosa personagem do clássico do besteirol American Pie). Recordo uma festa - um DJ que explorava os hits do período: Every Morning (Sugar Ray), Believe (Cher), Kiss Me (Sixpence None The Richer), Never There (Cake), Mambo No. 5 (Lou Bega), Pretty Fly (For A White Guy) (The Offspring) - em que ela exagerou na birita e, empunhando uma garrafa de cerveja pelo gargalo, atreveu-se a discursar que "dava mesmo, não era da conta de vocês". Uma vez, só de pirraça, inventou de ficar com o J-, um dos negros da classe. Era para irritar a mãe dela, quarentona desquitada e racista, adepta da escravidão por dívida, da esterilização de pobres, do sistema ptolomaico e das teorias lombrosianas. A coroa precisou tomar chá de camomila para aplacar o enjôo que sofreu ao imaginar um netinho preto que nem carvão, beiçola e com uma carantonha feroz de guerrilheiro angolano.

Lembro exatamente como nasceu nossa desarmonia. Orçávamos pelos 16 de idade. Eu terminara de ler Orgulho E Preconceito, de Jane Austen. Moleque influenciável que eu era, impressionado pelo vigor, pelo rigor da obra, saí pelo mundo papagaiando um wit aguçado como espora e, em diversos casos, inconveniente. Foi em uma ocasião, no recreio, um grupo discutia que os plissados e a cambraia invadiriam as passarelas do próximo verão. A comunicativa A- grasnou:

- Esse Silvio anda tão calado.

Mandei, à queima-roupa:

- É que sua conversa está tão interessante quanto a chiadeira de uma carruagem ["rattle of the chaise"].

A namoradeira indignou-se, é claro. E quando falo em namorar, refiro-me a algo pior ["a flirt, too, in the worst and meanest degree of flirtation"]. Desde esse dia, passamos a nos tratar com estudada indiferença e maquiavélicas indiretas.

Voltemos a 2012. "Vai ao treze? Que coincidência!", comentou. Ding-dong, tiniu o sinalzinho. No corredor, enfática e alardeando suas conquistas de mulher emancipada, ela improvisou um veloz plantão de notícias. A graduação e o mestrado em Direito na UNIFOR, a recente entrevista à TV Assembléia, como era eclética na cozinha (tutu à mineira, omelete, polenta), as férias em Aruba, o exemplar autografado de livro do Gabriel Chalita, o escritório com réplica de um Monet na parede, morava na Cidade dos Funcionários,
guiava um Hyundai Azera, prestava serviço voluntário em uma creche, colecionava catálogos da grife Manotropo, assinava Marie Claire e Consulex, casou com o V-.

V- era um andrógino da escola. Fã de Pedro Almodóvar e de Belle & Sebastian. Prosseguiu ela:

- Ai, sabe, a gente freqüentava a academia Corpo de Baile, trocava idéias durante
as séries de leg press e a esteira, o pessoal aborrecido porque a gente excedia os minutos nas máquinas, e a gente nem ligava, sabe, o clima de romance no ar, coisa de pele...

- Não conhecia uma boa qualidade sequer, mas ninguém pensa nisso quando se apaixona ["knew no actual good of me - but nobody thinks of that when they fall in love"].

Ops, aconteceu de novo.

- Credo... Você continua um grosseirão pernóstico. Seu ridículo.

- Também foi um prazer revê-la.

Escapei de uma bofetada, isso sim.

Observei um rapazote, empregado do local, que carregava um volume insanamente graúdo de papeladas processuais. Querelas, pendengas e arranca-rabos de tribunal, uma enxurrada que nunca terá fim. Ainda possuído pelo fraseado da solteirona de Steventon, cobri-me com uma toga, pus uma longa e cacheada peruca grisalha, bati o martelo e pronunciei um veredicto: a insipidez, e não obstante a algazarra; a nulidade, e não obstante a presunção de toda esta gente ["the insipidity, and yet the noise; the nothingness, and yet the self-importance of all these people"].

Depois de virar gato e sapato nas garras da burocracia, empurrado para uma penca de setores, cumpri minha tarefa... Em um balcão no térreo.

Fui embora encafifado:

- Advogada! Bem que na época do colégio diziam que ela entendia muito de vara.