domingo, 29 de março de 2009

Clube dos Canalhas

Pertenço a um seleto círculo vicioso de colegas de longa data. Nosso principal elo, a antipatia. Um ódio que ousa dizer o nome. Hostilizamo-nos tanto e reciprocamente, e declaradamente, vocês precisam ver. Que beleza essa vileza. Prezamos bastante nossas ligações perigosas e copiosas disparidades. E que tédio os grupelhos amigows-4-eva, aqueles do troca-troca patológico de depoimentos fofuxos e enjoativamente encomiásticos no Orkut, com opiniões 99% em concórdia no que se trata de questões imbecis, com as mesmas preferências pelas mesmas festas ridículas, pelas mesmas expressões de efeito jumentosas ("Solteiro sim, sozinho nunca!"), pelo mesmo tipo de relacionamento amoroso decadente e sem futuro, pelas mesmas músicas o cão chupando manga de ruins, pelo mesmo figurino descolado da Galeria Pedro Jorge e pelas fotos com uns apontando para os outros ou fazendo uma estrelinha com os dedos.

Conosco, da panelinha dos Amigos da Onça, o esquema é assim: discordamos em quase tudo que é assunto. Existem rumores de que sequer a adesão à heterossexualidade seja unânime; zoamos o goiaba que é entusiasta de Laura Pausini e de Roxette; mangamos do ogro que compareceu à prova de Cálculo I devidamente paramentado de visão do inferno, com abadá do Sirigüella, bermuda florida e sapatênis; houve o curioso caso do sujeito que roubou a namorada alheia; criamos um anedotário cruel com o que sofreu um coma alcoólico em um evento de axé music; mandávamos uma vaia bem cearense no tal que guiava um fusca amarelo-hepatite; lembro o que se apresentou um dia com uma barba, ahn, estilosa e teve que aturar o infame apelido de Paloccinho por um largo tempo; fomentamos confrontos verbais e corporais entre os são-paulinos e os palmeirenses, entre os boêmios e os abstêmios; julgamos pela aparência; ao nos enfrentarmos no Marvel VS. Capcom, nossas taxas de mútuo rancor ultrapassavam o nível recomendado pela OMS; não respeitamos crença, etnia, posição política e nome de mamãe; já negamos ajuda num momento de adversidade e aproveitando a ocasião ainda proferimos um folgado Amigo é pr'essas coisas; há um de nós que é deficiente físico, ele é engraçado, venenoso e, ao esboçar esforços de comunicação, fica a cara do Tonho da Lua; um começou ser vitimado pela calvície, e aí foi gozação com artilharia pesada por todos os flancos; nunca saímos juntos para uma farra; apreciamos conversar: mulheres vintage, saldo de gols, dicas de sobrevivência para idas a banheiros de rodoviária, motores de Porsche, exame de próstata (quem é da nossa gangue também tem medo), sitcoms, agarramentos às escuras em reality shows. Nesses colóquios, a mera insinuação a citações literárias - ou à nova e sofisticada e transgressora (?) série da TV Globo baseada em livro famoso - é considerada crime de lesa-pauta, cuja punição é o uso, durante 10 minutos, da máscara de ferro com a parte interna recheada com formigas tocandira e besouros da doença de Chagas. Estamos mais para witty que para pretty. E nada de foro privilegiado. O galhofeiro de hoje pode ser a iraniana apedrejada de amanhã. Obviamente, nutrimos abissal e gélido desprezo por todas as outras tchurminhas. Só nossa patota é que detém a Verdade Suprema, infiéis. E não se aproximem muito de, nem ofereçam amendoins aos que falam com freqüência e, pior, com seriedade, a gíria "tribo".

Em vez de sinceridade, descaramento. Em vez de bate-assopra, bate-rebate. Em vez de humor, canalhice. É o Clube dos Canalhas. Não temos a elegância do Rotary, nem o bom-mocismo dos escoteiros, nem a mística dos maçons, nem a coesão ideológica de fãs do High School Musical. Somos feios, sujos e malvados, como no filme do Ettore Scola. Igual a eles, já arquitetamos o assassinato de um de nós. Sem ironia, é uma companhia inestimável aquela escumalha peçonhenta, da qual eu tanto gosto desgostando. Uma cordialidade de serpentes do doutor Vital Brazil. Não é vetada a participação feminina. As poucas, porém, que tentaram filiação suportaram o clima sulfúrico e ofídico da camorra apenas por um escasso período. Magoadas, voltaram correndo para casa e trancafiaram-se no quarto de paredes cor-de-rosa para permanecer enrodilhadas na cama e encharcando de lágrimas o travesseiro com rosto de Garfield. Foi mal. É difícil uma Mae West para chamar de nossa? Prometo um ambiente tão acolhedor quanto o ventre da minha lavadora de roupas funcionando em modo turbo.

Nossa maior contribuição à humanidade foi o Incrível Catálogo De Frases Para Perder Amigos De Baixo Pedigree. "Você acha que os que ingressarem via sistema de cotas vão borrar na calourada ou no jubilamento?", "Obama é péssimo e parece presidente de 3° Mundo.", "Os grã-finos daqui não sabem domesticar o Seu Creysson que têm na alma.", "Sou a favor de que dêem terra para invasores do MST. Sete palmos." e "Planejamento familiar de pobre é tomar Cytotec ou chá de zabumba no segundo mês de gestação."

Arremessem no basculante os cantores com voz impecável e boné de bocó, embrulhados em suas canções da América com letras sobre amizade que rivalizariam com paródia das Chiquititas. Comparsas legítimos assemelham-se ao time Toguro, não ao elenco de Malhação. Quando o primeiro da nossa quadrilha de sádicos expirar, combinamos que na cerimônia de esbulho, ops, de despedida, apesar de eventuais protestos e imprecações que venham de dentro do caixão, os remanescentes entoaremos, à guisa de homenagem, o seguinte trecho de um dos rocks da banda Matanza:

De tudo isso
Resta o ódio como herança
Nada de esperança
Só mais uma história
E que não acaba aqui