sexta-feira, 11 de março de 2005

Uma ficção alheia - 2ª Parte

- Agora eu tô lascado. Tu viu o que foi que tu fez? Por tua causa e da tua amiguinha, o tio Haroldo tá pensando que eu sou gay. Agora ele não vai mais emprestar dinheiro pro papai.

- Mas tu não é gay.

- Eu sei, mas o tio Haroldo não sabe.

- E se tu levasse a tua namorada no churrasco amanhã à tarde?

- Mas eu não tenho uma namorada!

- Pode fingir que tem!

- Ei, nem venha, que eu não vou fingir que namoro aquela tua amiga, não. Prefiro que pensem que eu sou gay do que passar por namorado daquilo!

- Relaxa! Tu vai fingir me que namora!

- Agora lascou de vez! Tu tem namorado, inteligência.

- A gente vai só fingir! Eu já bolei o plano todinho na minha cabeça! A gente vai ser um casal moderno. Sabe um desses casais esotéricos que nem se encostam, pois é! Ó, tu faz o seguinte: Quando o teu tio chegar, tu diz pra ele que foi um engano, explica tudinho, que foi uma amiga duma amiga tua na praia e tal e que amanhã tu vai levar a tua namorada pro churrasco. De noite eu ligo pra tua mãe pra gente combinar!

- Combinar o quê?

- Não se preocupe, não. Deixe comigo!

- Ai, meu Deus. Por que é que tu só me mete em roubada?

- Deixa de ser reclamão! Eu vou agora alugar minhas roupas esotéricas!

x x x

No domingo:

- Que diabo de roupa é essa, Cassi?

- É roupa de iluminado! Não tá massa?

- Tá parecendo um carro de carnaval. Ai, meu Deus, lá vem o tio. Vamos lá. Vou te apresentar a ele. Mas vê se não vai fazer besteira, hein!

- ’Xá comigo!

- Oi, tio, essa daqui é a minha namorada, a Cassi.

- Auhm auhm.

- Ah, então é essa a nossa criaturinha iluminada. A Clara me falou de você ontem. Mas o que é isso que ela fica repetindo?

- É um mantra de saudação ao novo parente do Noni que estou conhecendo. É para trazer boas vibrações.

- Aaah...

- Num liga pra ela não, tio. Ela tem esse jeitinho assim, mas é gente boa.

- Eu vou aproveitar que ela foi lá dentro buscar mais refrigerante e ajudar a trazer.

- Pra que foi que tu fez aquilo? Aquele negócio de mantra?

- Eu só tava tentando convencer ele!

- Mas como é que você faz uma coisa dessas? Você é doida! Assim ele vai desconfiar! Ninguém pode ser tão abestado a esse ponto! O que é você me diz disso, Cassi?

- Tct tct.

- Cassi? Cassi?

- Ai, eu tô adorando esses enfeites dessa fantasia. Quando a gente se mexe bem rápido pra lá e pra cá, eles fazem um barulhinho só a massa, que nem aqueles chocalhos de cabra!

- Eu mereço! Eu devo ter rebolado pedra na Cruz. E mais devo ter rebolado faca também e cortado todinha. E ainda devo ter levado os pedacinhos que sobraram pra casa pra jogar porrinha, só pode!

x x x

- Noni, meu sobrinho, estou tão contente por saber que você não é um "rapaz alegre", apesar de que essa sua namorada... Mas não se preocupe, não, que tem jeito.

x x x

- E aí? Funcionou? O que foi que ele disse?

- Ele disse que tu é uma abestada!

- Mas ele acreditou?

- Acreditou. Não fez mais do que sua obrigação...

- Mal agradecido! Ei, ainda tem churrasco? Eu ainda tô com fome. Eu não comi nada com esse negócio de que, pra iluminado, animal é sagrado...

- Nan... (E fala sem olhar para ela). Tem mais carne, não. Na geladeira tem umas graviolas, se tu quiser... Mas toma cuidado que tem umas maduras demais. Cuidado pra nã...!

Enquanto Noni falava, Cassi ouvia atenciosamente os conselhos para ela tomar quando fosse comer a graviola... Devorando uma graviola.

E Clara entra pela sala.

- Oi, meu anjo, tá boa a graviola?

- Ai, meu Deus.

- Quer um pedaço? Aproveita enquanto ainda tem...

quinta-feira, 10 de março de 2005

Uma ficção alheia - 1ª Parte

Lá na universidade, há uma colega que de quando em vez rabisca idéias também, e me repassa algumas via e-mail. No causo a seguir, quaisquer semelhanças com fatos e pessoas (vivas, em coma induzido ou mortas) não serão mera coincidência.

6ª à noite:

Trimmm, trimmm

- Alô.

- Adivinha quem é?!

- Ai, meu Deus.

- Que tu tava fazendo?

- Tava mostrando a 9ª sinfonia de Beethoven pro meu tio Haroldo, que tá visitando a gente.

- Mas eu tô precisando da tua ajuda. Sabe aquela minha amiga, a Camila? Pois é, ela tá precisando de um namorado!

- E o que que eu tenho a ver com isso?

- Tu tem namorada?

- Ei, nem inventa. Por que tem que ser eu?

- Por que tu é o único amigo culto que eu tenho. E ela quer namorar um homem culto. Vai, diz que sim, diz que sim, siiim? Não vai nem arrancar pedaço, é só pra conhecer. Se tu não gostar...

- Já vi que é roubada. Também, sendo amiga de quem é.

- Ah! Só mais uma coisinha... Tu tem algum dente quebrado? É que ela tem esse fetiche, sabe? Ela adora homens com um ou mais dentes quebrados. Mas também serve se for torto. Hein, tu tem?

- Nem acredito que tô ouvindo isso.

- Tem não? A gente pode dar um jeito.

- Ei, ninguém vai quebrar meus dentes, não!

- Depois a gente vê isso. Me encontra daqui a uma hora no Beco da Poeira pra gente combinar como tu vai fazer pra conquistar ela, quer dizer, conhecer ela melhor no picnic de amanhã.

- E onde é que vai ser esse troço?

- Lá no Caça e Pesca.

- Mas domingo tem um churrasco aqui em casa. Pra comemorar o empréstimo que o tio Haroldo vai fazer pro papai.

- Não tem problema. O picnic é amanhã, e domingo tu vai pro churrasco.

x x x

- Ó, seguinte, ela é mui meiga, carinhosa, blá, blá, blá... O único defeito dela é que ela é meio fútil. É por isso que ela tem que namorar um cara intelectual. Ela quer ficar bem na fita com a família dela.

- Tô fora! Patricinha nem pensar.

- Mas é só pra conhecer. Ela não vai te morder. Vamos combinar assim. Amanhã de manhã eu passo na tua casa e a gente vai pro picnic. Tu conversa com ela na boa, sem compromisso e domingo tu vai bem bonitinho pro churrasco do tio Haroldo. Aliás, tu pode até levar ela pro churrasco. Ele vai amar!

- Tu é doida! O tio Haroldo é super conservador. Ele só decidiu emprestar esse dinheiro depois que o papai inventou que ia botar a Natália em colégio de freira.

- Mas tu vai, né?

- Já vi que isso não vai prestar. Mas vamos, né...

- Ó, qualquer coisa , já que a gente vai tá na praia, tu segura ela no vento. É que ela tá meio magra. Acho que ela tá pesando uns 42 quilos.

x x x

Sábado, no picnic:

- Mila, esse daqui é um grande amigo, Noni. Ele é tão culto!

- Senta aí.

E Cassi deixa os dois a sós.

- Ai, esse sol tá derretendo toda a minha maquiagem, que horror! Cê tá me achando gorda? Ai, eu tô um monstro de gorda! Quanto cê acha que eu tenho que perder?

- Que é isso? Cê tá ótima!

- Ai, a minha revista 'Meninos Gatos', edição especial com Rodrigo Santoro tá voando no vento. Cê pode guardar ela nas suas coisas, por favor? Mais tarde cê me dá. Blá, blá, blá, blá, blá, blá...

x x x

E Cassi volta.

- Oi, gente!

- Gente, com licença que eu vou ao banheiro retocar minha maquiagem!

- Cassi, que diabéisso? De onde é que tu tirou que eu ia namorar um negócio desse?

- Mas ela é bonitinha, né?

- Vou fingir que nem ouvi isso!

E nisso passou-se toda a manhã.

- Ô Cassi, já deu, né? Bora pra casa, pelo amor de Alá!

- Tá, seu chato! Bora, eu vou te deixar lá. Pelo menos vou conhecer o tio Haroldo...

- Ei, nem inventa, você não vai falar com o tio Haroldo!

- Tá, resmungão! Vai pelo menos se despedir da Mila.

x x x

No Jardim Tabapuá:

- Noni, posso ir até a cozinha beber um copo d'água?

Enquanto isso, Haroldo desce as escadas da sala e dá boa tarde a Noni. Cassi vinha voltando da cozinha e se escondeu atrás da cortina para só sair depois do tio Haroldo.

- Oi, meu sobrinho preferido.

- Oi, tio. Tô voltando da praia.

Natália:

- Noni, cê comprou a pulseira de hippie que eu pedi?

- Comprei. Pega aí na minha mochila.

- Noni, o que essa revista de fotos de meninos tá fazendo na tua mochila?

Tio Haroldo:

- Oh! A desgraça se abateu sobre esta família. Noni, você é gay!

- Não, tio, isso foi um engano.

- Clara, como você explica isso?

- Haroldo, deve ter sido um engano.

- Tomara que seja mesmo. Porque se não for, serei obrigado a não fazer o empréstimo ao Carlos. Não posso compactuar com um lamaçal desses. Vou sair agora e dar uma volta pra esfriar a cabeça.

Enquanto isso, Cassi via tudinho por trás da cortina.

sexta-feira, 4 de março de 2005

Elogio da diferença

Por um mundo melhor (não, não é o Rock In Rio).

Por um gângster da TUF e outro da CearAmor discutindo amigavelmente sentados numa birosca, entre tapinhas nas costas e goles de Colonial, sobre maneiras eficientes de esmagar uma cabeça humana.

Por um juiz e um vigia sobralenses (casal gay) andando de mãozinhas dadas.

Por um PM e um assaltante largados numa calçada dividindo amistosamente um baseado.

Por um pastor evangélico e uma marafona abraçados embriagados no carnaval.

Por um carioca e um paulista unidos espancando um argentino.

Por brasileiros e portugueses rebolando ao som de Fatamorgana versão Roberto Leal.

Por um carcereiro ajudando um presidiário a cavar um túnel no IPPS (sem suborno).

Por dois vizinhos, um judeu e outro muçulmano, trocando receitas de bomba caseira.

Por um punk ensinando um neonazi a andar de skate.

Por um neonazi dando aulas grátis de alemão a um punk.

Por um favelado e uma patricinha (casal de namorados) passeando numa carroça de catar lixo.

Por um congresso de espionagem e contra-espionagem organizado conjuntamente pelo FBI e pela Al-Qaeda.

Por um baile funk proibidão bombando todas da Tati Quebra-Barraco e muita dança da cadeira e confraternizando os membros do Comando Vermelho, Terceiro Comando e Amigos Dos Amigos, com direito a armistício entre o lado B e o lado A.

Por um guarda municipal ninando um trombadinha cheira-benzina no relento da Praça do Carmo à noite.

Por hindus e muçulmanos dançando Macarena na Caxemira.

Por um CDF escrevendo uma dissertação encomiástica sobre a final da Casa Dos Artistas.

Por um bando de pagodeiros diarréia cerebral abraçados a um magote de nerds cocainômanos metidos a rockeiro cult, todos pulando adoidado numa micareta technopop.

Por um Lula e um FHC tomando uma juntos.

Por um surfista pernambucano passeando com seu tubarão de estimação.

Por um monitor da Febem ensinando pacientemente um menor infrator a fabricar um cossoco.

Por um boiola e um homofóbico posando para uma anúncio de cigarro, ambos com camiseta do triângulo rosa.

Por um cardeal acariciando sensualmente um jovem comunista.

Por um presidente que diga que fumou e tragou.

Por água e óleo se misturando.

Por um traficante do CV ensinando um PM carioca a surfar.

Por uma dupla sertaneja Jesus & Judas.

Por um soldado israelense e um membro do Hamas trocando dicas de tortura.

Por Inri Cristo e Toninho do Diabo fazendo um dueto e lançando um CD de vaneirão.

Por um padre Marcelo Rossi pregando o amor livre e engravidando a bispa Sônia.

Por uma guerra pacífica e com moderação entre as marcas de cervejas.

Um outro mundo é possível. Nós podemos.