terça-feira, 18 de dezembro de 2012

Zuse e Natal

Zuse e Natal Em 18 de dezembro de 1995, ocupados que estávamos com a correria típica do período, poucos foram os que repararam na notícia do falecimento, aos 85 anos, de um senhor germânico de pesados óculos de grau chamado Konrad Zuse, um dos pioneiros da computação. Parece que um sério pecado dele foi ter sido financiado pela tirania nacional-socialista e participado de esforços de guerra do Eixo. Contratado por um instituto de pesquisas aerodinâmicas, ele construiu paquidérmicas engenhocas de calcular que foram usadas para, por exemplo, aperfeiçoar o alcance de bombas voadoras. Com tendência ao isolamento e ao alheamento político, ele teve que aturar casos de assédio ideológico, mas jamais se filiou ao Partido-Estado. Passando por dificuldades econômicas, ele se viu diante das opções: abandonar seus projetos ou ser patrocinado pelo 3º Reich. Muitos anos depois da queda do regime hitlerista, ele classificaria sua escolha de "meu pacto faustiano".

Os seguintes trechos em itálico são daqui.

"O engenheiro berlinense é tido como o criador do primeiro computador do mundo e também da primeira linguagem de programação baseada em algoritmos.

Entre as contribuições mais conhecidas de Konrad Zuse para o mundo da informática estão as máquinas Z1, Z3 e Z4, construídas respectivamente em 1938, 1941 e 1945. A primeira era uma calculadora com tecnologia mecânica que, segundo a Universidade Técnica (TU) de Berlim, pesava cerca de 500 quilos e era capaz de fazer operações aritméticas de adição, subtração, multiplicação e divisão, além de calcular raiz quadrada e converter decimais em binários e vice-versa."

"O desenvolvimento da máquina Z2 em 1939 possibilitou a Konrad Zuse acumular experiência para finalizar, dois anos mais tarde, a construção do Z3. Considerada a primeira calculadora completamente automática e programável em sistema binário do mundo, a invenção tinha todos os componentes encontrados em um computador moderno, exceto memória para armazenar dados ou um programa.

O Z3 foi concebido antes mesmo do computador britânico Colossus, projetado durante a Segunda Guerra Mundial por Alan Turing, e do estadunidense ENIAC, criado em 1946 por John Eckert e John Mauchly. No entanto, o pesquisador Friedrich Naumann lembra em seu livro Do ábaco à internet: a história da informática (tradução livre) que a invenção de Konrad Zuse não foi levada a sério nem pelo governo nem pela indústria alemães na época."


"Formado em 1935 em Engenharia Civil, depois de passar pelos cursos de Arquitetura e Engenharia Mecânica na TU Berlim, Zuse utilizou a sala da casa dos pais durante anos para conceber os primeiros computadores. O engenheiro também já havia se dedicado à pintura e não tinha conhecimentos específicos de eletricidade ou eletrônica. Isso explica por que, segundo Naumann, a máquina Z3 foi vista durante muito tempo como um brinquedo de Zuse. Segundo o autor, o trabalho do engenheiro era visto apenas como um 'hobby'.

No mesmo livro, Naumann relata que nem mesmo Andreas Grohmann, assistente de Zuse, tinha noção do significado de sua contribuição para a construção do Z1. Ele menciona que o assistente teria dito que trabalhava às cegas, 'sem saber ao certo como aquele monstro que ali estava deveria funcionar'. Entretanto, depois de pronta, a máquina 'trabalhava sem grandes problemas e dava soluções exatas para questões complicadas'."


"Em 1945, Konrad Zuse criou o Z4, uma máquina muito mais potente que as anteriores. Enquanto o Z3 e o Z1 levavam entre três e cinco segundos para realizar uma operação de multiplicação, o Z4 era capaz de fazer 11 multiplicações em apenas um segundo."

"Em 1945, Zuse deixou a capital alemã e organizou o transporte do Z4. O Z3 e todas as fotos dele haviam sido destruídos durante um bombardeio aéreo. Durante muitos meses, o Z4 ficou guardado em um galpão na cidade de Hinterstein, próxima à fronteira austríaca."

"A máquina despertou o interesse do matemático Eduard Stiefel. Em setembro de 1945, ele e Zuse assinaram um contrato, formalizando o empréstimo do Z4 ao Instituto de Matemática da Universidade Técnica de Zurique (ETH) por cinco anos.

De acordo com um relatório publicado por aquela universidade em 1981, os suíços pretendiam utilizar o equipamento não só para efetuar cálculos numéricos abrangentes, mas também para enriquecer suas pesquisas e produzir seus próprios computadores em um futuro próximo. Para eles, o empréstimo do Z4 por 30 mil francos suíços era visto como uma boa chance de não ficar de fora na primeira fase da informática.

Além dos Estados Unidos, outras potências vinham apresentando significativos avanços na área, como o Reino Unido e a França. Segundo Naumann, porém, o Z4 foi o único computador da Europa em condições perfeitas de funcionamento até 1951.

No livro Der Computer - Mein Lebenswerk ('O computador - a obra da minha vida'), o próprio Konrad Zuse lamenta a falta de reconhecimento da importância de seus primeiros computadores pela própria Alemanha. Para ele, a indústria eletrônica do país agiu com lentidão, ao contrário das indústrias dos EUA e da Suíça.

De acordo com o engenheiro, a produção de computadores na Alemanha se deu de forma tardia, acarretando consequências lamentáveis à economia, 'pois a indústria de informática é hoje uma das mais importantes do mundo - se não a mais importante delas'.

Depois do empréstimo do Z4 à ETH, o próprio Konrad chegou a produzir e comercializar computadores em uma empresa com sede em Bad Hersfeld, no estado de Hessen. Em meados da década de 1960, porém, a firma foi comprada pela Siemens."


Mais algumas palavras:

- Existe uma distribuição Linux (desenvolvida por uma companhia de Nuremberg) cujo nome é SuSE, acrônimo para "Software und System-Entwicklung". Dizem que é apenas coincidência.

- No dia em que completaria 100 anos, 22 de junho de 2010, o cientista foi homenageado no logotipo do Google.

- Seu grande hobby era a pintura. Sua residência era abarrotada de telas, cavaletes, pincéis, estojos, paletas, bisnagas de tinta, esboços impressionistas. Se um curioso for a Redmond, WA, dirigir-se à sede da Microsoft e entrar no escritório do chefão, encontrará em uma das paredes um retrato de William Henry Gates III com data de (19)95 e assinado por Zuse.

- Excerto de uma palestra do professor Z.

E já que falamos tanto de Alemanha: lembrando que estamos naquela época do ano, encerro com O Tannenbaum, composição de Ernst Anschütz comumente associada às celebrações de dezembro. Feliz Natal e próspera profecia maia.

sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Sobre a elipse

Sobre a elipse A elipse é um conjunto de pontos que, supondo-o fora da origem O (0, 0) do plano cartesiano, com os focos paralelos ao eixo das abscissas e de centro C (x0, y0), é definido pela equação:

(x - x0 + (y - y0 = 1

De um artigo da nossa volúvel Wikipédia:

"A elipse tem a propriedade de que a bissetriz do ângulo formado pelos dois focos e por um ponto qualquer da elipse (como vértice) é perpendicular à tangente à elipse nesse ponto.

Como consequência, qualquer raio luminoso ou onda sonora, que parta de um dos focos, será refletido pela elipse na direção do outro foco.

[...] No Capitólio dos Estados Unidos há uma sala elíptica onde a propriedade refletora teria sido usada pelo presidente John Quincy Adams para escutar conversas que decorriam do outro lado da sala."

Mas não é dessa elipse que quero falar, a da geometria. E sim da figura de estilo. O subentendido. A omissão trabalhada. A supressão criativa. A lacuna que instiga o espectador.

Topamos diariamente com criaturas e assuntos que nos incomodam por seu teor explícito, sua crueza, indiscrição e falta de modos. Discussões exaltadas sobre saneamento básico ou reforma tributária, os desocupados do Occupy e sua fúria sólida que se desmancha no ar, as gravatas de Silas Malafaia, o cabelo pedreiro hipster do Neymar, tráfego congestionado às 07:30 da manhã, documentários sobre a Libéria ou o massacre de Srebrenica, dialetos bárbaros como juridiquês e economês, socialite de nome Valdirene. E chega.

É em oposição a essa overdose de realidade que chamo atenção agora para: a insinuação, a sugestão, a indireta, a abordagem oblíqua, o vago, as entrelinhas, o ambíguo. A habilidade de dizer sem dizer. Foi pensando nisso que reuni aqui exemplos de uso dos vários tipos de discurso elíptico. Vamos a eles.

I) O dramaturgo grego Aristófanes (446-386) era o rei da sátira, o original troll. Debochava dos moralistas e dos libertinos, dos pacifistas e dos belicosos, dos críticos e da plateia. Há uma peça dele, A Assembleia Das Mulheres, que se destaca pelo visionário caráter distópico. Trata-se de uma história sobre as trapalhadas e os impasses advindos da tentativa de implantação de uma quimera igualitária, ideias de jerico que buscavam eliminar diversas formas de desigualdade. Alguns trechos:

"Não esqueçam nossa combinação: não devemos deixar os homens perceberem nada de feminino em nós, principalmente qualquer parte de nosso corpo! Estaríamos fritas se, no meio de tanto homem, alguma de nós cruzasse graciosamente as pernas, mostrando a... diferença!"

"- As mulheres serão comuns a todos os homens; cada um poderá ir com qualquer uma e ter filhos com quem quiser.
- E qual o meio de evitar que todos os homens queiram a mais bonita e tentem papá-la?
- As feias e mal acabadas ficarão ao lado das mais bonitas e quem quiser as bonitonas terá que satisfazer primeiro as feiosas.
- (com ar desconsolado) E nós, os velhotes, como nos arranjaremos? Se tivermos de 'traçar' primeiro as feias o nosso... entusiasmo murchará e como é que vamos dar conta das bonitonas?"

"De acordo com o decreto, os primeiros a provar os brotinhos serão os velhotes e feiosos; enquanto nós executamos o trabalho com os brotos vocês ficarão de mão no... queixo, esperando pacientemente".

"Um Rapaz - (suspirando aliviado, dirigindo-se à moça) Muito obrigado! Você me prestou um valioso serviço! Você terá todo o meu reconhecimento, que não é pequeno!"


II) The Dean Martin Show - título depois mudado para The Dean Martin Celebrity Roast - era um programa exibido pela rede NBC. Gravado em um salão de buffet em Las Vegas, cidade proibida, resultava numa legítima arena da comédia de insulto. Na edição de 18 de outubro de 1973, a vítim, er, homenageada foi a grande Bette Davis, que tomou alfinetadas certeiras de amigos da onça como Vincent Price e Henry Fonda. Algumas das pérolas:

"After several meetings he [Jack Warner] sent Bette for her first test. The result was positive and they named the kid Jack Junior."

"You know, Bette has always suffered in every picture she has ever made. When I appeared with her in 'Elizabeth And Essex' she gave up her beauty. In 'Dark Victory' she gave up her eyesight. And in 'The Virgin Queen'..."

"But there's still a very bright future for Miss Davis. Because with the advent of television a whole new field of unemployment is opening up for her."

"Here's a telegram I forgot to read before. It's from the National Association of Tobacco Manufacturers: 'Dear Miss Davis, we want to thank you for promoting the use of cigarettes in your films. No other actress swings her butt the way you do.'"
[trocadilho intraduzível entre butt = "bituca; cigarro" e butt = "bunda"]

"A star is a lady who gets some million dollars for doing on the screen - as you well know, Dean - what certain other ladies get only 20 dollars."

O curioso é que no final do evento o saco de panc, ops, convidado ia ao púlpito e devolvia as farpas. Na inesquecível e imponente voz com sotaque de Massachusetts, ela declarou o seguinte de um dos participantes da mesa, o humorista negro Nipsey Russell:

"I want to thank Nipsey Russell for being here. Nipsey is one of our great civil rights leaders. As a matter of fact, Stepin Fetchit once called Nipsey an 'Uncle Tom'."

III) Este vídeo. E me refiro estritamente às imagens. Experimentem assistir com o som desligado. É praticamente um herdeiro da escola Tex Avery de innuendo sacana desenhado.


IV) Um colega meu da época da faculdade, um dos sujeitos mais inteligentes e engraçados que conheço, estava numa fase barra pesada do mestrado e resolveu desabafar, meio em tom de piada, com o orientador:

- Não dá mais, Lino, é muita pressão. Vou largar tudo e montar uma barraquinha de comida típica.

- Que situação difícil, rapaz. Isso vai ser chato para sua família. Já tem aquela sua irmã que é atriz de teatro, né?


* * *

E concluo deixando a modesta proposta: da próxima vez que escreverem algo, deem uma chance à elipse.

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

domingo, 30 de setembro de 2012

Foguete fajuto

No Yuri, maior que a cintura de barril era a paixão por astronomia. Seu pai, um bancário terceirizado e mecânico diletante, batizara-o em homenagem ao célebre cosmonauta soviético. Ainda criança, construiu lunetas de cano PVC e revirou enciclopédias à cata de saber o que era zênite, solstício, periélio, equinócio. Ele morava na casa em frente à minha. Trabalhava em uma loja de eletrônicos no Centro, na rua Pedro Pereira. Os vizinhos nutriam por ele certa desconfiança. O rude taxista e a supersticiosa costureira provavelmente associavam "esses sujeitos que gostam de ciência" a vilões que elaboravam receitas de poções malignas e vivisseccionavam rãs na tábua de picotar legumes. Ele tinha uma namorada virtual de longa data (flertavam pelo ICQ, nunca se encontraram pessoalmente). Cheguei a perguntar a ele:

- De onde ela é? Áustria? Uruguai? Canadá? Tailândia?

Resposta:

- É ali da Maraponga.

Ele era um ingênuo e pacífico rechonchudo que vivia com a mente nas nuvens e muito além delas, nos extremos da Via Láctea, nos confins do universo, perto dos quasares e dos raios gama. Era fissurado nos registros tirados lá do alto por sondas; espirais e garranchos que representavam desmatamento na Amazônia, poluição no golfo do México, detritos da erupção de um vulcão javanês, furacões no oceano Índico, geleiras no Ártico. Ostentava no desktop do computador - um Athlon 64 2800+ - uma foto dele ao lado do famoso astrônomo Ronaldo Rogério de Freitas. Elegera para ringtone monofônico do celular o tema de Perdidos No Espaço - 3ª temporada. Em seu pulso esquerdo, destacava-se um relógio cheio de funções que parecia a cabine de um Boeing 747. Possuía um interessante currículo de turismo: Base da Barreira do Inferno, sede do INPE, observatório Gemini (Chile). Criava um cão fox terrier chamado Rigel.

Depois de vários testes de propulsão com garrafas PET, ele comprou pelo eBay, ao preço de 43,62 dólares, o kit de um foguete em miniatura:

- modelo E2X
- branco com detalhes em azul e vermelho
- 4 aletas
- de plástico e resina epóxi
- 110 cm de comprimento
- seção transversal: círculo com 100 mm de diâmetro
- 311,8 g
- altitude máxima: 46 m

Em um domingo qualquer, acordei decidido a gastar a manhã inteira assistindo ao Cartoon Network. Tocaram a campainha do portão e resmunguei, Ah, não. Fui atender, arrotando café e limpando migalhas de cuscuz da boca. Sem o menor prólogo, o lipidioso do Yuri agrediu-me com sua euforia:

- Vem ver, cara, já comecei a montar!

Pedi ao torradinho São Giordano Bruno que me desse paciência.

O Nº 567 era um domicílio acanhado. Uma sala, um corredor, um quarto, cozinha, banheiro, quintalzinho e fim. A desordem imperava. Chaves de fenda, alicate, multímetro, maçarico, tesoura, pinça, parafusos, resistores, disjuntores, capacitores, um prato inutilizado de antena parabólica, um cipoal de fios, carcaças de rádios e de ventiladores, revistas. Uma sucata, um lar. Fomos ao local em que ocorria o serviço. Nas paredes, que clamavam por uma pintura, resquícios de trilhas de cupins e pôsteres como se fossem band-aids numa pele maltratada. Passei os olhos pelas lombadas na estante metálica do recinto. Cosmos, O Guia Do Mochileiro Das Galáxias, Da Terra À Lua, Perry Rhodan, biografias: Omar Khayyam, Nicolau Copérnico, Wernher von Braun, Edwin Hubble, Sally Ride. Em seguida, mexi numa pilha de DVDs. Planeta Proibido, Futurama, Patrulha Estelar, Aelita, Apollo 13, Contato, Star Trek, Buck Rogers, Cassiopeia.

- E então, como está o processo? - indaguei, autoritário.

- Ih, acho que daqui a três minutos o micro-ondas apronta a pizza.

- Palhação.

Após empanturrar-se de catupiry, ele pôs mãos à obra.

Concluída a tarefa, o resultado ficou realmente bonito e vistoso. Um artefato para, na medida de suas limitações, desbravar os céus da nação. Mereceu um nome sugestivo: Caramuru. Um pequeno passo para o homem, etc etc.

A primeira complicação surgiu quando o capitão Y escolheu como área do experimento um campo de várzea na avenida Coronel Carvalho. O terreno era extenso, mas argumentei que era estúpido fazer isso numa região povoada. Teimoso que nem um mulá empacado, ele não quis me ouvir. A expectativa tornara-o irresponsável, temerário, exibicionista.

E assim foi. Encaixamos o brinquedo no suporte de lançamento. Afastamo-nos. Um clique no controle para acionar o cartucho de ignição, uma presilha no pavio, o qual queimou pela transmissão de uma corrente elétrica, detonou a carga de nitrato de potássio e tchuns, o danado rumou acima. E não é que funcionou? Sinceramente maravilhado, consegui apenas exclamar, em tom de paródia:

- Eppur si muove!

O entusiasmo duraria pouco. Em erros grosseiros de afobação, ele
exagerou no ângulo de inclinação do rojão e embrulhou inadequadamente o paraquedas, que falhou devido a um rompimento de cordas. O projétil perdeu altura até atingir e atravessar, com um baita estrondo, o telhado de um casebre. Corremos no rastro da fumaça. Arranjaríamos uma bela encrenca. Lembrei-me do episódio 117 do Pica-Pau, Foguete Fajuto (Rocket Racket).

E agora perdoem a narração atropelada. Foi nesse devoluto casebre, supostamente no aguardo de inquilinos e que atrevidamente arrombamos, que a polícia realizaria posteriormente uma apreensão, confiscando béqueres, pipetas, cadinhos, retorta, funis, tubos de ensaio, lamparina, 3 revólveres calibre 38 e um caderninho sebento repleto de dados comprometedores. Nosso incidente provocou a absurda descoberta de que operava no lugar, em esquema de improviso, um laboratório de combustíveis adulterados. Corta essa, reclama o incréu leitor. Eu próprio cogitei a existência de um Alquimista Superior, um velhinho eterno que se divertia arremessando ingredientes num alambique para produzir essas coincidências estapafúrdias.

Meu colega Flash Gordo teve o retrato estampado nos jornais. Preferi permanecer anônimo e fora da história. "Quadrilha desmascarada", anunciava uma manchete. E o caso piorou. Intimaram dois vereadores para prestar esclarecimentos. Telefones deles rabiscados no infame caderninho. O 1º, um membro do PMM, Partido dos Monarquistas Monetários. A 2ª, uma filiada do PGV, Partido dos Guevaristas Vigaristas. Foi época de discursos inflamáveis (ha) na Câmara Municipal. "Aleivosias contra minha reputação", "Vossa Senhoria é um larápio". A mulher acusada revoltou-se ao ganhar o apelido de Maria Gasolina.

Na noite em que aconteceu o desastre, eu dormia e estava mergulhado em um sonho estilo paraíso latino. De chapéu panamá, na beira de uma piscina, bebendo uma piña colada, acendendo um Cohiba e abraçado pela Sofia Vergara e pela Shakira. Em um tablado próximo, um conjunto musical animava os pés de valsa com a estranha porque dançante melancolia de Mi Desengaño. O cantor, dono de um frondoso bigode tropical, esmerava-se neste trecho:

Es cierto se debe admitir
El mundo esta lleno de maldad


De repente, incas venusianos invadiram o cenário e dispararam seu armamento alienígena nos meus convidados. Os tiros soaram realistas demais. Espera aí. Eram reais. Despertei com uma sacudida violenta sob o lençol na cama. Uma fuzilaria desgraçada tendo como alvo o cafofo do nerd pança. A gangue dos hidrocarbonetos, os bandidos da octanagem. Um ataque drive-by. Esses ratos sempre se vingam. Se ele cochilava no sofá da sala, era adeus. Despachado para o limbo sideral. Enfim poeira cósmica. O Jeep Cherokee Sport preto de placa fria dos meliantes cantou pneu em fuga desembestada e sumiu nas trevas. Peneiraram de balas a fachada. Uma multidão de curiosos pisava as cápsulas deflagradas de Uzi, de pistola Ruger e SIG Sauer, de Tec-9. No quintal, o Rigel latia com ferocidade inaudita. Calma, gente, vou ligar para o celular dele, arrisquei. Do outro lado da linha, veio um barulho de show de rock progressivo e um Alô?. Jamais pensei que me sentiria aliviado ao escutar aquela voz irritante.

Parentes vieram recolher pertences dele. Nunca mais o vi. Dizem que se escafedeu às pressas para a Guiana Francesa; num helicóptero tipo AS350, o "esquilo"; teve que aturar na viagem o piloto amapaense que contava piadas sobre voo com excesso de peso.



* para mais informações sobre lançamento de foguetes em miniatura, vale a pena uma visita:
- Apogee Rockets
- Estes Rockets

sábado, 1 de setembro de 2012

Slan Agus Beannacht

Martin McGuinness era uma espécie de leprechaun rebelado. Um dos principais corações e mentes por trás do IRA, grupo que empreendia luta armada pela independência da Irlanda do Norte. Exército Republicano Irlandês: pensem nas jaquetas camufladas, nos rostos ocultos por passa-montanhas, na bandeira tricolor com a gravura do punho cerrado. Mais uma entidade saída do caldeirão de legítimos anseios por autonomia que degringolaram em excrescências como a FLN argelina e a OLP de Arafat. Pois foi lá na terra do Thin Lizzy que o jovem Martin e seu bando, em meio a pints de cerveja Murphy's, decidiram combater o domínio britânico, adotando como instrumentos a panfletagem, a pistola Beretta, a metranca AR-18, o explosivo plástico Semtex, o lança-granada antitanque RPG, o assalto a banco e o sequestro. Em 27 de agosto de 1979, o IRA mandou pelos ares o iate Shadow V. Entre as vítimas fatais do atentado a bomba estava Louis Mountbatten, 1º Conde Mountbatten da Birmânia, veterano da Marinha inglesa, figura atuante nos processos emancipatórios da Índia e do Paquistão, entusiasta do polo, bon vivant mulherengo e primo da rainha Elizabeth II. Em Belfast, no dia 27 de junho de 2012, um agora sessentão e engravatado Martin McGuinness, membro do Sinn Fein e vice-primeiro-ministro, teve um encontro com uma verdejante e octogenária rainha Elizabeth II. Os dois cumprimentaram-se com um protocolar aperto de mão. O político católico ex-terrorista, ao despedir-se da monarca anglicana ex-opressora, emitiu uma frase em gaélico, "Slan Agus Beannacht". Que, traduzindo para o idioma de Adele, vira "Goodbye and Godspeed". Rapidamente, especialistas no assunto arreganharam as comportas de suas eclusas de ideias prontas, escoando para a Sandra Annenberg e o Celso Freitas uma esperada torrente de: momento histórico e emocionante, marco nas negociações de paz, notícia foi destaque nas redes sociais. Uma bastante aguardada demonstração de forgive & forget, perdoar & esquecer? Pode ser. Do que me lembrei quando vi a cena foi um antigo comercial dos bonecos Playmobil.

terça-feira, 31 de julho de 2012

The impression that I get

Em memória do amigo Cícero Jorge (11/07/1984 - 20/07/2012):



THE MIGHTY MIGHTY BOSSTONES - THE IMPRESSION THAT I GET

Have you ever been close to tragedy

or been close to folks who have?
Have you ever felt the pain so powerful,
so heavy you'd collapse?
No? Well,

I've never had to knock on wood
But I know someone who has
which makes me wonder if I could
It makes me wonder if I
Never had to knock on wood
and I'm glad I haven't yet
because I'm sure it isn't good.
That's the impression that I get.

Have you ever had the odds stacked up so high
you'd need a strength most don't possess?
Or has it ever come down to "do or die"
you gotta rise above the rest.
No? Well,

I've never had to knock on wood
But I know someone who has
which makes me wonder if I could
It makes me wonder if I
never had to knock on wood
and I'm glad I haven't yet
because I'm sure it isn't good.
That's the impression that I get.

I'm not a coward, I've just never been tested.
I'd like to think that if I was I would pass.
Look at the tested, and think there but for the grace go I
Might be a coward, I'm afraid of what I might find out.

Never had to knock on wood
But I know someone who has
which makes me wonder if I could
It makes me wonder if I
never had to knock on wood
and I'm glad I haven't yet
because I'm sure it isn't good.
That's the impression that I get.

Never had, but I'd better knock on wood
'cos I know someone who has
which makes me wonder if I could.
It makes me wonder if I
Never had, but I'd better knock on wood
'cos I'm sure it isn't good
and I'm glad I haven't yet.
That's the impression that I get.

sábado, 30 de junho de 2012

Y2K e Golem

Eu jogando Quake 2, disparando chumbo grosso de uma Hyperblaster em um paramilitar inimigo de capacete de melancia. Em um Gradiente SMZ-96 largado no chão de parquê, rolava um mix CD metade Mad Caddies, metade Dance Hall Crashers. Perto do monitor SVGA, um pacote de plástico rasgado do qual esparramavam-se, como numa cornucópia, salgadinhos tubitos sabor milho (sem glúten, jurava a embalagem). Na cozinha, a mãe - o avental florido, a espessa luva que parecia uma manopla de vilão de quadrinhos - preparando uma fornada de quindins, um cheirinho bom que impregnava os vértices superiores das paredes. Outra pacífica, ensolarada e doméstica manhã. Era um dos primeiros sábados de 2000, o ano em que faríamos contato com o apocalipse informático. Y2K. Bug do milênio.

Por volta de a.C. (antes de Celeron), os sistemas antigos, para economia dos preciosos kbytes de disco e de memória, armazenavam com dois dígitos os campos das datas. 17 de setembro de 1939 virava 17/09/39. Resumo do problema que nos ameaçava no pós-réveillon: talvez as máquinas interpretassem o 00 de 2000 como 1900. Previam-se contas de luz debitando um século no total, confusão nos bancos de dados de aeroportos e de agências meteorológicas, baderna no registro dos velhinhos do INSS. Uma das soluções que emergiram, baseada em força bruta: no código do programa, alterar manualmente as linhas (que nos mais complexos chegavam a milhares) que envolvessem cálculo de data, acrescentando duas casas para o ano.

Claro que as imaginações mais suscetíveis, anabolizando notícias lidas nas "indispensáveis" revistas semanais, trataram logo de emprestar tons de excitante dramaturgia às especulações. Seria a rebelião da parafernália. Servidores de sites famosos (UOL, Yahoo!, Ask Jeeves) planejariam um motim. Consoles Neo Geo eletrocutariam adolescentes. Aqueles brinquedos de shopping, com a garra mecânica de capturar bonequinhos de pelúcia - pesquisem por grapplomat no Google -, estrangulariam crianças. Tentáculos de metal trançado, como jibóias cibernéticas, quebrariam os braços de operários em montadoras de automóveis. O Panasonic trituraria minha fita VHS repleta de filmes do John Woo gravados em SLP. Túneis de tomografia pulverizariam os coitados dos pacientes. Softwares de análises clínicas rodados em Windows 98 emitiriam, por pura diversão sádica, diagnósticos errados e letais. Apareceriam insistentes e inexplicáveis mensagens de senha incorreta na hora de sacar dinheiro no caixa eletrônico. Em bases militares, computadores enlouquecidos provocariam um enxame de Tomahawks, Exocets, & Scuds pelo céu. Sinais de trânsito piscariam abilolados. Um ludita, o carunchoso doutor Žižek Pondé, movido por um profundo sentimentalismo analógico, vociferaria pelas ruas caóticas de uma metrópole, entre residências destruídas, caravanas de refugiados e pontos de comércio saqueados: "Reduzimo-nos a números, a uma pantomima binária! Entregamos nossas vidas aos malditos processadores!"

Presenciaríamos terrores medievais como bebês de três cabeças, pragas agrícolas e pecuárias, cometas de mau agouro. Menos, meu povo, menos. Ou: e a montanha pariu um ratinho.

No folclore judaico existe uma figura chamada Golem. De acordo com a lenda contada pelos apedrejadores de Cristo, o Golem foi fabricado com barro e animado pelas artimanhas cabalísticas de um Isaac Abravanel qualquer, lá da vila Canaã. A geringonça antropomórfica auxiliaria o senhor Isaac e família na dura labuta diária, facilitando a execução de algumas tarefas. Ajudar a Rute a pendurar roupa lavada no varal, carregar pesos na reforma da sinagoga, imprimir estatísticas das vendas do lojinha. O ancestral dos robôs era uma entidade sem inteligência, apenas seguia instruções. Só que a invenção saiu do controle, tornou-se hostil aos humanos. Essa história é uma bela e clássica metáfora que mostra como às vezes ficamos infantilmente dependentes/maravilhados/assombrados em relação a certos prodígios tecnológicos. Todos os maiores bens estão cheios de ansiedade. Essa frase não é minha.

quinta-feira, 31 de maio de 2012

Folhas de um caderno do cárcere

A Primeira Guerra Mundial foi a aplicação do que posteriormente o general alemão Erich Ludendorff chamaria de guerra total. Um teatro de implacável encenação no qual figuraram marmanjos tão díspares quanto o comediante americano Bob Burns e o poeta franco-suíço Frédéric-Louis Sauser (Blaise Cendrars; ferido em uma explosão, teve o braço direito amputado).

Para uns, as batalhas eram uma aventura, um esporte varonil. Para outros, uma lástima, um morticínio degradante. A marcha dos pelotões, o ratatá das metralhas, a fuzilaria de rifles Mauser e Lee-Enfield, os estilhaços de granadas, os lugares reduzidos a escombros pelo canhoneio de howitzers, os pulmões destruídos pelo insidioso gás de cloro, tanques Mark em procissão, zepelins e aviões trafegando por um céu impassível, submarinos torpedeando navios brasileiros (e ensejando a entrada de reforços canarinhos no confronto).

Naqueles tempos conturbados, um inquieto inglês de quarenta e tantos anos foi preso por seu engajamento em atividades que advogavam um boicote à participação britânica no conflito. No período atrás das grades, ele escreveu um livro. Mais um para torrar-nos a santa paciência com frases imperdoavelmente pueris sobre paz, liberdade e rouxinóis? Não é esse o caso. Em novembro de 1918, encerrou-se a fúria dos filhos de Marte. Em setembro do mesmo ano, após quatro meses de detenção, o cidadão que referi saiu do cárcere. Era o matemático e filósofo Bertrand Russell, trazendo com ele o rascunho de Introdução À Filosofia Matemática. Na obra, comentava assuntos como classes, definição de número, lógica proposicional, silogismos. Falava de suas influências: Leibniz, Frege, Peano. Defasado em alguns pontos para os padrões de hoje, é um material cuja leitura vale pela curiosidade histórica e pelo estilo do autor.

Reproduzo dois trechos. Em I), ele explica de maneira didática e sucinta seu famoso paradoxo. O II) é uma crítica a certas abordagens do pensamento abstrato.

I) "A classe compreensiva por nós considerada, que deve abranger tudo, deve abranger a si mesma como um de seus membros. Em outras palavras, se há algo chamado 'tudo', então tudo é alguma coisa e é um membro da classe do 'tudo'. Mas normalmente uma classe não é membro de si mesma. A humanidade, por exemplo, não é um homem. Forme-se agora a reunião de todas as classes que não são membros de si mesmas. Essa reunião é uma classe: será ou não um membro de si mesma? Se o for, será uma daquelas classes que não são membros de si mesmas, isto é, não é membro de si mesma. Se não o for, não será uma daquelas classes que não são membros de si mesmas, isto é, ela é um membro de si mesma. Assim, das duas hipóteses - a de que seja e a de que não seja um membro de si mesma - cada uma implica sua contraditória. Isso é uma contradição.

Não há dificuldades em elaborar contradições similares ad lib. A solução de tais contradições pela teoria dos tipos é apresentada por inteiro em Principia Mathematica e também, mais resumidamente, em artigos deste autor no American Journal of Mathematics, bem como na Revue de Metaphisique et de Morale. Para o momento, deve bastar um esboço da solução.

A falácia consiste na formação do que chamamos classes 'impuras', isto é, classes que não são puras quanto ao 'tipo'. Como veremos em capítulo posterior, as classes são ficções lógicas, e um enunciado que pareça referir-se acerca de uma classe só será significante se for capaz de tradução para uma forma na qual não seja feita menção alguma à classe. Isso impõe uma limitação às maneiras em que possam ocorrer significantemente as coisas que são, nominal, mas não realmente, os nomes das classes: uma sentença ou um conjunto de símbolos que em tais pseudonomes ocorrem de maneiras errôneas não são falsos, mas estritamente carentes de significado. A suposição de que uma classe é, ou de que não é, um membro de si mesma é destituída de sentido justamente dessa maneira. E, com mais generalidade, supor-se que uma classe de indivíduos seja um membro, ou que não seja um membro, de outra classe de indivíduos será fazer-se uma suposição sem sentido; e construir-se simbolicamente qualquer classe cujos membros não são todos do mesmo grau na hierarquia lógica é usar-se símbolos de um modo que faz com que não mais simbolizem coisa alguma."

II) "Na falta de um aparato de funções proposicionais, muitos lógicos foram levados à conclusão de que há objetos irreais. É alegado, e.g., por Meinong, que podemos falar sobre 'a montanha de ouro', 'o quadrado redondo', e assim por diante; podemos formar proposições verdadeiras das quais essas coisas são os objetos; portanto elas devem ter alguma espécie de ser lógico, pois de outro modo, as proposições em que ocorrem seriam sem significado. Parece-me que em tais teorias há uma falha do sentimento de realidade que deve ser preservado até mesmo nos estudos mais abstratos. Sustento que a Lógica não deve admitir um unicórnio mais do que o admite a Zoologia; pois a Lógica está tão interessada no mundo real quanto na verdade o está a Zoologia, embora com suas características mais abstratas e reais. Dizer que os unicórnios têm uma existência na heráldica ou na literatura ou na imaginação é a mais lamentável e mesquinha das evasões. O que existe na heráldica não é um animal, feito de carne e osso, movendo-se e respirando por sua própria iniciativa. O que existe é uma figura ou uma descrição com palavras. Similarmente, dizer que Hamlet, por exemplo, existe em seu próprio mundo, a saber, no mundo da imaginação de Shakespeare, tão verdadeiramente quanto (digamos) Napoleão existiu no mundo comum, é dizer algo deliberadamente destinado a confundir, ou, então, confundido em um grau dificilmente acreditável. Só existe um mundo, o mundo 'real': a imaginação de Shakespeare é parte dele e os pensamentos que ele teve ao escrever Hamlet são reais. Também o são os pensamentos que temos ao ler a peça. Mas é da própria essência da ficção o fato de apenas os pensamentos, sentimentos, etc. em Shakespeare serem reais e de não haver, além deles, um Hamlet objetivo. Ao se dar conta das reações provocadas por Napoleão nos escritores e leitores da História, você não terá tocado o homem real; mas, no caso de Hamlet, você terá chegado ao âmago. Se ninguém tivesse pensado em Hamlet, nada restaria dele; Se ninguém tivesse pensado em Napoleão, ele teria, logo, providenciado para que alguém o fizesse. O senso de realidade é vital em Lógica, e, se alguém fizer prestidigitações com ele, simulando que Hamlet tenha qualquer outra espécie de realidade, estará prestando um desserviço ao pensamento. Um robusto senso de realidade é muito necessário à estruturação de uma análise correta de proposições sobre unicórnios, montanhas de ouro, quadrados redondos e outros pseudo-objetos do gênero."

segunda-feira, 30 de abril de 2012

Umek

Umek. Não confundir com a antidade, mistura de anta com entidade, que ensina "nós pega o peixe". Descobri o DJ esloveno Uroš Umek em 2003, através do aplicativo multimídia BS.Player. Em sua primeira execução após instalado, o programa tocava automaticamente a amostra de 30 segundos de uma curiosa faixa eletrônica intitulada Posing As Me. Chamou minha atenção no ato. Procurei no Kazaa por mais material do sujeito. Imaginem versões alucinógenas das trilhas de games futuristas e cyberfetichistas como Super Metroid e MDK.

É interessante esse fenômeno, a popularidade alcançada por hits techno/dance vindos de improváveis lugares dos Balcãs. Por exemplo, acho difícil que alguém tenha escapado incólume de ouvir, em 2010-2011, uma certa Stereo Love: o batidão com tunts e bips, o sample da sanfoninha romena e a voz intrigante da exótica beldade Vika Jigulina (nascida na Moldávia).

"Música de rave" me lembra de um antigo colega de trabalho, do breve período em que fui empregado de uma em-vários-sentidos-minúscula secretaria da prefeitura. O cidadão encarnava o típico marombado com cérebro de platelminto e camiseta Abercrombie & Fitch. Éramos da área de banco de dados. Muito engraçado ver o Johnny Bravo da Parangaba, ele sentado em uma das cadeiras giratórias do escritório e imitando as coreografias que aprendia nas boates, narrando histórias que envolviam abuso de anfetaminas e de peiote, luzes psicodélicas, problemas de surdez momentânea, garotas disponíveis e fosforescentes de glitter, paredões de som do tamanho de um castelo búlgaro. Espécie de almanaque no assunto, ele vivia citando nomes tipo The Chemical Brothers, Marky, Basement Jaxx, Daft Punk, The Prodigy. Uma vez, danou-se a falar até de efeito Doppler.

Possuo 86 arquivos MP3 do Umek. Foi complicado selecionar 4 para este post. Qualquer coisa, dêem uma pesquisada. Recomendo. O cara é inspirado. Conta-se inclusive um caso de teor folclórico sobre ele. Por causa de uma festa realizada em um distrito rural perto de Liubliana, capital da Eslovênia (país com território menor que o de Sergipe, a República do Sergipistão). Apareceram acusações de que o barulho infernal do evento provocou stress nas vaquinhas de fazendas da região, impedindo os traumatizados bifes ambulantes de produzir leite por um tempo, o que ocasionou prejuízos à economia do vilarejo. Mu.

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sábado, 7 de abril de 2012

[edição extraordinária]

O post anterior foi uma homenagem à maravilhosa e eterna Jane Austen, uma das minhas obsessões literárias, um dos meus modelos de perfeição em linguagem escrita.

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Foi também uma homenagem aos amigos e aos inimigos com os quais vivi durante os loucos e inesquecíveis derradeiros anos da década de 90, os últimos suspiros do fascinante e assustador século XX. Acho que, pelas referências, dava para perceber que eu contava situações ocorridas por volta de 1999-2000.

* * *

Qual não foi minha surpresa ao saber ontem do falecimento de um dos personagens emblemáticos daquele período, o professor Itamar Filgueiras. Foi o que me motivou a digitar esta edição extraordinária. Figura famosa no ensino de Português no Ceará. Fui aluno dele em 2000. Lembro sua característica bata - um par de pincéis atômicos no bolso -, seu cabelo à Franz Kafka, sua volumosa pança eclesiástica/tamborística, seu nariz de tucano, suas anedotas, sua voz profunda de locutor da era de ouro do rádio anunciando uma música de Emilinha Borba e orações coordenadas sindéticas. Estou em visita de feriadão na casa dos meus pais. Encontrei o primo Roger e sua filhinha de poucos meses (parabéns!). Encontrei o quase centenário vô Antonino e comentei com ele a morte do ilustre docente. O bode velho, com a habitual grosseria que o torna tão adorável, apenas observou o quanto alguns sujeitos caem fácil nas garras da Indesejada. Não fala isso, vô, Deus castiga, protestei. Olha a blasfêmia, moleque, reagiu. Saí correndo, para escapar do bracinho de espaguete que desenhava no ar uma bengalada. Deixei-o conversando sozinho, "Rapaz, me alembrei agora de um jogo da Copa da Suécia, nessa época minha véia inda era viva..." e bla bla bla.

* * *

Também no texto anterior, mencionei rapidamente o descartável grupo Sugar Ray, autor de dois megahits executados à exaustão no rádio e na TV. Sofreram superexposição e encheram o saco de muita gente. No Laranjato, sempre havia alguém cantarolando-os, assoviando-os. Procurem pelo outro sucesso deles, Someday. Tenho certeza de que o reconhecerão de imediato. "And fade away", diz uma parte da letra, que reflete sobre a passagem do tempo. Cedo ou tarde, esse será o destino de todos nós. Feliz Páscoa.

sexta-feira, 30 de março de 2012

Enquanto isso, na Sala de Justiça

O pai me pediu para entregar uma reclamação trabalhista na Justiça Federal. E lá fui singrando até a rua Pedro I com Floriano Peixoto.

A praça Murilo Borges (ou do BNB) é realmente uma belezura, um colírio. Os convidativos e largos bancos verdes de cedro, a sombra arrepiada dos ulmeiros, os esguios postes de polpudas lâmpadas, o jardim com seu carpete de gramíneas e moitas de gerânios, o balé confuso de um inseto polinizador. A fonte, pedacinho da República de Weimar, com sua cercadura 2
πR de crisântemos; na base, os pedregulhos, os cavalos de batalha a jorrar água; logo acima, um disco parecido com aquele restaurante de Seattle, bordejado por cabecinhas de leão a jorrar mais água; as sereias protegidas por outro disco, menor, do qual cascateia mais água; encerrando, uma estrutura que é quase um bispo gigante de xadrez.

Subi uma escadaria e topei com a fachada vertiginosa de um imenso cubo cinza, templo de Maat. Um letreiro com o nome do prédio aludia ao primeiro general do regime militar. No alto de um renque de mastros, rajadas de vento produziam um ruído de flap-flap nas bandeiras, esses trapos coloridos capazes de despertar estranhas sensações de dever, honra e glória feita de sangue. Atravessei o abre-te, sésamo de uma porta giratória com detector de metais. No saguão com acústica de hangar, um invisível equipamento de som despejava pelos cantos Sultans Of Swing, do Dire Straits. Magistrados rock & roll, baby.

Dirigi-me a um guarda, mastodonte empertigado, de colete de kevlar, pistola Colt .45 à cintura, walkie-talkie. Mostrei o documento. Vá ao 13º piso, senhor, respondeu-me. Meu número de sorte. À espera do elevador, capturei fragmentos de diálogos das figuras ao redor, "usucapião", "impugnada", "tramitação", "PIPA... SOPA". O quartinho móvel chegou e recebeu os passageiros. Um ding-dong e uma macia voz feminina anunciavam os andares selecionados. Foi em um deles que, sem aviso, embarcou a A-, uma antiga inimiga minha. Espantado, notei que se vestia de maneira conservadora, genuína aeromoça da Panair. Com a mão esquerda, segurava uma pasta. Tinha mais de dez anos que eu não a via, cursávamos o ensino médio. Ela conferindo o cabelo pelo grande espelho do recinto, bastou um rápido tropeção de olhares e:

- Não acredito! Menino, há quanto tempo!

Curioso ela me saudando como se estivéssemos em bons termos. Ahn, uma trégua? É necessário que eu explique: além de artilheira do time de handebol, ela era a desinibida da turma, prafrentex total. Circulavam sobre ela histórias esquisitas, intumescentes e falopianas. Ganhou apelidos preocupantes como Engraçadinha e Nadia (este por causa da libidinosa personagem do clássico do besteirol American Pie). Recordo uma festa - um DJ que explorava os hits do período: Every Morning (Sugar Ray), Believe (Cher), Kiss Me (Sixpence None The Richer), Never There (Cake), Mambo No. 5 (Lou Bega), Pretty Fly (For A White Guy) (The Offspring) - em que ela exagerou na birita e, empunhando uma garrafa de cerveja pelo gargalo, atreveu-se a discursar que "dava mesmo, não era da conta de vocês". Uma vez, só de pirraça, inventou de ficar com o J-, um dos negros da classe. Era para irritar a mãe dela, quarentona desquitada e racista, adepta da escravidão por dívida, da esterilização de pobres, do sistema ptolomaico e das teorias lombrosianas. A coroa precisou tomar chá de camomila para aplacar o enjôo que sofreu ao imaginar um netinho preto que nem carvão, beiçola e com uma carantonha feroz de guerrilheiro angolano.

Lembro exatamente como nasceu nossa desarmonia. Orçávamos pelos 16 de idade. Eu terminara de ler Orgulho E Preconceito, de Jane Austen. Moleque influenciável que eu era, impressionado pelo vigor, pelo rigor da obra, saí pelo mundo papagaiando um wit aguçado como espora e, em diversos casos, inconveniente. Foi em uma ocasião, no recreio, um grupo discutia que os plissados e a cambraia invadiriam as passarelas do próximo verão. A comunicativa A- grasnou:

- Esse Silvio anda tão calado.

Mandei, à queima-roupa:

- É que sua conversa está tão interessante quanto a chiadeira de uma carruagem ["rattle of the chaise"].

A namoradeira indignou-se, é claro. E quando falo em namorar, refiro-me a algo pior ["a flirt, too, in the worst and meanest degree of flirtation"]. Desde esse dia, passamos a nos tratar com estudada indiferença e maquiavélicas indiretas.

Voltemos a 2012. "Vai ao treze? Que coincidência!", comentou. Ding-dong, tiniu o sinalzinho. No corredor, enfática e alardeando suas conquistas de mulher emancipada, ela improvisou um veloz plantão de notícias. A graduação e o mestrado em Direito na UNIFOR, a recente entrevista à TV Assembléia, como era eclética na cozinha (tutu à mineira, omelete, polenta), as férias em Aruba, o exemplar autografado de livro do Gabriel Chalita, o escritório com réplica de um Monet na parede, morava na Cidade dos Funcionários,
guiava um Hyundai Azera, prestava serviço voluntário em uma creche, colecionava catálogos da grife Manotropo, assinava Marie Claire e Consulex, casou com o V-.

V- era um andrógino da escola. Fã de Pedro Almodóvar e de Belle & Sebastian. Prosseguiu ela:

- Ai, sabe, a gente freqüentava a academia Corpo de Baile, trocava idéias durante
as séries de leg press e a esteira, o pessoal aborrecido porque a gente excedia os minutos nas máquinas, e a gente nem ligava, sabe, o clima de romance no ar, coisa de pele...

- Não conhecia uma boa qualidade sequer, mas ninguém pensa nisso quando se apaixona ["knew no actual good of me - but nobody thinks of that when they fall in love"].

Ops, aconteceu de novo.

- Credo... Você continua um grosseirão pernóstico. Seu ridículo.

- Também foi um prazer revê-la.

Escapei de uma bofetada, isso sim.

Observei um rapazote, empregado do local, que carregava um volume insanamente graúdo de papeladas processuais. Querelas, pendengas e arranca-rabos de tribunal, uma enxurrada que nunca terá fim. Ainda possuído pelo fraseado da solteirona de Steventon, cobri-me com uma toga, pus uma longa e cacheada peruca grisalha, bati o martelo e pronunciei um veredicto: a insipidez, e não obstante a algazarra; a nulidade, e não obstante a presunção de toda esta gente ["the insipidity, and yet the noise; the nothingness, and yet the self-importance of all these people"].

Depois de virar gato e sapato nas garras da burocracia, empurrado para uma penca de setores, cumpri minha tarefa... Em um balcão no térreo.

Fui embora encafifado:

- Advogada! Bem que na época do colégio diziam que ela entendia muito de vara.

quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

I love the bitch in you

Anne Taintor é uma americana terrivelmente criativa. Sua especialidade é revisitar (o termo é dela) gravuras vintage.





















































terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Sévigné

"The tumult of the outer world is heard faintly." (do prefácio às cartas da madame de Sévigné)

Um colega meu, professor de Português, espiou trechos aqui do blog e me confessou, Escute, percebe-se que você tem qualquer coisa parecida com habilidade para capturar atenção e escolher palavras, mas há um problema: fala demais de vida ordinária, de trivialidades. Rotina do bairro ou do escritório, ida ao barbeiro, conversa com adolescentes oligofrênicas, memórias de infância ("clichê terrível", observou). Pelo menos você nos poupou de detalhes das suas experiências como mesário nas eleições, finalizou. Nessa parte, tive que concordar. Ele me recomendou exercícios como tentar um ensaio sobre a origem do hotel Waldorf Astoria, uma análise da árvore genealógica dos Plantagenets ou um resumo da ascensão de Harun al-Rashid.

Diante da acusação, refleti e concluí: hora de voltar à Sévigné. A francesa Marie de Rabutin-Chantal (1626-1696), marquesa de Sévigné, cuja correspondência há trezentos e tantos anos é modelo de estilo, de esprit. Contemporânea de cidadãos como o filósofo/matemático René Descartes, o dramaturgo Pierre Corneille e o mosqueteiro d'Artagnan. Amiga de figuras como a madame de La Fayette e o aforista La Rochefoucauld. Ela desejava manter contato com a filha, Françoise-Marguerite, que casou, tornou-se condessa de Grignan e foi morar longe dela. Esse seria o início do período mais famoso de sua prolífica escrita de missivas. Li a tradução para o inglês em um e-book formato .pdf. Download 100% legalizado, grande ferramenta esse Internet Archive.

E quais são os assuntos das mensagens da ilustre conterrânea de Asterix e de Édith Piaf? As inadequadas toilettes das convidadas de um rega-bofe em Paris, menções a livros (inclusive um com o curioso título de Well-Founded Prejudices Against The Calvinists), um cortesão pego com a boca na botija trapaceando em jogo de baralho, a exibição de um engolidor de fogo, a demonstração de um telescópio, o dialeto incompreensível de camponeses que se ofereceram para consertar sua carruagem, uma estação hidroterápica de Vichy, um cozinheiro que se matou com uma espada por não terminar um prato no horário marcado, um pitoresco asceta que era quase a atração turística de uma paróquia, geadas, fofocas matrimoniais, uma peça de teatro que foi sucesso, o espanto com o que ela chama de "resquícios de paganismo" nos ritos fúnebres da região de Provença.

A riqueza de expressão que ela alcançou quando queria "apenas" comunicar miudezas cotidianas e registrar impressões é de fato notável. Gosto de imaginar a Marie, ela reabastecendo no tinteiro o bico da pena de faisão, à noitinha, de pantufas e com uma camisola tipo a da Audrey Hepburn numa das cenas do começo de A Princesa E O Plebeu. Exalando um perfume de sândalo ou de alfazema e iluminada por uma vela no tampo da escrivaninha de mogno, ela rabisca outra de suas epístolas.

E tem ainda l'humour. Que vocação para o riso tinha ela, uma beleza de se ver:

"It requires the pen of a Molière to describe all she says upon the occasion; and it is highly amusing to see how artfully she manages me, and with what care she avoids speaking of my supposed rival before my face."

"Guilleragues said yesterday, that Pelisson abused the permission men have to be ugly."

"Mention was made of M. de Vitri, who is very ill, upon which she [madame Noblet] said to monsieur, 'Ah! sir, I saw him this morning, poor man! his face looked just like a stratagem.' What could she mean?"

"It is said that our mutineers have sued for pardon; I suppose they will obtain it, after a sufficient number have been hanged."

"We laughed till we cried with the story of the girl who sung the indecent song, for which she confessed aloud in the church. Nothing can be more novel and amusing. I think she was in the right; the confessor certainly wished to hear the song, for he was not satisfied with the girl's accusation of herself. I fancy I see him bursting with laughter the first at this adventure. We often send you ridiculous stories, but we can not surpass this."

"My dear child, your good lady, who swore she would not touch a card till the King of England had won a battle, will not probably play again for a long time."

Portanto, respondendo ao professor Vinícius, sujeito que muito estimo:

Abordar temas imponentes, tópicos relevantes, esmiuçar as questões cruciais do passado ou do presente? Não, obrigado. Vou ali com a mademoiselle dar um passeio bem, aham, mundano pela Champs-Élysées. Flanar enquanto entupo a goela com brioche e croissant. Assistir a um acordeonista de calçada tocar Alouette.