domingo, 30 de setembro de 2012

Foguete fajuto

No Yuri, maior que a cintura de barril era a paixão por astronomia. Seu pai, um bancário terceirizado e mecânico diletante, batizara-o em homenagem ao célebre cosmonauta soviético. Ainda criança, construiu lunetas de cano PVC e revirou enciclopédias à cata de saber o que era zênite, solstício, periélio, equinócio. Ele morava na casa em frente à minha. Trabalhava em uma loja de eletrônicos no Centro, na rua Pedro Pereira. Os vizinhos nutriam por ele certa desconfiança. O rude taxista e a supersticiosa costureira provavelmente associavam "esses sujeitos que gostam de ciência" a vilões que elaboravam receitas de poções malignas e vivisseccionavam rãs na tábua de picotar legumes. Ele tinha uma namorada virtual de longa data (flertavam pelo ICQ, nunca se encontraram pessoalmente). Cheguei a perguntar a ele:

- De onde ela é? Áustria? Uruguai? Canadá? Tailândia?

Resposta:

- É ali da Maraponga.

Ele era um ingênuo e pacífico rechonchudo que vivia com a mente nas nuvens e muito além delas, nos extremos da Via Láctea, nos confins do universo, perto dos quasares e dos raios gama. Era fissurado nos registros tirados lá do alto por sondas; espirais e garranchos que representavam desmatamento na Amazônia, poluição no golfo do México, detritos da erupção de um vulcão javanês, furacões no oceano Índico, geleiras no Ártico. Ostentava no desktop do computador - um Athlon 64 2800+ - uma foto dele ao lado do famoso astrônomo Ronaldo Rogério de Freitas. Elegera para ringtone monofônico do celular o tema de Perdidos No Espaço - 3ª temporada. Em seu pulso esquerdo, destacava-se um relógio cheio de funções que parecia a cabine de um Boeing 747. Possuía um interessante currículo de turismo: Base da Barreira do Inferno, sede do INPE, observatório Gemini (Chile). Criava um cão fox terrier chamado Rigel.

Depois de vários testes de propulsão com garrafas PET, ele comprou pelo eBay, ao preço de 43,62 dólares, o kit de um foguete em miniatura:

- modelo E2X
- branco com detalhes em azul e vermelho
- 4 aletas
- de plástico e resina epóxi
- 110 cm de comprimento
- seção transversal: círculo com 100 mm de diâmetro
- 311,8 g
- altitude máxima: 46 m

Em um domingo qualquer, acordei decidido a gastar a manhã inteira assistindo ao Cartoon Network. Tocaram a campainha do portão e resmunguei, Ah, não. Fui atender, arrotando café e limpando migalhas de cuscuz da boca. Sem o menor prólogo, o lipidioso do Yuri agrediu-me com sua euforia:

- Vem ver, cara, já comecei a montar!

Pedi ao torradinho São Giordano Bruno que me desse paciência.

O Nº 567 era um domicílio acanhado. Uma sala, um corredor, um quarto, cozinha, banheiro, quintalzinho e fim. A desordem imperava. Chaves de fenda, alicate, multímetro, maçarico, tesoura, pinça, parafusos, resistores, disjuntores, capacitores, um prato inutilizado de antena parabólica, um cipoal de fios, carcaças de rádios e de ventiladores, revistas. Uma sucata, um lar. Fomos ao local em que ocorria o serviço. Nas paredes, que clamavam por uma pintura, resquícios de trilhas de cupins e pôsteres como se fossem band-aids numa pele maltratada. Passei os olhos pelas lombadas na estante metálica do recinto. Cosmos, O Guia Do Mochileiro Das Galáxias, Da Terra À Lua, Perry Rhodan, biografias: Omar Khayyam, Nicolau Copérnico, Wernher von Braun, Edwin Hubble, Sally Ride. Em seguida, mexi numa pilha de DVDs. Planeta Proibido, Futurama, Patrulha Estelar, Aelita, Apollo 13, Contato, Star Trek, Buck Rogers, Cassiopeia.

- E então, como está o processo? - indaguei, autoritário.

- Ih, acho que daqui a três minutos o micro-ondas apronta a pizza.

- Palhação.

Após empanturrar-se de catupiry, ele pôs mãos à obra.

Concluída a tarefa, o resultado ficou realmente bonito e vistoso. Um artefato para, na medida de suas limitações, desbravar os céus da nação. Mereceu um nome sugestivo: Caramuru. Um pequeno passo para o homem, etc etc.

A primeira complicação surgiu quando o capitão Y escolheu como área do experimento um campo de várzea na avenida Coronel Carvalho. O terreno era extenso, mas argumentei que era estúpido fazer isso numa região povoada. Teimoso que nem um mulá empacado, ele não quis me ouvir. A expectativa tornara-o irresponsável, temerário, exibicionista.

E assim foi. Encaixamos o brinquedo no suporte de lançamento. Afastamo-nos. Um clique no controle para acionar o cartucho de ignição, uma presilha no pavio, o qual queimou pela transmissão de uma corrente elétrica, detonou a carga de nitrato de potássio e tchuns, o danado rumou acima. E não é que funcionou? Sinceramente maravilhado, consegui apenas exclamar, em tom de paródia:

- Eppur si muove!

O entusiasmo duraria pouco. Em erros grosseiros de afobação, ele
exagerou no ângulo de inclinação do rojão e embrulhou inadequadamente o paraquedas, que falhou devido a um rompimento de cordas. O projétil perdeu altura até atingir e atravessar, com um baita estrondo, o telhado de um casebre. Corremos no rastro da fumaça. Arranjaríamos uma bela encrenca. Lembrei-me do episódio 117 do Pica-Pau, Foguete Fajuto (Rocket Racket).

E agora perdoem a narração atropelada. Foi nesse devoluto casebre, supostamente no aguardo de inquilinos e que atrevidamente arrombamos, que a polícia realizaria posteriormente uma apreensão, confiscando béqueres, pipetas, cadinhos, retorta, funis, tubos de ensaio, lamparina, 3 revólveres calibre 38 e um caderninho sebento repleto de dados comprometedores. Nosso incidente provocou a absurda descoberta de que operava no lugar, em esquema de improviso, um laboratório de combustíveis adulterados. Corta essa, reclama o incréu leitor. Eu próprio cogitei a existência de um Alquimista Superior, um velhinho eterno que se divertia arremessando ingredientes num alambique para produzir essas coincidências estapafúrdias.

Meu colega Flash Gordo teve o retrato estampado nos jornais. Preferi permanecer anônimo e fora da história. "Quadrilha desmascarada", anunciava uma manchete. E o caso piorou. Intimaram dois vereadores para prestar esclarecimentos. Telefones deles rabiscados no infame caderninho. O 1º, um membro do PMM, Partido dos Monarquistas Monetários. A 2ª, uma filiada do PGV, Partido dos Guevaristas Vigaristas. Foi época de discursos inflamáveis (ha) na Câmara Municipal. "Aleivosias contra minha reputação", "Vossa Senhoria é um larápio". A mulher acusada revoltou-se ao ganhar o apelido de Maria Gasolina.

Na noite em que aconteceu o desastre, eu dormia e estava mergulhado em um sonho estilo paraíso latino. De chapéu panamá, na beira de uma piscina, bebendo uma piña colada, acendendo um Cohiba e abraçado pela Sofia Vergara e pela Shakira. Em um tablado próximo, um conjunto musical animava os pés de valsa com a estranha porque dançante melancolia de Mi Desengaño. O cantor, dono de um frondoso bigode tropical, esmerava-se neste trecho:

Es cierto se debe admitir
El mundo esta lleno de maldad


De repente, incas venusianos invadiram o cenário e dispararam seu armamento alienígena nos meus convidados. Os tiros soaram realistas demais. Espera aí. Eram reais. Despertei com uma sacudida violenta sob o lençol na cama. Uma fuzilaria desgraçada tendo como alvo o cafofo do nerd pança. A gangue dos hidrocarbonetos, os bandidos da octanagem. Um ataque drive-by. Esses ratos sempre se vingam. Se ele cochilava no sofá da sala, era adeus. Despachado para o limbo sideral. Enfim poeira cósmica. O Jeep Cherokee Sport preto de placa fria dos meliantes cantou pneu em fuga desembestada e sumiu nas trevas. Peneiraram de balas a fachada. Uma multidão de curiosos pisava as cápsulas deflagradas de Uzi, de pistola Ruger e SIG Sauer, de Tec-9. No quintal, o Rigel latia com ferocidade inaudita. Calma, gente, vou ligar para o celular dele, arrisquei. Do outro lado da linha, veio um barulho de show de rock progressivo e um Alô?. Jamais pensei que me sentiria aliviado ao escutar aquela voz irritante.

Parentes vieram recolher pertences dele. Nunca mais o vi. Dizem que se escafedeu às pressas para a Guiana Francesa; num helicóptero tipo AS350, o "esquilo"; teve que aturar na viagem o piloto amapaense que contava piadas sobre voo com excesso de peso.



* para mais informações sobre lançamento de foguetes em miniatura, vale a pena uma visita:
- Apogee Rockets
- Estes Rockets

sábado, 1 de setembro de 2012

Slan Agus Beannacht

Martin McGuinness era uma espécie de leprechaun rebelado. Um dos principais corações e mentes por trás do IRA, grupo que empreendia luta armada pela independência da Irlanda do Norte. Exército Republicano Irlandês: pensem nas jaquetas camufladas, nos rostos ocultos por passa-montanhas, na bandeira tricolor com a gravura do punho cerrado. Mais uma entidade saída do caldeirão de legítimos anseios por autonomia que degringolaram em excrescências como a FLN argelina e a OLP de Arafat. Pois foi lá na terra do Thin Lizzy que o jovem Martin e seu bando, em meio a pints de cerveja Murphy's, decidiram combater o domínio britânico, adotando como instrumentos a panfletagem, a pistola Beretta, a metranca AR-18, o explosivo plástico Semtex, o lança-granada antitanque RPG, o assalto a banco e o sequestro. Em 27 de agosto de 1979, o IRA mandou pelos ares o iate Shadow V. Entre as vítimas fatais do atentado a bomba estava Louis Mountbatten, 1º Conde Mountbatten da Birmânia, veterano da Marinha inglesa, figura atuante nos processos emancipatórios da Índia e do Paquistão, entusiasta do polo, bon vivant mulherengo e primo da rainha Elizabeth II. Em Belfast, no dia 27 de junho de 2012, um agora sessentão e engravatado Martin McGuinness, membro do Sinn Fein e vice-primeiro-ministro, teve um encontro com uma verdejante e octogenária rainha Elizabeth II. Os dois cumprimentaram-se com um protocolar aperto de mão. O político católico ex-terrorista, ao despedir-se da monarca anglicana ex-opressora, emitiu uma frase em gaélico, "Slan Agus Beannacht". Que, traduzindo para o idioma de Adele, vira "Goodbye and Godspeed". Rapidamente, especialistas no assunto arreganharam as comportas de suas eclusas de ideias prontas, escoando para a Sandra Annenberg e o Celso Freitas uma esperada torrente de: momento histórico e emocionante, marco nas negociações de paz, notícia foi destaque nas redes sociais. Uma bastante aguardada demonstração de forgive & forget, perdoar & esquecer? Pode ser. Do que me lembrei quando vi a cena foi um antigo comercial dos bonecos Playmobil.