quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

Esse delirio que por ahi vae

Esse delirio que por ahi vae Foi de 2 x 1 o placar da vitória da Inglaterra sobre o Brasil no amistoso de 6 de fevereiro de 2013 no estádio de Wembley. Significou a quebra de um tabu de 23 anos de freguesia no histórico de partidas entre o chá das cinco e a feijoada. As páginas dos heraldos da Fleet Street e as câmeras da BBC mostraram torcedores britânicos que explodiam num desvario festivo que me pareceu apenas um tantinho menor que a furiosa reação dos mouros ao filmeco A Inocência Dos Muçulmanos. Vi essas cenas de comemoração e me lembrei de uma crônica de Monteiro Lobato, o criativo autor monocelha e eugenista. O título do texto é O 22 Da "Marajó". Está na coletânea A Onda Verde (1921). Em português da época de Epitácio Pessoa.

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Esse delirio que por ahi vae pelo futebol tem seus fundamentos na própria natureza humana. O espectáculo da lucta sempre foi o maior encanto do homem; e o prazer da victoria, pessoal ou do partido, foi, é e será a ambrósia dos deuses manipulada na terra. Admiramos hoje os grande philosophos gregos, Platão, Sócrates, Aristóteles; seus coevos, porém, admiravam muito mais aos athletas que venciam no estádio. Milon de Crotona, campeão na arte de torcer pescoços a touros, só para nós tem menos importância que seu mestre Pythagoras. Para os gregos, para a massa popular grega, seria inconcebível a idéa de que o philosopho pudesse um dia offuscar a gloria do luctador.

Em França, antes da surra homérica que lhe deu Dempsey, o homem verdadeiramente popular era George Carpentier, mestre em sôccos de primeira classe; e se dessem nas massas um balanço sincero, veriam que elle sobrepujava em prestigio aos próprios chefes supremos vencedores da guerra.

Nos Estados Unidos ha sempre um campeão de box tão entranhado na idolatria do povo que está em suas mãos subverter o regimen politico.

Entre nós ha o exemplo recente de Friedenreich, um pé de boa pontaria pelo qual milhares de creaturas, sobretudo creanças, são capazes de sacrificar a vida.

E os delirios collectivos provocados pelo embate de dois campeões em campo? Impossivel assistir-se a espectáculo mais revelador da alma humana do que o jogo de futebol em que disputam a primazia paulistanos e italianos, em S. Paulo.

Não é mais esporte, é guerra. Não se batem duas equipes, mas dois povos, duas nações, duas raças inimigas. Durante todo o tempo da lucta, de quarenta a cincoenta mil pessoas deliram, em transe, extacticas, na ponta dos pés, coração aos pulos e nervos tensos como cordas de viola. Conforme corre o jogo, ha pausas de silencio absoluto na multidão suspensa, ou deflagrações violentissimas de enthusiasmo que só a palavra delirio classifica. E gente pacifica, bondosa, incapaz de sentimentos exaltados, sae fora de si, torna-se capaz de commetter os mais horrorosos desatinos.

A lucta de vinte e duas feras no campo, transforma em feras os cincoenta mil espectadores, possibilizando um esfaqueamento mutuo, num conflicto horrendo, caso um incidente qualquer funda em corisco as electricidades psychicas accumuladas em cada individuo.

O jogo de futebol teve a honra de despertar o nosso povo do marasmo de nervos em que vivia. Antes d'elle, só nas classes medias a lucta politica tinha o prestigio necessário para uma exaltaçãozinha periódica.

E isso porque de todos os esportes tentados no Brasil só o futebol conseguiu acclimar-se, como o café. Hoje, alastrado de norte a sul, transformou-se quasi em praga, conseguindo, só elle, interessar vivamente, exaltadamente, delirantemente o nosso povo.

No Estado de S. Paulo não ha recanto, villoca, fazenda, bairro onde se não veja num chão plaino e batido os dois rectângulos oppostos, assignaladores d'um ground. Pelas regiões novas, de virgindade só agora atacada pelos invasores, é commum topar-se de súbito, em plena matta, uma clareira aberta e limpa onde, nas horas de folga, os derrubadores de páo vêm bater bola.

Já assistimos a um match em certa fazenda. Tudo muito bem arrumado; os players uniformizados, de meias grossas e botinas ferradas, tal qual nos clubs das cidades. E falando em corners, goals, hands, half-times, a inglezia inteira dos termos technicos.

Ao nosso lado o fazendeiro explicava:

- Aquelle goal-keeper é carreiro; amanhã de madrugada está de pé no chão puxando lenha. O center-half é madeireiro; está-me lavrando umas perobas na roça velha. Os full-backs são tropeiros e os forwards, simples puxadores de enxada.

Era assombroso! Estávamos deante da maior revolução de costumes jamais operada em terras de Santa Cruz. E tudo por arte e obra de uma simples esphera de couro estufada de ar!...