terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Sévigné

"The tumult of the outer world is heard faintly." (do prefácio às cartas da madame de Sévigné)

Um colega meu, professor de Português, espiou trechos aqui do blog e me confessou, Escute, percebe-se que você tem qualquer coisa parecida com habilidade para capturar atenção e escolher palavras, mas há um problema: fala demais de vida ordinária, de trivialidades. Rotina do bairro ou do escritório, ida ao barbeiro, conversa com adolescentes oligofrênicas, memórias de infância ("clichê terrível", observou). Pelo menos você nos poupou de detalhes das suas experiências como mesário nas eleições, finalizou. Nessa parte, tive que concordar. Ele me recomendou exercícios como tentar um ensaio sobre a origem do hotel Waldorf Astoria, uma análise da árvore genealógica dos Plantagenets ou um resumo da ascensão de Harun al-Rashid.

Diante da acusação, refleti e concluí: hora de voltar à Sévigné. A francesa Marie de Rabutin-Chantal (1626-1696), marquesa de Sévigné, cuja correspondência há trezentos e tantos anos é modelo de estilo, de esprit. Contemporânea de cidadãos como o filósofo/matemático René Descartes, o dramaturgo Pierre Corneille e o mosqueteiro d'Artagnan. Amiga de figuras como a madame de La Fayette e o aforista La Rochefoucauld. Ela desejava manter contato com a filha, Françoise-Marguerite, que casou, tornou-se condessa de Grignan e foi morar longe dela. Esse seria o início do período mais famoso de sua prolífica escrita de missivas. Li a tradução para o inglês em um e-book formato .pdf. Download 100% legalizado, grande ferramenta esse Internet Archive.

E quais são os assuntos das mensagens da ilustre conterrânea de Asterix e de Édith Piaf? As inadequadas toilettes das convidadas de um rega-bofe em Paris, menções a livros (inclusive um com o curioso título de Well-Founded Prejudices Against The Calvinists), um cortesão pego com a boca na botija trapaceando em jogo de baralho, a exibição de um engolidor de fogo, a demonstração de um telescópio, o dialeto incompreensível de camponeses que se ofereceram para consertar sua carruagem, uma estação hidroterápica de Vichy, um cozinheiro que se matou com uma espada por não terminar um prato no horário marcado, um pitoresco asceta que era quase a atração turística de uma paróquia, geadas, fofocas matrimoniais, uma peça de teatro que foi sucesso, o espanto com o que ela chama de "resquícios de paganismo" nos ritos fúnebres da região de Provença.

A riqueza de expressão que ela alcançou quando queria "apenas" comunicar miudezas cotidianas e registrar impressões é de fato notável. Gosto de imaginar a Marie, ela reabastecendo no tinteiro o bico da pena de faisão, à noitinha, de pantufas e com uma camisola tipo a da Audrey Hepburn numa das cenas do começo de A Princesa E O Plebeu. Exalando um perfume de sândalo ou de alfazema e iluminada por uma vela no tampo da escrivaninha de mogno, ela rabisca outra de suas epístolas.

E tem ainda l'humour. Que vocação para o riso tinha ela, uma beleza de se ver:

"It requires the pen of a Molière to describe all she says upon the occasion; and it is highly amusing to see how artfully she manages me, and with what care she avoids speaking of my supposed rival before my face."

"Guilleragues said yesterday, that Pelisson abused the permission men have to be ugly."

"Mention was made of M. de Vitri, who is very ill, upon which she [madame Noblet] said to monsieur, 'Ah! sir, I saw him this morning, poor man! his face looked just like a stratagem.' What could she mean?"

"It is said that our mutineers have sued for pardon; I suppose they will obtain it, after a sufficient number have been hanged."

"We laughed till we cried with the story of the girl who sung the indecent song, for which she confessed aloud in the church. Nothing can be more novel and amusing. I think she was in the right; the confessor certainly wished to hear the song, for he was not satisfied with the girl's accusation of herself. I fancy I see him bursting with laughter the first at this adventure. We often send you ridiculous stories, but we can not surpass this."

"My dear child, your good lady, who swore she would not touch a card till the King of England had won a battle, will not probably play again for a long time."

Portanto, respondendo ao professor Vinícius, sujeito que muito estimo:

Abordar temas imponentes, tópicos relevantes, esmiuçar as questões cruciais do passado ou do presente? Não, obrigado. Vou ali com a mademoiselle dar um passeio bem, aham, mundano pela Champs-Élysées. Flanar enquanto entupo a goela com brioche e croissant. Assistir a um acordeonista de calçada tocar Alouette.