quarta-feira, 5 de dezembro de 2018

Considerações finais

Danse Macabre, de Mabel Dwight (1933)

Começamos e terminamos com uma Dança Macabra. O ciclo está completo. Hora das considerações finais.

A represa de Marib, localizada no Iêmen, é uma das barragens hidráulicas mais antigas que conhecemos. Construída por volta do século VIII a.C., essa façanha de engenharia realizada por um povo do passado longínquo é mais um valioso e magnífico testemunho pétreo dos poderes técnicos e criativos da mente humana.

Não acompanho muito o noticiário e, acredite quem quiser, foi só em 2017 - e por acaso - que eu soube que o Iêmen está em guerra civil desde 2015. Partes do país estão devastadas e os confrontos já clamaram a vida de mais de 50.000 pessoas. Uma das vítimas de bombardeios foi a represa de Marib.

All that remains of the Ma'rib Dam today are its sluice gates, which stand as a testament to the engineering capabilities of the ancient Sabaeans. In 2015, these ruins were damaged by airstrikes during the ongoing conflict in Yemen. (fonte: http://www.ancient-origins.net/ma-rib-dam-torn-apart-009396)

Peço que olhem com atenção:

Ma'rib dam before and after the destruction in 2015

É com essa contundente imagem da destruição de um patrimônio histórico da humanidade que encerro nossa longa jornada. Desnecessariamente pessimista, dirão alguns. É o que tem para hoje. A violência é triste, mas o pacifismo é uma ideia intrinsecamente equivocada (para não falar desonesta). Promessas de paz perpétua e de harmonia universal não passam de engodos diabólicos. Permaneçamos vigilantes, pois o flagelo da guerra não tem fim, nunca terá fim.

O velho chavão nos conta que a atroz experiência da Grande Guerra de 1914-1918 forjou um mundo muito diferente. Sociedades transformadas (transtornadas?). Pegando emprestada a famosa sentença de Tancredi Falconeri, personagem do belo romance O Leopardo: tudo mudou para que tudo ficasse na mesma. Novo Mundo = Velho Mundo. Arcaico e tecnológico, decadente e promissor, casto e lascivo, fragmentado e coeso, niilista e esperançoso. Cacofonia de opostos: sinfonia do velho novo mundo.




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domingo, 2 de dezembro de 2018

Pós-Guerra

Trechos de Pós-Guerra (2005), de Tony Judt.


Este livro narra a história da Europa desde a Segunda Guerra Mundial e, por conseguinte, inicia em 1945: Stunde nul, conforme diziam os alemães - a Hora Zero. Porém, a exemplo de tudo mais no século XX, tal história já está esboçada na guerra de trinta anos que teve início em 1914, quando o continente europeu embarcou rumo à catástrofe. A Primeira Guerra Mundial, para todos os que dela participaram, foi um massacre traumático - a metade dos homens da Sérvia, com idade entre 18 e 55 anos, sucumbiu na luta -, mas o conflito nada resolveu. A Alemanha (ao contrário do que se pensava à época) não foi esmagada na guerra, nem nos acordos firmados no pós-guerra: se o tivesse sido, seria difícil explicar a escalada que permitiu àquele país o domínio quase total da Europa apenas 25 anos depois. Na realidade, porque a Alemanha não pagou as dívidas que resultaram da Primeira Guerra Mundial, o custo da vitória para os Aliados foi mais alto do que o custo da derrota para a Alemanha, que assim ressurgiu, relativamente, mais forte do que em 1913. O "problema alemão", surgido na Europa na geração anterior com a ascensão da Prússia, continuava sem solução.

Os pequenos países que em 1918 emergiram do colapso dos velhos impérios eram pobres, instáveis, inseguros - e rancorosos em relação aos vizinhos. No período entre as duas grandes guerras, a Europa esteve repleta de nações "revisionistas": Rússia, Alemanha, Áustria, Hungria e Bulgária foram todas derrotadas na Grande Guerra e aguardavam a oportunidade de ajuste territorial. Depois de 1918, não foi restaurada a estabilidade internacional, não foi resgatado o equilíbrio entre as potências: houve apenas um interlúdio decorrente de exaustão. A violência da guerra não se abateu. Em vez disso, transformou-se em questões domésticas - em polêmicas nacionalistas, preconceito racial, luta de classes e guerra civil. A Europa nos anos 20 e, especialmente, nos anos 30 entrou numa zona de crepúsculo, entre a pós-vida de uma guerra e a perturbadora expectativa de outra.

Durante o período entre as duas guerras mundiais, conflitos internos e antagonismos entre Estados foram exacerbados - e, em certa medida, provocados - pelo concomitante colapso da economia europeia. Com efeito, a vida econômica na Europa recebeu naqueles anos um golpe triplo. A Primeira Guerra Mundial distorceu índices de emprego, destruiu o comércio e devastou regiões inteiras - além de levar nações à bancarrota. Muitos países - sobretudo na Europa Central - jamais se recuperaram dos efeitos dela. Os que conseguiram fazê-lo foram novamente derrubados pela Depressão dos anos 30, quando deflação, falências e iniciativas desesperadas para instituir tarifas protecionistas contra a concorrência internacional resultaram não apenas em níveis de desemprego jamais vistos e na destruição da capacidade industrial, mas também no fracasso do comércio internacional (entre 1929 e 1936 o comércio franco-germânico caiu 83%), tudo acompanhado de rivalidade e ressentimentos ferrenhos entre as nações.

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Seja lá o que se perdeu quando da implosão da civilização europeia - perda cujas implicações tinham sido há muito intuídas por Karl Kraus e Franz Kafka na Viena de Zweig -, jamais seria recapturado. No clássico filme de Jean Renoir, produzido em 1937, a Grande Ilusão da época era recorrer à guerra e aos mitos de honra, casta e classe a ela atinentes. Mas, já em 1940, para os europeus mais perspicazes, a maior das ilusões da Europa - agora desacreditada a ponto de ser considerada irresgatável - era a própria "civilização europeia".

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[...] lidar com uma herança onerosa. A Primeira Guerra Mundial destruiu a velha Europa; a Segunda Guerra Mundial criou as condições para uma nova Europa. Mas, depois de 1945, todo o continente viveu durante muitos anos sob o efeito sombrio de ditadores e guerras que pertenciam ao passado europeu recente. Essa é uma das experiências que os europeus da geração pós-guerra têm em comum e que os distingue dos norte-americanos, aos quais o século XX ensinou lições bem diferentes e muito mais otimistas.

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Quando acabou a Primeira Guerra Mundial, as fronteiras é que foram inventadas e ajustadas, enquanto, de modo geral, as pessoas ficaram onde estavam. Depois de 1945, aconteceu exatamente o oposto: com uma grande exceção, as fronteiras permaneceram basicamente intactas e as pessoas foram deslocadas. Entre os estrategistas políticos ocidentais observava-se o sentimento de que a Liga das Nações e as cláusulas relativas às minorias nos Tratados de Versalhes haviam fracassado, e que seria um erro qualquer tentativa de ressuscitá-las. Por isso, os estrategistas concordaram prontamente com as transferências de populações. Se as minorias sobreviventes na Europa Central e Oriental não podiam contar com uma proteção internacional eficaz, seria melhor que fossem despachadas para locais mais favoráveis. A expressão "limpeza étnica" ainda não existia, mas é certo que a respectiva realidade sim - e estava longe de suscitar grande desaprovação ou constrangimento.

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Especialmente na visão dos norte-americanos, a desintegração econômica observada no período entre as duas guerras teria sido a causa principal da crise europeia (e mundial). A menos que moedas fossem conversíveis e nações pudessem se beneficiar mutuamente do incremento do comércio, nada poderia impedir a volta aos dias terríveis de setembro de 1931, quando ruiu o sistema monetário que sucedeu à Primeira Guerra Mundial. Liderados por Maynard Keynes - cujas ideias nortearam o encontro realizado em Bretton Woods, no estado de New Hampshire, em julho de 1944 -, economistas e estadistas buscaram uma alternativa a um sistema financeiro internacional que remontava ao período anterior à guerra: algo menos rígido e deflacionário do que o padrão-ouro, mas que fosse mais confiável e garantido do que o regime de flutuação monetária cambial. Fosse qual fosse, o novo regime, argumentava Keynes, precisaria de algo semelhante a um banco internacional, que funcionasse nos moldes de um Banco Central doméstico e que administrasse o sistema, mantendo os índices cambiais e, ao mesmo tempo, incentivando e facilitando transações em moedas estrangeiras.

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A ideia de uma União Europeia, de uma forma ou de outra, não era nova. O século XIX havia experimentado na Europa Central uma variedade de uniões alfandegárias, com diferentes graus de sucesso, e mesmo antes da Primeira Guerra Mundial, ocasionalmente, falava-se com idealismo a respeito da noção de que o futuro da Europa estava na convergência das diversas partes. A própria Primeira Guerra Mundial, longe de dissipar essas visões otimistas, parece ter-lhes conferido mais vigor: conforme Aristide Briand - estadista francês e autor entusiasmado de pactos e projetos europeus - insistia, chegara o momento de superar rivalidades passadas e pensar e falar como europeu, sentir-se europeu. Em 1924, o economista francês Charles Gide uniu-se a outros signatários por toda a Europa para o lançamento de um Comitê Internacional em prol da União Alfandegária Europeia. Três anos mais tarde, um jovem ministro do Ministério das Relações Exteriores britânico se diria "perplexo" diante da extensão do interesse continental na ideia "pan-europeia".

E o que é até prosaico, a Grande Guerra levara franceses e alemães, curiosamente, a uma melhor apreciação de sua dependência mútua. Quando findou o transtorno do pós-guerra e Paris abandonou os esforços inúteis para obter à força indenizações junto à Alemanha, foi assinado o chamado Pacto do Aço, em setembro de 1926, entre França, Alemanha, Luxemburgo, Bélgica e a região da Saarlândia (então autônoma), visando à regulamentação da produção de aço e à prevenção de estoques excedentes. Embora, no ano seguinte, Tchecoslováquia, Áustria e Hungria tenham assinado o pacto, o esquema jamais passou de um cartel típico; mas o primeiro-ministro alemão, Gustav Stresemann, com certeza, viu no pacto o modelo embrionário de futuros acordos transnacionais. Ele não era o único que pensava assim. A exemplo de outros projetos ambiciosos da década de 1920, o Pacto do Aço mal conseguiu sobreviver à crise de 1929 e à depressão subsequente. No entanto, o acordo reconhecia algo que em 1919 já se tornava evidente para os magnatas do ferro: que a indústria do aço francesa, depois que teve a sua dimensão duplicada em consequência da reintegração da Alsácia-Lorena, ficaria totalmente dependente do coque e do carvão originários da Alemanha e, portanto, precisaria encontrar bases para uma colaboração duradoura. A situação era igualmente óbvia para os alemães, e quando, em 1940, os nazistas ocuparam a França e chegaram a um acordo com Pétain sobre um sistema de pagamentos e entregas que se traduzia na aplicação de recursos franceses ao esforço de guerra alemão, muita gente, de ambos os lados, viu nessa recente "colaboração" franco-germânica o embrião de uma nova ordem econômica "europeia".

Assim, Pierre Pucheu, veterano gestor da administração de Vichy, que mais tarde foi executado pelos Franceses Livres, contemplava uma ordem europeia no pós-guerra em que barreiras alfandegárias fossem eliminadas e uma economia europeia única que abrangesse todo o continente, com uma só moeda. A visão de Pucheu - compartilhada por Albert Speer e muitos outros - representava uma espécie de atualização do Sistema Continental de Napoleão sob a égide de Hitler, e agradava a uma geração mais jovem de burocratas e profissionais continentais que na década de 1930 tinham sofrido decepções decorrentes de formulação de política econômica.

O que tornava tais projetos especialmente tentadores era o fato de serem, tipicamente, apresentados em termos do interesse comum, pan-europeu, e não como projeções egoístas de planos nacionais estanques. Eram projetos "europeus", e não alemães ou franceses, e eram muito admirados durante a guerra por aqueles que se esforçavam para crer que algo de bom poderia advir da ocupação nazista.

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Na Primeira Guerra, uma geração de jovens foi morta. Depois da Segunda Guerra, porém, quem desapareceu de cena foi um grupo mais velho, desacreditado. Em seu lugar surgiram escritores, artistas, jornalistas e ativistas políticos jovens demais para terem vivenciado a guerra de 1914 a 1918, mas ávidos por recuperar os anos perdidos na guerra seguinte. A educação política desses jovens transcorrera no tempo das Frentes Populares e dos movimentos antifascistas; e quando eles alcançaram reconhecimento público e status influente, não raro em resultado de atividades desempenhadas durante a guerra, ainda eram extremamente jovens, considerando os padrões europeus.

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Às vésperas da Segunda Guerra Mundial, as consequências da perda de uma geração de jovens na Primeira Guerra Mundial, somadas à Depressão econômica, às guerras civis e à incerteza política da década de 1930, tinham reduzido a taxa de natalidade em determinadas regiões da Europa Ocidental a índices historicamente baixos.

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Finalmente, embora a União Europeia não disponha de meios nem mecanismos para impedir que os países membros cheguem às vias de fato, a sua própria existência torna a ideia um tanto absurda. A lição de que uma guerra era preço por demais elevado a ser pago para se obter vantagem política ou territorial já havia sido aprendida pelos vencedores depois da Primeira Guerra Mundial, embora tenha sido necessária uma segunda guerra para que a mesma lição fosse assimilada pelo lado perdedor. Mas uma terceira guerra na Europa poderia ter acontecido, ao menos nos primeiros anos do pós-guerra, ainda que um terceiro conflito fosse catastrófico e talvez terminal.


Mais:
http://www.youtube.com/watch?v=LtPIkWhTU1w
http://www.youtube.com/watch?v=RN7ftyZigYs
http://en.wikipedia.org/wiki/The_Second_Coming_(poem)
http://docs.google.com/file/d/1S3CwNdd-Nk3mkV1E7J-SXkgAFXZ0X2HJ
http://archive.org/details/afterwar00repigoog
[links]