domingo, 25 de novembro de 2018

Ordem mundial

Trechos de Ordem Mundial (2014), de Henry Kissinger.


Por volta do começo do século XX, os planejadores militares - partindo do que acreditavam ser as lições oferecidas pela mecanização e pelos novos métodos de mobilização - começaram a ter como objetivo a vitória total numa guerra generalizada. Um sistema de ferrovias permitia o rápido deslocamento das forças militares. Com ambos os lados contando com amplas forças de reserva, a velocidade de mobilização tornou-se um fator essencial. A estratégia alemã, o famoso Plano Schlieffen, baseava-se na estimativa de que a Alemanha precisava derrotar um de seus vizinhos antes que este pudesse se combinar com os outros para atacá-la a partir do leste e do oeste. Preempção, portanto, fazia parte do planejamento militar. Os vizinhos da Alemanha encontravam-se sob um imperativo oposto; precisavam acelerar sua mobilização e ação coordenadas para reduzir o impacto de um possível ataque preventivo alemão. Cronogramas de mobilização dominavam a diplomacia; se líderes políticos queriam controlar considerações militares, as coisas teriam de ter se passado no sentido inverso.

A diplomacia, que ainda funcionava pelos - vagarosos - métodos tradicionais, perdeu o contato com a nova tecnologia e com o novo estilo de guerra que esta produzia.

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A história, contudo, cedo ou tarde acaba por punir a frivolidade estratégica. A Primeira Guerra Mundial foi deflagrada porque os líderes políticos perderam o controle de suas próprias táticas. [...] como era o alto verão, os estadistas estavam de férias. Contudo, uma vez que o ultimato austríaco foi apresentado em julho de 1914, seu prazo impunha uma grande urgência à decisão a ser tomada, e em menos de duas semanas, a Europa rumou para uma guerra da qual nunca se recuperou.

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Uma guerra cujas consequências não tinham sido avaliadas desceu sobre a civilização ocidental por conta da questão essencialmente paroquial do assassinato do príncipe austríaco coroado por um nacionalista sérvio, desfechando sobre a Europa um golpe que anulou um século de paz e ordem.

Nos quarenta anos que se seguiram ao acordo de Viena, a ordem europeia amorteceu conflitos. Nos quarenta anos após a unificação da Alemanha, o sistema agravou todas as disputas. Nenhum dos líderes previu a dimensão da catástrofe que seu sistema, baseado em conflitos rotineiros e apoiado no moderno maquinário militar, ameaçava deflagrar cedo ou tarde. E todos eles contribuíram para isso, sem perceber que estavam desmantelando a ordem internacional: a França por seu implacável compromisso de reconquistar a Alsácia-Lorena, o que exigia uma guerra; a Áustria por sua ambivalência entre suas responsabilidades nacionais e centro-europeias; a Alemanha por tentar superar o receio de se ver cercada enfrentando França e Rússia, ao mesmo tempo que promovia uma expansão de suas forças navais. A Alemanha aparentava, assim, estar cega às lições da história: a Grã-Bretanha certamente iria se opor à maior potência terrestre no continente se tentasse ao mesmo tempo ameaçar a supremacia naval britânica. A Rússia, graças a seus constantes movimentos em várias direções, ameaçava simultaneamente a Áustria e os remanescentes do Império Otomano. E a Grã-Bretanha, pela ambiguidade que obscurecia o grau de seu crescente comprometimento com o lado dos aliados, trazia o pior dos dois mundos. Seu apoio tornava a França e a Rússia inflexíveis; sua postura aparentemente distante confundia alguns líderes alemães, levando-os a acreditar que a Grã-Bretanha poderia permanecer neutra numa guerra europeia.

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Chocados com a carnificina, os estadistas da Europa tentaram forjar um período de pós-guerra que fosse o mais diferente possível da crise que acreditavam ter produzido a Grande Guerra, como era então chamada. Apagaram das suas mentes quase todas as lições das tentativas anteriores de construir uma ordem internacional, especialmente a do Congresso de Viena. Não foi uma decisão feliz. O Tratado de Versalhes de 1919 rejeitou a volta da Alemanha à ordem europeia, enquanto o Congresso de Viena incluía a aceitação da França derrotada. O novo governo revolucionário marxista-leninista da União Soviética declarou que não se pautaria pelos conceitos e limites de uma ordem internacional cuja derrubada ele profetizava. Agindo na margem da diplomacia europeia, a União Soviética só veio a ser reconhecida pelas potências ocidentais lentamente e com relutância. Dos cinco Estados que compunham a balança de poder europeia, o Império Austríaco tinha desaparecido; Rússia e Alemanha foram excluídas, ou tinham excluído a si mesmas; e a Grã-Bretanha estava começando a retomar seu envolvimento nos assuntos europeus, mais para resistir a uma real ameaça ao equilíbrio de poder do que para atuar preventivamente contra uma ameaça em potencial.

A diplomacia tradicional havia proporcionado um século de paz à Europa por meio de uma ordem internacional que soube equilibrar de forma sutil os elementos de poder e legitimidade. No último quarto de século, o equilíbrio havia se deslocado para repousar sobre o elemento do poder. Aqueles que redigiram o Tratado de Versalhes deram uma guinada de volta ao componente da legitimidade ao criar uma ordem internacional que só podia ser mantida, se é que isso era possível, por apelos aos princípios compartilhados - já que os elementos de poder foram ignorados ou mal administrados. O cordão formado pelos Estados originados pelo princípio da autodeterminação localizados entre a Alemanha e a União Soviética provou ser frágil demais para resistir a qualquer dos dois países, suscitando um conluio entre eles. A Grã-Bretanha retraía-se cada vez mais. Os Estados Unidos, tendo entrado na guerra de forma decisiva em 1917, a despeito de uma relutância inicial, haviam se desiludido com o seu desfecho, tendo se recolhido num relativo isolamento. A responsabilidade por proporcionar os elementos de poder, portanto, recaiu em grande medida sobre a França, que estava exaurida pela guerra, tendo sido drenada de seus recursos humanos e de qualquer vigor psicológico, e com uma consciência cada vez maior de que a disparidade de força entre ela e a Alemanha ameaçava se tornar congênita.

Poucas vezes um documento diplomático esteve tão longe de cumprir seu objetivo como aconteceu com o Tratado de Versalhes. Punitivo demais para inspirar conciliação, leniente demais para impedir que a Alemanha se recuperasse, o Tratado de Versalhes condenou as democracias esgotadas a uma constante vigilância contra uma Alemanha irreconciliável e revanchista, assim como uma União Soviética revolucionária.

Com a Alemanha nem comprometida moralmente com o acordo de Versalhes, nem confrontada com um claro equilíbrio de forças que evitasse seus desafios, a ordem de Versalhes praticamente era um convite ao revisionismo alemão. A Alemanha poderia ser impedida de afirmar sua superioridade estratégica potencial apenas com a ajuda de cláusulas discriminatórias, que desafiavam as convicções morais dos Estados Unidos e, numa medida crescente, da Grã-Bretanha. E uma vez que a Alemanha começasse a desafiar o acordo, seus termos só poderiam ser conservados por meio de sua implacável implementação pelas armas francesas ou pelo envolvimento permanente dos norte-americanos nos assuntos da Europa. Nenhuma das duas hipóteses era viável.

A França havia trabalhado durante três séculos para manter a Europa Central em primeiro lugar dividida e, em seguida, contida - primeiramente, por ela mesma, depois em aliança com a Rússia. Depois de Versalhes, contudo, ela perdeu essa opção. Os recursos da França tinham sido drenados demais pela guerra para que pudesse desempenhar o papel de policial da Europa, e a Europa Central e Oriental foram tomadas por correntes políticas que estavam além da capacidade de manipulação da França. Deixada a sós para encontrar um equilíbrio com a Alemanha unificada, fez esforços esporádicos para preservar um equilíbrio pela força, mas ficou desmoralizada quando seu pesadelo histórico reapareceu com o advento de Hitler.

As grandes potências procuraram institucionalizar sua repulsa à guerra numa nova forma de ordem internacional pacífica. Foi apresentada uma fórmula vaga de desarmamento internacional, ainda que sua aplicação prática fosse postergada para as negociações posteriores. A Liga das Nações e uma série de tratados de arbitragem se propuseram a substituir as disputas de poder por mecanismos legais para a resolução de disputas. No entanto, ainda que a filiação a essas novas estruturas fosse quase universal e todas as formas de violação da paz fossem banidas, nenhum país se dispunha a garantir que seus termos fossem respeitados. Potências que nutriam ressentimentos ou objetivos expansionistas - a Alemanha, o Japão imperial, a Itália de Mussolini - logo aprenderam que a violação dos termos de filiação à Liga das Nações ou a simples saída da organização não implicava qualquer consequência séria. Duas ordens do pós-guerra, contraditórias e sobrepostas, estavam por nascer: o mundo das regras e do direito internacional, habitado basicamente pelas democracias ocidentais em sua interação umas com as outras; e uma zona, livre de restrições, apropriada pelas potências que haviam se retirado desse sistema de limites para desfrutar de maior liberdade de ação. Avultando ao longe, para além dos dois mundos e manobrando de modo oportunista entre eles, estava a União Soviética - com seu próprio conceito revolucionário de ordem mundial ameaçando submergir a todos.

No fim, a ordem de Versalhes não alcançou nem a legitimidade, nem o equilíbrio. Sua fragilidade quase patética ficou demonstrada pelo Pacto de Locarno de 1925, no qual a Alemanha "aceitou" as fronteiras ocidentais e a desmilitarização da Renânia com as quais já tinha concordado em Versalhes, mas recusou explicitamente estender as mesmas garantias às fronteiras com a Polônia e a Tchecoslováquia - expressando de forma clara suas ambições e seus ressentimentos. De modo espantoso, a França assinou o acordo de Locarno ainda que este deixasse formalmente expostos a um eventual revanchismo alemão os aliados da França na Europa Oriental - um indício do que viria a fazer uma década mais tarde diante de um desafio efetivo.

Nos anos 1920, a Alemanha da República de Weimar lançou um apelo às consciências ocidentais ao contrastar as incoerências e caráter punitivo do acordo de Versalhes com os princípios mais idealistas da ordem internacional defendidos pela Liga das Nações. Hitler, que chegou ao poder em 1933 pelo voto popular concedido por um povo alemão ressentido, abandonou todo e qualquer resquício de moderação. Violando os termos da paz de Versalhes, ele rearmou o país e revogou o acordo de Locarno ao reocupar a Renânia. Quando seus desafios não encontraram resposta à altura, Hitler começou a desmantelar os Estados da Europa Central e Oriental, um a um: primeiro a Áustria, seguida da Tchecoslováquia e, finalmente, a Polônia.

A natureza desses desafios não era particular aos anos 1930. Em toda era a humanidade produz indivíduos demoníacos e ideias sedutoras de repressão. A tarefa dos estadistas é impedir que eles cheguem ao poder e manter uma ordem internacional capaz de detê-los caso consigam chegar lá. A combinação tóxica dos anos do entreguerras, combinando pacifismo frívolo, desequilíbrio geopolítico e desunião entre aliados permitia que essas forças atuassem livremente.

A Europa tinha construído uma ordem internacional com base na experiência de trezentos anos de conflitos. Jogou-a fora porque seus líderes não entenderam as consequências quando entraram na Primeira Guerra Mundial - e apesar de compreenderem efetivamente as consequências de outra conflagração, eles recuaram diante das implicações do que significaria agir com base nessa visão. O colapso da ordem internacional foi essencialmente uma história de abdicação, quiçá suicídio. Tendo abandonado os princípios do acordo vestfaliano e relutado em exercer a força exigida para fazer valer sua anunciada alternativa moral, a Europa era agora consumida por outra guerra que, ao seu fim, trouxe com ela mais uma vez a necessidade de reformar a ordem europeia.


Mais:
http://www.youtube.com/watch?v=JrlvD7RH8XM
http://archive.org/details/LeBonGustaveTheWorldUnbalanced
http://drive.google.com/file/d/1HDQQMUUqQeyX5_PrF5NvEmvuhQb2ByYe