quarta-feira, 28 de novembro de 2018

Epílogo

Trechos de Os Três Imperadores (2009), de Miranda Carter.


Epílogo

O mundo do pós-guerra era muito diferente do mundo do pré-guerra, nada condescendente com as velhas hierarquias e os caprichos dos reis; sob muitos aspectos, um mundo feio. A Europa não fora "purificada" e o pior nem de longe ficara para trás. O violento desmoronamento da monarquia na Rússia e na Alemanha deixara buracos que seriam preenchidos pelo extremismo e por mais violência. A Rússia já estava mergulhada numa nova guerra civil que duraria cinco anos, adquirindo uma escala ainda mais pavorosa que a antecedente. Ela deixaria algo entre 8 e 10 milhões de vítimas de massacres, pogroms, doenças e fome, em circunstâncias e quantidades que só pareciam demonstrar que a crueldade e a destrutividade humanas alcançavam seu nível mais terrível. A Alemanha passava por uma cruel e efêmera revolução comunista. Sua brutal repressão veio a ser o difícil berço em que a democracia alemã nasceu, com a República de Weimar, em janeiro de 1919, em circunstâncias que serviam apenas para agravar as pavorosas fraturas da sociedade alemã. A esquerda radical sentiu-se traída pelos social-democratas, agora no governo. A extrema direita, os nacionalistas e o exército continuaram a sonhar com o passado autoritário, cunhando o poderoso mas falso mito de que não eram eles os responsáveis pela queda da Alemanha, mas os revolucionários e amotinados que haviam apunhalado o país pelas costas exatamente no momento em que ele estava vencendo. Esse mito contribuiria para levar a Alemanha a uma outra guerra mundial.

Logo depois do armistício levantaram-se vozes exigindo que o antigo cáiser fosse punido por seu envolvimento na guerra. Achava-se que alguém devia responder pela carnificina. A 7 de dezembro, David Lloyd George, disputando uma eleição geral em Londres, declarou que o antigo cáiser devia ser enforcado e que pretendia levá-lo a julgamento em Westminster Hall. Imediatamente a imprensa britânica abria manchetes: "Enforquem o cáiser!", "Que a Alemanha pague!". Em fevereiro de 1919, os Aliados tentaram pressionar os holandeses a entregá-lo. O Tratado de Versalhes exigia a extradição de mais de mil criminosos de guerra alemães para julgamento, entre eles Guilherme II.

Guilherme II estava convencido de que seria executado se fosse julgado no exterior. Preocupava-o a possibilidade de ser sequestrado e conduzido a Haia, e ele já pensava em providenciar uma guarda pessoal. Ele sabia que sua presença não era do agrado da população na Holanda. Houvera algumas tentativas de botar as mãos nele, nenhuma delas com muita convicção. Com uma incompetência típica do estilo opereta, seu entourage discutia planos para disfarçá-lo e mandá-lo para um esconderijo. Guilherme II recusou-se a tirar o bigode, embora dissesse que poderia voltar as pontas para baixo, e assinalou que as pessoas o reconheceriam pelo braço atrofiado - numa das raras oportunidades em que mencionou o assunto diretamente. Resolveu então deixar crescer a barba e ficar de cama durante seis semanas, usando uma atadura na cabeça, na esperança de que os holandeses sentissem pena dele.

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O entourage do antigo cáiser estudou a possibilidade de pedir a Jorge V que protestasse contra a extradição de Guilherme II. O rei ficou indignado com o fato de o primo ser tratado como um criminoso de guerra, tendo submetido Lloyd George a uma "violenta arenga" a esse respeito. Mas não se dispunha a intervir em favor de Guilherme II. Nos quatro anos da guerra, ele perdera toda simpatia pelo primo. Quando seu filho Bertie encontrou Vitória, a filha de Guilherme II, semanas depois do armistício, ouviu dela que esperava "que voltemos a ser amigos". Bertie respondeu que não achava possível. Jorge V concordou: "Quanto mais cedo ela se convencer do real sentimento de amargura que existe entre nós em relação a seu país, melhor." Até o fim da vida, ele se recusou a qualquer contato com Guilherme II.

O governo holandês rechaçou toda e qualquer tentativa de extraditar o antigo cáiser; havia na Holanda leis de proteção a estrangeiros que buscassem refúgio no país por motivos políticos. Depois de Versalhes, além disso, as exigências de punição a Guilherme II jamais seriam levadas adiante com real energia, pelo menos da parte de Lloyd George. Ele as considerava mera retórica para aplacar a indignação do público interno, e esperava que servissem para desviar as críticas do novo governo alemão.

Quando o presidente americano, Woodrow Wilson, foi a Londres em dezembro de 1918, Jorge V imediatamente antipatizou com ele. Wilson, ainda mais desajeitado e tímido que Jorge V, tornara-se, com sua conversa de Estados livres, o porta-estandarte do republicanismo e da independência. O rei também achava que o presidente era arrogante, que exagerava quanto à responsabilidade dos Estados Unidos na vitória e não reconhecia os sacrifícios feitos pelas tropas britânicas. É possível que, em suas conversas, sentisse que a iniciativa nas questões mundiais passava da Grã-Bretanha para os Estados Unidos, discretamente, mas sem retorno. Quando sugeriu que Wilson mandasse suas tropas para a Rússia, para "proteger o país do bolchevismo", o presidente disse-lhe que o exército americano viera para a Europa com um único objetivo. "Depois disso, nunca tive o sujeito em muito alta conta. (...) Não o suportava, um professor acadêmico e totalmente frio - um homem detestável."

Pelos padrões russos e alemães, a Grã-Bretanha estava calma e estável. A monarquia mantivera-se intacta. A guerra na verdade aumentou o tamanho do império britânico. Como seus exércitos controlavam o Oriente Médio, ela tornou-se a potência dominante na região. Na Conferência de Versalhes, abiscoitou as antigas colônias alemãs na África. E como a guerra fora combatida com tropas imperiais - soldados canadenses, dos polos, sul-africanos e indianos haviam participado -, ficava parecendo uma vitória imperial, um triunfo que tornava o império mais coeso que nunca.

A sensação de euforia pelo fim da guerra logo deu lugar a um sentimento de decepção e frustração: toda uma geração de jovens havia morrido e não se divisava no horizonte uma perspectiva paradisíaca. Havia indignação com o baixo valor das pensões de guerra, a escassez de habitações, a inflação alta. Pouco depois da guerra, Jorge foi ao Hyde Park com seu filho e herdeiro, David, príncipe de Gales, passar em revista um desfile de 15 mil soldados mutilados na guerra. Como pôde constatar David à medida que o pai inspecionava a tropa, havia algo errado, "uma sombria indiferença" em todos aqueles homens. De repente, surgiram estandartes. Alguém gritou: "Onde está a terra dos heróis?" Um grupo de soldados saiu da formação e correu na direção de Jorge. Ele foi isolado do entourage e já estava a ponto de ser jogado no chão. Verificou-se então que os homens queriam apenas tocar sua mão. Mas o susto foi grande.

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A guerra assinalou o ponto alto das aquisições territoriais britânicas e também o início do fim do império. Na Irlanda, o governo britânico envolveu-se numa guerra entre janeiro de 1919 e 1920, finalmente consentindo com a independência irlandesa, de má vontade, em 1922. A Conferência de Versalhes confirmou o direito dos domínios (as colônias brancas) de se constituírem em nações autônomas no interior da Comunidade Britânica, direito que julgavam ter conquistado lutando. Nunca mais um rei britânico poderia declarar guerra em seu nome. Os 800 mil soldados indianos (dos quais 60 mil morreram) que haviam combatido na guerra encorajaram o movimento independentista do país a sustentar que a Índia também havia conquistado seu direito à autonomia, incitando-o a dar início a uma campanha de desobediência. A reação do governo colonial britânico - impondo em 1918 um regime ditatorial digno da Rússia tsarista, com direito a censura de imprensa, detenção sem mandado, prisão sem julgamento, lei marcial e um terrível e perfeitamente evitável massacre de 379 civis em Amritsar, em abril de 1919 - serviu apenas para fortalecer essa convicção, causando na Grã-Bretanha um sentimento tão forte de vergonha que acabou lentamente conduzindo a Índia ao caminho da independência.

Quando a irmã de Nicolau, Xênia, e sua mãe, Maria, fugiram da Crimeia num barco cheio de parentes dos Romanov, em 1919, Jorge V ofereceu asilo às mulheres, sendo os homens informados de que "sua presença poderia ser atribuída à influência do rei".

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Guilherme II passou o resto da vida na Holanda. Transferiu-se em 1920 para Haus Doorn, modesto solar do século XVII, comprado com o produto da venda de dois iates. Ali viveu por 23 anos com uma pequena corte de 46 pessoas, entre elas 26 criados.

[...] Como símbolo do que havia perdido, ele abandonou os uniformes militares que trajava desde os 18 anos e adotou trajes civis: ternos de sarja azul, capas de chuva, um pequeno chapéu de caça e um alfinete de gravata com uma miniatura da rainha Vitória. Em setembro de 1920, o filho menor de Dona e Guilherme II, o favorito dela, Joachim, mergulhado em depressão, matou-se com um tiro. Era viciado em jogo e havia sido abandonado pela mulher. Arrasada, Dona morreria sete meses depois, em abril de 1921. Guilherme II recebeu 10 mil mensagens de condolências, o que talvez se devesse antes ao respeito com que Dona era tratada na Alemanha do que a alguma verdadeira afeição por ele. Não chegou qualquer mensagem de Jorge V, o que magoou Guilherme II particularmente.

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Guilherme II mostrava-se de convívio muito difícil. Indignado com a injustiça do destino e as "mentiras de Versalhes", estava sempre se justificando, reescrevendo o passado, culpando todo mundo pela queda da Alemanha, o fim dos Hohenzollern e os fracassos do seu reinado e esperando que o povo alemão - pelo qual só manifestava desprezo - caísse em si para afinal "me implorar que volte para salvá-lo". [...] Nenhum dos filhos quis compartilhar o exílio com ele, e, com uma única exceção, retornaram à Alemanha.

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A guerra mudou Jorge V de maneira definitiva. [...] Mais que nunca, refugiava-se no passado e no familiar. Continuava vestindo-se à moda de 1900; na corte, insistia em que todos trajassem os casacos, jaquetas e chapéus que haviam sido de rigueur na época do pai.

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Foi Jorge V que estabeleceu a monarquia britânica como a instituição doméstica, decorativa, cerimonial e algo impassível que é hoje.

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Certas coisas ele não fazia. O Partido Trabalhista queria restabelecer relações com a União Soviética. Jorge V declarou que não apertaria a mão dos "assassinos dos seus parentes".

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Guilherme II, enquanto isso, flertava com os nazistas. [...] Ele gostava de imaginar que os nazistas poderiam patrocinar seu retorno, e quatro de seus filhos se envolveram com o partido no início da década de 1930.

[...] Hitler, que não tinha a menor intenção de restaurar a monarquia, acusava Guilherme II de "pró-judeu".

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Guilherme II aproveitou a oportunidade [morte de Jorge V em 1936] para entrar em contato mais uma vez com a família inglesa. Escreveu a Mary e mandou o neto Fritzi ao funeral. Apesar de tudo, ele não conseguira desvencilhar-se da atração por tudo que fosse inglês. Continuou lendo jornais ingleses, bebia chá inglês, dava boas risadas com P. G. Wodehouse e salpicava a conversa com expressões como "ripping", "topping" e "damned good fellow". A rainha Mary ainda nutria o que um cortesão chamava de "um fraco" por Guilherme II e sentia pena dele. Deu a Fritzi uma caixa de ouro da escrivaninha de Jorge V, como lembrança destinada a Guilherme II. "Profundamente comovido com a afetuosa lembrança que a levou a me enviar este presente como recordação", escreveu-lhe o ex-cáiser, assinando "seu dedicado primo".

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À medida que os alemães avançavam sobre a Europa [em 1939], começou a parecer a Guilherme II que velhas contas afinal eram gratificantemente acertadas. Quando eles marcharam sobre Paris, ele enviou um telegrama de congratulações a Hitler - o que causaria depois da guerra o confisco de Haus Doorn. Guilherme II morreu de ataque do coração a 4 de junho de 1941, aos 81 anos, a mesma idade que a avó, orgulhoso de que "seus" generais tivessem conquistado metade da Europa. Ao mesmo tempo, decidido a negar a Hitler uma oportunidade de propaganda, deixara instruções para que seu corpo não fosse levado a Berlim. Foi enterrado em Doorn, sem suásticas.

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No início da década de 1990, os restos de Nicolau e os de sua família foram desenterrados num bosque perto de Ecaterimburgo, sendo suas identidades confirmadas por testes de DNA. Em 1998, os corpos foram novamente enterrados, na igreja de Pedro e Paulo, em São Petersburgo. No local onde morreram, em Ecaterimburgo, existe hoje uma grande igreja branca e dourada com cúpula em forma de cebola. Em 2000, a Igreja Ortodoxa russa, estimulada por uma grande onda de patriotismo e o desejo de apagar 72 anos de domínio soviético, canonizou o último tsar e sua família.


Mais:
http://www.youtube.com/watch?v=3JyC6qw2D_s
http://www.youtube.com/watch?v=FpEEwZBcmJg
http://en.wikipedia.org/wiki/Remembrance_poppy
http://docs.google.com/file/d/1XwaIB7-SegEfMiBL5CUkGIDzVEwMvMdd