quarta-feira, 21 de novembro de 2018

As consequências econômicas da paz

Trechos de As Consequências Econômicas Da Paz (1919), de John Maynard Keynes.


[...] os nossos representantes na conferência de Paris cometeram dois grandes erros contra os nossos interesses. Ao exigir o impossível, desprezaram a substância em favor de uma sombra, e terminarão por perder tudo. Concentrando-se excessivamente nos temas políticos, e na busca de uma segurança ilusória, deixaram de levar em conta a unidade econômica da Europa - segurança ilusória - porque o seu fator menos importante é a ocupação territorial extensa, e também porque as circunstâncias políticas do momento serão em grande parte irrelevantes para os problemas de uma década mais tarde.

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Com a vitória triunfante na guerra, a posição política e moral da França deixou de ser contestada, mas as suas perspectivas financeiras e econômicas eram muito ruins. Por isso uma estratégia prudente deveria ter procurado garanti-las na paz. Não há dúvida de que os interesses da França exigiam acima de tudo que ela obtivesse uma prioridade razoável no acesso às somas que a Alemanha pudesse pagar; que as suas dívidas excessivamente pesadas para com os aliados fossem reordenadas.

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Não posso ser acusado de orientar mal minha simpatia, porque acrescento também recomendações no sentido de sermos leais para com um inimigo humilhado, e de buscarmos a recuperação e a saúde da Europa como um todo.

Contudo, esses interesses fundamentais da França foram todos traídos por aqueles com quem o Senhor Clemenceau se cercou. Eles degradaram as reivindicações morais das áreas devastadas, exagerando indecentemente a sua magnitude. Cederam a prioridade da França nessas reivindicações, em troca de um acordo que iria aumentar a conta global a ser paga pela Alemanha, acima de qualquer possibilidade de cumprimento dessa obrigação (fato que sabem muito bem, o que quer que digam em público), incluindo uma reivindicação de pensões e indenizações contrária aos nossos compromissos; colocaram assim sobre os ombros do inimigo um ônus impossível, sem outra consequência a não ser reduzir a proporção devida à França de cada prestação paga pela Alemanha, sem aumentar a soma total a ser desembolsada.

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Estaria a França em segurança devido às sentinelas postados no Reno se suas finanças estivessem em desordem e ruína, se estivesse isolada espiritualmente dos seus amigos, se a miséria, o fanatismo e o derramamento de sangue prevalecessem do rio Reno para o Oriente, através de dois continentes?

Não se pense que estou imputando à França a responsabilidade pelo Tratado desastroso - responsabilidade que com efeito deve ser compartilhada por todos os seus signatários. É justo observar que a Inglaterra não tardou a garantir egoisticamente o que supunha fossem seus interesses, e a ela cabe principalmente a culpa pela forma adotada para o capítulo sobre reparações. A Inglaterra obteve colônias, navios e uma parte das reparações maior do que a que lhe devia caber com justiça.

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Movido por uma ambição insana e uma autoestima desastrosa, o povo alemão derrubou as bases sobre as quais todos vivemos e construímos. Mas os porta-vozes do povo francês e do inglês correram o risco de completar a ruína iniciada pelo estado germânico com uma paz que, levada a efeito, deverá prejudicar ainda mais, em vez de restaurar, a organização complexa e delicada já prejudicada e tornada vulnerável pela guerra, graças à qual os europeus podem empregar-se e viver.

Na Inglaterra, o aspecto aparente da vida não nos ensina ainda a sentir que chegamos ao fim de toda uma era. Estamos preocupados em recolher os fios da nossa vida onde os deixamos cair, com uma única diferença: muitos de nós parecemos bem mais ricos do que antes. Onde antes da guerra gastávamos milhões aprendemos agora a gastar centenas de milhões, aparentemente sem qualquer problema. Naturalmente, não exploramos ao máximo as possibilidades da nossa vida econômica. Por isso esperamos não só um retorno às comodidades de 1914 mas uma ampliação e intensificação desses confortos. Todas as classes fazem planos: os ricos para gastar mais e poupar menos, os pobres para gastar mais e trabalhar menos.

No entanto, talvez só na Inglaterra (e nos Estados Unidos) seja possível ser tão inconsciente. No continente europeu a terra se move sem que ninguém perceba. Não se trata apenas de uma questão de extravagância ou de "problemas trabalhistas", mas de vida e morte, de fome e sobrevivência, as tremendas convulsões de uma civilização moribunda.

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Se a guerra civil europeia deve terminar com a França e a Itália usando abusivamente o poder momentâneo da sua vitória para destruir a Alemanha e a Áustria-Hungria, que jazem prostradas, estão convidando a sua própria destruição, por estarem tão profunda e indissoluvelmente ligadas às suas vítimas, por vínculos econômicos e espirituais ocultos. De qualquer forma, um inglês que participou da conferência de Paris e durante aqueles meses pertenceu ao Conselho Econômico Supremo das Potências Aliadas, deveria tornar-se um europeu nos seus cuidados e na sua visão (uma experiência nova para ele). Ali, no centro nervoso do sistema europeu, suas preocupações britânicas em boa parte desapareceriam, e ele seria perseguido por outros espectros, mais assustadores. Paris foi um pesadelo, e todos estavam envolvidos por uma atmosfera de morbidez. Um sentido de catástrofe iminente assombrava o frívolo cenário: a futilidade e mesquinharia do homem diante dos grandes eventos que o confrontavam; o significado ambíguo e o irrealismo das decisões; a ligeireza, a cegueira, a insolência, os gritos confusos de ira - havia ali todos os elementos da tragédia antiga. Sentado ao lado das decorações teatrais dos salões oficiais franceses, podia-se especular se os rostos peculiares de Wilson e Clemenceau, com sua cor fixa e caracterização imutável, eram de fato rostos e não as máscaras tragicômicas de algum estranho drama ou de um espetáculo de marionetes.

Os procedimentos em Paris tinham todos esse ar de extraordinária relevância e ao mesmo tempo de pouca importância. As decisões tomadas pareciam prenhes de consequências para o futuro da sociedade humana; contudo, o contexto insinuava que as palavras não tinham peso - eram fúteis, insignificantes, sem efeito, dissociadas dos fatos.

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Em Paris, onde os que trabalhavam no Conselho Econômico Supremo recebiam quase que a cada hora relatos sobre a miséria, a desordem e a desorganização de toda a Europa Central e Oriental, nos países aliados como nos inimigos, e ouviam dos representantes financeiros da Alemanha e da Áustria o testemunho da terrível exaustão dos seus países, uma visita ocasional à sala quente e seca do Presidente da Casa, onde os Quatro cumpriam o seu destino em uma intriga árida e vazia, só aumentava esse sentido de pesadelo.

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A guerra prejudicou de tal forma o sistema que pôs em perigo toda a vida da Europa. Uma grande parte do continente jazia doente e moribunda; sua população excedia de muito a oferta dos meios de sobrevivência; sua organização foi destruída, o sistema de transporte desarticulado, a produção de alimentos terrivelmente prejudicada.

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A Inglaterra tinha destruído um rival no comércio, como em cada século precedente; e um capítulo importante se encerrara no conflito secular entre a glória da Alemanha e a da França. A prudência aconselhava uma certa adesão verbal aos "ideais" dos tolos americanos e dos hipócritas ingleses, mas seria estúpido acreditar que há muito lugar no mundo, como ele é, para iniciativas como a da Liga das Nações; ou que o princípio de autodeterminação dos povos faz algum sentido a não ser como uma fórmula engenhosa para reordenar a balança de poder em defesa dos interesses de cada nação vitoriosa.

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Uma paz magnânima e justa, de igual tratamento, baseada em uma "ideologia" como a dos Quartorze Pontos do Presidente Wilson, só poderia reduzir o período da recuperação alemã, apressando a chegada do dia em que a Alemanha impusesse novamente à França a força dos seus números, dos seus recursos e competência técnica. Daí a necessidade de obter "garantias", e cada garantia aumentava a irritação e portanto a probabilidade de uma subsequente revanche da Alemanha, tornando necessárias outras medidas para esmagá-la. Assim, com a adoção dessa perspectiva, e desprezada alternativa, é inevitável que se exija uma "paz de Cartago", como a imposta pelos romanos àquela cidade rival, em toda a medida em que o poder momentâneo pode impô-la.

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Assim, na medida do possível era a política da França que atrasava o relógio e desfazia o que o progresso da Alemanha tinha realizado desde 1870. Com as perdas territoriais e outras medidas a população alemã seria reduzida; mas sobretudo era preciso destruir o seu sistema econômico, base da sua nova força - a vasta trama construída com ferro, carvão e transportes. Se a França pudesse apoderar-se, mesmo em parte, do que a Alemanha era obrigada a abandonar, a desigualdade de forças entre os dois competidores pela hegemonia europeia poderia ser corrigida por muitas gerações.

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É a política de um ancião [Clemenceau], cujas impressões mais vivas e cuja imaginação mais rica pertencem ao passado, e não ao futuro. Um velho que vê o problema em termos de França e Alemanha, não de humanidade e de uma civilização europeia lutando para atingir uma nova ordem. A guerra marcou sua consciência de modo um pouco diferente do nosso, e ele não tem a expectativa ou a esperança de que chegamos ao limiar de uma nova era.

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Os ponteiros do relógio não podem ser atrasados. É impossível restaurar a Europa Central como era em 1870 sem provocar tais tensões na estrutura europeia, e liberar forças humanas e espirituais que ultrapassando fronteiras e povos irão superar não só nossas "garantias" como nossas instituições, e toda a ordenação existente na nossa sociedade.

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Em novembro de 1918 os exércitos de Foch e as palavras de Wilson nos permitiram de súbito escapar do que nos ameaçava, com tudo o que mais prezávamos. As condições pareciam mais favoráveis do que nunca. A vitória era tão completa que não havia lugar para o medo. O inimigo depusera suas armas confiante em um solene acordo sobre as características gerais da paz, cujos termos pareciam garantir uma solução justa e magnânima, e conter uma esperança de restauração da corrente de vida que se rompera. Para dar a sua garantia, o Presidente dos Estados Unidos vinha pessoalmente apor o seu selo nesse pacto.

Quando deixou Washington, o Presidente Wilson gozava em todo o mundo de um prestígio e uma influência moral sem igual na história. Suas palavras corajosas e comedidas chegavam aos povos da Europa por cima e além da voz dos políticos europeus. Os povos inimigos confiavam em que levasse à prática o acordo que fizera com eles; e os aliados o tinham não só como um líder vitorioso, mas quase como um profeta. Além da sua influência moral, a realidade do poder estava nas suas mãos. O exército dos Estados Unidos estava no auge dos seus números, equipamento e disciplina. A Europa dependia inteiramente dos alimentos fornecidos pelos Estados Unidos; do ponto de vista financeiro estava ainda mais à sua mercê. A Europa já devia a Washington mais do que podia, e no entanto ainda seria preciso uma assistência importante para salvá-la da fome e da bancarrota. Nunca um filósofo detivera tais instrumentos para impor-se aos príncipes do mundo. Nas capitais europeias a multidão cercava o carro do Presidente. Com que curiosidade, ansiedade e esperança procurávamos vislumbrar o rosto e o porte desse homem do destino que, vindo do Oeste, deveria curar as feridas dos progenitores da sua civilização, e construir os alicerces do nosso futuro.

A desilusão foi tão completa que alguns dos que tinham sido mais confiantes não ousavam revelá-la. Seria verdade? perguntavam aos que voltavam de Paris. Seria o Tratado realmente tão ruim como parecia? Que acontecera com Wilson? Que debilidade ou desgraça explicava uma traição tão extraordinária e inesperada?

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Como Ulisses [Grant], Wilson parecia mais sábio quando sentado.

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A crítica seria simplesmente de que o Presidente, por várias razões pessoais e sinistras, queria simplesmente "to let the Hun off" - "livrar os hunos". Era possível prever a voz quase unânime da imprensa francesa e britânica. Assim, se seguisse esse caminho certamente seria derrotado.

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[Wilson] Pensava que a explosão de popularidade que o acolhera ao chegar à Europa já diminuíra; a imprensa parisiense troçava com ele abertamente; nos Estados Unidos, seus opositores políticos aproveitavam sua ausência para criar um clima negativo; a Inglaterra era fria, crítica, indiferente.

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O terror germânico ainda nos espreitava, e até mesmo o público simpático revelava uma grande cautela: não devemos encorajar o inimigo, é preciso apoiar nossos amigos.

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Em vez de entregar Danzig à Polônia, o Tratado cria ali uma "cidade livre", mas inclui essa "cidade livre" no território aduaneiro da Polônia, confia a este país o controle do sistema ferroviário e de navegação fluvial, estabelecendo que "caberá ao Governo polonês a condução das relações exteriores da cidade livre de Danzig, assim como a proteção diplomática dos seus cidadãos quando no exterior".

Ao colocar o sistema fluvial da Alemanha sob controle estrangeiro, o Tratado fala em considerar como rios internacionais aqueles "sistemas fluviais que dão naturalmente a mais de um Estado o acesso ao mar, com ou sem transbordo de uma embarcação para outra".

Há muitos outros exemplos. O objetivo honesto e inteligível da política francesa - limitar a população alemã e debilitar o seu sistema econômico - se reveste, por causa de Wilson, da linguagem augusta da liberdade e igualdade internacional.

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Clemenceau teve êxito no que parecera, alguns meses antes, uma proposta extraordinária e impossível: que os alemães não fossem ouvidos.


Mais:
http://docs.google.com/file/d/0BxwrrqPyqsnITmZJZHBsaVg0bTg
http://www.youtube.com/watch?v=0PYSFqCSsGU
http://www.newcriterion.com/issues/2014/9/guilt-trip-versailles-avant-garde-kitsch