quarta-feira, 6 de junho de 2018

Um ano sobre o altiplano

Trechos de Um Ano Sobre O Altiplano (1938), de Emilio Lussu.


Ao final de maio de 1916, minha brigada - regimentos 399º e 400º - encontrava-se ainda no Carso. Desde o início da guerra, eu havia combatido apenas naquele front.

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O príncipe [duque de Aosta, nosso comandante] tinha escassas capacidades militares, mas uma grande paixão literária. Seu chefe de Estado Maior e ele se completavam. Um escrevia os discursos e o outro os pronunciava. O duque aprendia-os de memória e recitava-os, com oratória de antigo romano e uma dicção impecável.

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Em 21 de agosto de 1915, com quarenta voluntários, [o tenente de complemento Grisoni] havia atacado de surpresa e conquistado o "nó emaranhado", sólida trincheira avançada defendida por um batalhão de húngaros. Havia sido uma ação de extrema audácia.

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O diretor do coro entoava:

"Um raminho de flores..."

O coro da companhia respondia:

"Colhido na montanha..."

E o canto animava os soldados, cansados. Estávamos há três dias em marcha. A longa imobilidade da vida sedentária no Carso deixou-nos incapacitados para grandes esforços. A marcha resultava difícil para todos. Só nos consolava a ideia de que iríamos à montanha.

O descanso de Aiello sequer durou uma semana. Os austríacos lançaram a grande ofensiva entre Pasubio e Villa Lagarina. Depois de romper o front na Colina XII, passaram a ser vistos no altiplano de Asiago.

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O coro animava-se cada vez mais, porém cada qual seguia o curso de seus pensamentos. Havia-se acabado a vida de trincheira: agora íamos contra-atacar, manobrando, tinham-nos dito... e na montanha. Finalmente! Entre nós, tínhamos falado sempre da guerra na montanha como de um descanso privilegiado. Assim, pois, também nós veríamos árvores, bosques e fontes, vales e ângulos mortos, que nos fariam esquecer, com o grande descanso frustrado, aquele horrível pedregal do Carso, desolado, sem um filamento de vegetação nem uma gota de água, tudo igual, sempre igual, carente de refúgios, com apenas alguns buracos, as "dolinas", ímãs para os disparos de artilharia de grande calibre, nos quais nos afundávamos à vontade de Deus, homens e mulas, vivos e mortos. Por fim poderíamos nos deitar, nas horas de ócio, tomar sol e dormir atrás de uma árvore sem sermos vistos, sem ter como despertador uma bala na perna, e dos cumes dos montes veríamos, diante de nós, um horizonte e um panorama, ao longo das eternas paredes de trincheira e do arame farpado, e por fim nos libertaríamos daquela vida miserável, vivida a cinquenta ou a dez metros da trincheira inimiga, em uma promiscuidade feroz, composta de contínuos ataques com baioneta ou à base de granadas de mão e tiros de fuzil disparados por troneiras. Deixaríamos de matar uns aos outros, todos os dias, sem ódio. [...]

O único inconveniente da manobra era que tínhamos que marchar, sempre marchar.

Um regimento de cavalaria cruzou conosco na estrada e tivemos que nos deter para deixá-lo desfilar. Felizardos, eles que iam a cavalo! Mas logo nos demos conta de que eles também estavam mortos de cansaço.

- Felizardos - respondiam eles -, vocês que podem caminhar a pé.

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Agora a estrada ficava obstruída pelos refugiados. No altiplano de Asiago não havia ficado um alma viva. A população dos Sete Municípios derramava-se pela planície, ao deus-dará, transportando em carros de boi e em mulas: velhos, mulheres, crianças e as poucas bugigangas que conseguiram salvar das casas abandonadas às pressas ao inimigo. Os camponeses, apartados de sua terra, eram como náufragos. Ninguém chorava, mas seus olhos miravam ausentes. Era o comboio da dor. Os carros, lentos, pareciam um cortejo fúnebre.

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Com o olhar, segui "tio Francesco", que ia a meu lado. Era o soldado mais velho da companhia: participara também da guerra na Líbia. Os companheiros chamavam-no de "tio Francesco" porque, além de ser o mais velho, era pai de cinco filhos.

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Quando um suboficial regressou do bivaque com tabaco e garrafas de vinho, os grupos se reanimaram. Gastara as vinte liras. Na guerra não se pensa no amanhã. Não demoraram a passar de mão em mão as garrafas, e as vozes se elevaram.

- À saúde do coronel!

Só uma voz juvenil se destacou entre as outras, hostil:

- À saúde da puta da sua mãe!

Os companheiros protestaram.

- Você quer que em lugar do vinho o coronel meta duas balas em sua barriga?

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A ponte de Val d'Assa, destruída por nós, fora reconstruída pelos austríacos em poucos dias. Toda nossa artilharia havia caído em mãos do inimigo: já não nos restava uma peça sequer em todo o altiplano.

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- Que não bebe licores? - perguntou-me, preocupado, o tenente-coronel.

Ele tirou do bolso da jaqueta um caderninho e escreveu: "Conheci um tenente abstêmio de licores. 5 de junho de 1916." Fez-me repetir meu nome, e acrescentou-o à nota. [...] Para não perder tempo, apressei-me a dizê-lo a razão oficial que me levara até ali, mas ele, antes de responder-me, quis conhecer alguns detalhes de minha vida e meus estudos. Assim ficou sabendo que eu era oficial de complemento, que havia saído da universidade quando a guerra foi deflagrada, porém o que mais o assombrava era o assunto dos licores.

- Pertence talvez a alguma seita religiosa? - perguntou-me.

- Não - respondi, rindo -. Por quê? [...]

- Vê ali a saída de Val Frenzela, por debaixo de nós? Entre a saída e o monte Fior haverá não menos de quatro ou cinco quilômetros em linha reta. Se os austríacos forçarem a saída, a "porta", poderão introduzir todo um exército sem ter um só ferido, enquanto a "chave" segue pendurada na parede. Você não bebe!

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O batalhão permaneceu quatro dias, entre Buso e a estrada Gallio-Foza, em contato com os avanços do inimigo. [...] Todos eles eram batalhões regionais, recrutados no Alto Veneto. Portanto, combatiam em torno de suas casas.

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Pouco antes da meia-noite, o batalhão recebeu a ordem de dirigir-se com todos os seus efetivos até a primeira linha, no monte Fior, com as quatro companhias, os sapadores e a seção de metralhadoras. Tomamos posições às escuras, com bastante desordem, ocupando o espaço que a outra tropa, depois de se trasladar para mais à direita, havia deixado para nós. Passamos toda a noite escavando.

A situação era difícil e nos demos conta disso ao amanhecer, quando os austríacos abriram fogo. Na ordem que nos fora comunicada, estava escrito o seguinte: "Devem aferrar-se ao terreno, com unhas e dentes." A frase, com ressonâncias literárias, refletia, com suficiente aproximação, a posição de cada um de nós. De fato, as trincheiras estavam improvisadas sobre um terreno desnudo, sem escavações profundas, sem sacos de areia, sem parapeitos. Mais que trincheiras, havíamos encontrado buracos individuais, descontínuos, que cada qual tentara aprofundar, já que não com os dentes exatamente, em grande parte com as unhas. Estávamos estendidos, com as barrigas no chão e a cabeça apenas protegida por alguma pedra e montinhos de terra. A cada rajada de metralhadora, a cada silvo de granada, fazíamos instintivamente um pouco mais de esforço para ocupar menos espaço e oferecer menos vulnerabilidade, apertando-nos cada vez mais contra o terreno, esmagados até a linha do solo.

Participavam do bombardeio da artilharia, além de todas as peças de campanha postadas na região de Asiago, as de grande calibre. Pela primeira vez, entravam em ação no altiplano as de 305 e de 420. Nós ainda não conhecíamos estas últimas. A trajetória produzia um ruído especial, um estrondo gigantesco, que se interrompia de vez em quando para ser retomado, cada vez mais intenso, até a explosão final. Trombas de terra, pedras e pedaços de corpos elevavam-se, altíssimos, e voltavam a cair longe. Na cratera que produziam poderia caber um pelotão amontoado. Poucos eram os projéteis que caíam na primeira linha. A maior parte derramava-se às nossas costas. Todo o terreno tremia sob nossos pés.

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O aspirante Perini pôs-se de pé, em meio de seus soldados, e empreendeu fuga. Era muito jovem e enfermiço, e nunca havia participado de um combate. [...]

O aspirante correra já algumas centenas de metros e tinha desparecido atrás do declive, mas o major, como um disco arranhado que repete até o infinito a mesma frase, seguia gritando, monótono:

- Dê um tiro de fuzil nesse covarde!

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Enquanto nossa metralhadora disparava, o bombardeio cessava. O inimigo atacara no preciso instante em que a artilharia suspendera o bombardeio.

Os austríacos atacavam em massa, em ordem cerrada, com batalhões contíguos. Com a bandoleira do fuzil ao ombro, não disparavam. Convencidos de que, depois daquele bombardeio, em nossas linhas não haveria ficado uma alma viva, avançavam seguros. Avançavam cantando um hino de guerra, do qual a nós só chegava a ressonância do incompreensível coro.

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De nossas duas metralhadoras, só uma disparava. A outra fora destruída por uma granada. Das colunas inimigas, nós só víamos as que tínhamos em frente, mas o ataque provavelmente era simultâneo, também à nossa direita.

Os batalhões avançaram passo a passo, lentamente, tendo como obstáculos pedras e troncos. Nossa metralhadora disparava raivosa, sem cessar. Quem a apontava era o próprio comandante da seção, o tenente Ottolenghi. Víamos unidades inteiras tombar ceifadas. Os companheiros desviavam para não passar sobre os caídos. Os batalhões se recompunham. Retomava-se o cântico. A maré avançava.

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O major permaneceu estendido, imóvel. O assistente desabotoou-lhe a jaqueta e vimos o peito coberto de sangue. A couraça metálica, que lembrava escamas de peixe, estava perfurada de balas.

[...] A colisão entre os nossos e os austríacos já se produzira. Uns e outros, confusamente mesclados, detiveram-se. As unidades austríacas recuaram passo a passo, com a bandoleira do fuzil ao ombro, como haviam avançado. A inesperada resistência conseguiu desagregá-los.

[...] O terreno estava coberto de mortos, mas havíamos resistido. Voltamos a levar para trás os feridos, bem ou mal, pois já não tínhamos macas.

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O capitão Bravini não parava de gritar:

- Saboia!

Um tenente da 12ª passou a meu lado. Tinha a cara avermelhada e empunhava uma carabina. Era um republicano e o grito de ataque monárquico aborrecia-o. Viu-me e gritou:

- Viva Itália!

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Os soldados cantarolavam à sombra. Reliam cem vezes as cartas recebidas de casa.

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[Ludovico] Ariosto era um pouco como nossos jornalistas correspondentes de guerra, e descreveu cem combates sem ter visto um sequer. Porém, quanta graça e quanto gozo no mundo de seus heróis!

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Em outubro, com a proximidade do inverno, que na alta montanha se inicia a finais do outono, começaram os turnos de trincheiras, tétricos e monótonos. Pensando bem, não eram piores que a vida que, todos os dias e em tempos de paz, levam milhões de mineiros nas grandes minas da Europa. Havia algum ferido, raras vezes um morto. Excepcionalmente, o estampido de um canhão de grande calibre ou de um bombardeio de trincheira provocava uma grande catástrofe, como a explosão do grisu em uma mina, e a vida era retomada sempre igual: trincheira, descanso a um quilômetro, trincheira. O frio, a neve, o gelo e as avalanches não tornam mais dura a guerra aos homens vigorosos. São elementos que, em época de paz, aqueles que vivem na alta montanha e nas regiões de neve perpétua conhecem bem. Para a infantaria, a guerra é o ataque. Sem ataques, o que há é trabalho duro, não guerra.

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O capitão estava sentado à mesa, ainda não recolhida. Os oficiais tinham acabado de almoçar e voltaram a seus postos de serviço. O capitão tinha ao alcance da mão o telefone e duas garrafas: uma de conhaque e outra de Bénédictine. Bebia e fumava.

- Devem ser bósnios muçulmanos - disse-me, quando me viu -. Ter essa ideia de explodir uma trincheira na noite de Natal! Bonito presságio nos preparam, mas tenho as peças de artilharia apontadas de tal modo que, se são maometanos, esta noite mesmo entrarão em comunicação com o Profeta.

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O capitão falava com um tom mais alegre. O certo é que o licor o excitava, mas suas palavras igualmente excitavam-no. Falava rapidamente, como se tivesse levado muito tempo esperando uma ocasião para abandonar-se às confidências. Tirou uma fotografia da carteira.

- Olhe com atenção. Ela é atraente, tanto quanto uma mulher atraente pode ser. Mas, apesar disso, não vale uma garrafa de conhaque.

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Nossos pais achavam que estávamos sempre participando de combates brutais. Nunca pensaram que pudéssemos passar meses sem combates e sem sequer ver os austríacos.

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[...] pedir autorização para realizar uma excursão com o esquadrão de esquiadores do batalhão. Como [o tenente Ottolenghi] continuava sendo o comandante da seção de metralhadoras, não tinha ligação alguma com os esquiadores, mas durante o inverno fizemos, por prazer, longas práticas e chegamos a ser bons esquiadores.

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No momento de tomar o café, a conversa se reanimou. Um subtenente, estudante de Letras da Universidade de Roma, recitou em latim uma sátira de Juvenal e depois deu sua tradução em versos italianos. Todos aplaudiram.


Mais:
http://www.lanuovasardegna.it/2015/01/02/news/la-leggenda-dei-dimonios
http://en.wikipedia.org/wiki/Sassari_Mechanized_Brigade#World_War_I
http://www.youtube.com/watch?v=Wcgt-0zLTlI
http://www.youtube.com/watch?v=8skkuB7hpVI