domingo, 17 de junho de 2018

O tempo recuperado

Trechos de O Tempo Recuperado (1927), de Marcel Proust.


Regressei, então, a uma Paris bem diversa, como em breve se verá, daquela a que regressara uma primeira vez, em agosto de 1914, para sofrer um exame médico, após o qual me recolhera de novo ao sanatório. Numa das primeiras noites de meu novo retorno, em 1916, tendo vontade de ouvir falar da única coisa que então me importava, a guerra, saí depois do jantar para fazer uma visita à Sra. Verdurin, pois ela estava com a Sra. Bontemps. Como que pela ação de um fermento, em aparência de geração espontânea, as moças andavam todas com altos turbantes cilíndricos como o faria uma contemporânea de Madame Tallien. Trazendo, por civismo, túnicas egípcias retas, escuras, à maneira militar, muito curtas, calçavam sapatos atados por correias, lembrando o coturno de longas polainas de nossos caros combatentes; porque não se esqueciam de seu dever de alegrar os olhos desses combatentes, diziam, era que se enfeitavam não só de vestidos "flutuantes", mas também de joias, cujos decorativos evocavam o exército mesmo quando o material não procedia dele, nem nele fora trabalhado. Em vez de ornatos egípcios que lembrassem a campanha do Egito, viam-se anéis e braceletes feitos com fragmentos de canhões [...]; quando morria um dos seus, mal punham luto, ao pretexto de "mescla de orgulho", o que permitia um bonezinho branco de crepe do mais gracioso efeito e que "autorizava todas as esperanças", na invencível certeza do triunfo definitivo.

O Louvre e todos os museus estavam fechados, e, quando se lia na manchete de um jornal: "Uma exposição sensacional", podia-se ter certeza de que tratava de uma exposição, não de quadros, mas de vestidos; [...] assim procediam em 1916 os costureiros, com uma orgulhosa consciência de artistas, que confessavam "buscar a novidade, afastar a vulgaridade, afirmar a personalidade, preparar a vitória, encontrar para as gerações do pós-guerra uma nova fórmula do belo"; tal era a ambição que os animava, a quimera que perseguiam, conforme se poderia constatar indo a seus salões deliciosamente instalados na rua da ..., onde a palavra de ordem era apagar, com um tom luminoso e alegre, as pesadas tristezas da ocasião, mas com a discrição imposta pelas circunstâncias.

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Quanto à caridade, pensando em todas as misérias nascidas da invasão, em tantos mutilados, era bem natural que esta devesse tornar-se mais engenhosa ainda, o que obrigaria as senhoras de altos turbantes a passar o fim da tarde nos chás, ao redor de uma mesa de bridge, comentando as notícias do front, enquanto à porta esperavam-nas seus automóveis, em cujo assento um belo militar conversava com o lacaio. Aliás, não eram novos apenas os chapéus cujos estranhos cilindros encimavam os rostos. Os próprios rostos o eram também. Essas damas de chapéus novos eram mulheres jovens chegadas não se sabia bem de onde, e que eram a flor da elegância [...]. A dama que conhecia os Guermantes desde 1914 encarava como uma arrivista aquela que lhe apresentavam na casa deles em 1916, cumprimentava-a com certa distância, examinava-a com seu lorgnon e confessava, com um trejeito, que não se sabia ao certo se aquela senhora era casada ou não. "Tudo isso é por demais nauseabundo", concluía a dama de 1914, que desejaria que o ciclo de novas admissões se encerrasse depois dela.

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Ninguém se recordava que ele fora dreyfusista, pois os mundanos são distraídos e esquecidos; também porque havia decorrido muito tempo, que eles afetavam ter sido maior ainda, visto que uma das ideias da moda era dizer que o período anterior à guerra estava separado desta por algo tão profundo e, aparentemente, tão prolongado quanto um período geológico; e o próprio Brichot, o nacionalista, quando aludia ao Caso Dreyfus, comentava: "Naqueles tempos pré-históricos." Na verdade, essa mudança profunda operada pela guerra estava na razão inversa do valor dos espíritos afetados, pelo menos a partir de um certo grau. Nas camadas inferiores, os rematados idiotas e os perfeitos gozadores nem se preocupavam com a guerra. Mas, nos níveis superiores, aos que fazem da vida interior o seu ambiente, pouco lhes importa o vulto dos acontecimentos. O que, para eles, modifica profundamente a ordem dos pensamentos é antes alguma coisa que parece não ter em si qualquer importância e que lhes inverte a ordem cronológica do tempo, tornando-os contemporâneos de outra época de suas vidas.

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O Sr. Bontemps não queria ouvir falar de paz sem que a Alemanha fosse reduzida à mesma fragmentação que na Idade Média, sem que se declarasse a degradação da casa de Hohenzollern, e Guilherme II levasse doze tiros.

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Quando ela dizia: "Vou à casa dos Lévy", todos entendiam, sem que ela precisasse explicar, que se tratava dos Lévis-Mirepoix, e nenhuma duquesa se deitaria sem ouvir da Sra. Bontemps ou da Sra. Verdurin, ao menos por telefone, o que dizia o comunicado da noite, o que fora omitido, e como andavam as coisas na Grécia, qual a ofensiva que se preparava - numa palavra: aquilo que o público só saberia no dia seguinte, ou mais tarde ainda, e de que desse modo, fazia, como os costureiros, uma espécie de exibição privada.

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A Sra. Verdurin dizia:

- Venha às cinco horas falar da guerra -, como outrora "falar do Caso Dreyfus", e, no intervalo: - Venham ouvir Morel.

Ora, Morel não deveria comparecer, pelo simples motivo de que não fora dispensado do serviço militar. Simplesmente não se apresentara, era um desertor, mas ninguém o sabia.

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Desde a guerra, tendo os cronistas mundanos suprimido essas informações, a publicidade só podia existir por meio desse expediente hostil e restrito, digno das eras primitivas e anterior à descoberta de Gutenberg, visto à mesa da Sra. Verdurin. Depois do jantar, subia-se para os salões e então os telefonemas começavam. Mas, naquela época, muitos dos grandes hotéis estavam cheios de espiões que anotavam as notícias transmitidas pela Sra. Bontemps com uma indiscrição felizmente corrigida apenas pela inexatidão dos seus nomes, sempre desmentidos pelos acontecimentos.

Antes da hora em que terminavam os chás, ao cair da tarde, no céu claro, viam-se ao longe pequenas manchas escuras que, no crepúsculo poderiam tomar por mosquitos ou passarinhos. Assim, quando se via uma andorinha muito ao longe, era possível confundi-la com uma nuvem, mas imaginar que essa nuvem é sólida, imensa e resistente. Assim, estava eu comovido por aquela mancha escura no céu estival, que não era nem mosquito nem passarinho, mas um aeroplano tripulado por homens que velavam sobre Paris. A ação dos aeroplanos que eu tinha visto com Albertine no nosso último passeio em Versalhes em nada entrava nessa emoção, pois a lembrança desse passeio se me tornara indiferente.

À hora do jantar, os restaurantes estavam cheios; e, se, passando nestes eu via um pobre soldado de licença, livre por seis dias do risco permanente da morte, e prestes a voltar para as trincheiras, deter seus olhos, por um instante, nas vidraças iluminadas, sofria como no hotel de Balbec, quando os pescadores observavam-me a comer, porém sofria ainda mais por saber que a miséria do soldado era maior que a dos pobres, pois abrangia todas as misérias, sendo mais ainda por ser mais resignada, mais nobre, e conhecia o sacudir filosófico de rosto sem ódio, com o qual, pronto para retornar à guerra, ele murmurava aos embusqués que se acotovelavam para observar as mesas: "Ninguém diria que há guerra por aqui." Depois, às nove e meia, quando ninguém tivera tempo de terminar o jantar, apagavam-se bruscamente todas as luzes, em obediência às ordens da polícia [...], a cena desenrolava-se numa misteriosa penumbra de quarto onde se projeta a lanterna mágica, de sala de espetáculos que serve para exibir os filmes de um desses cinemas para os quais iam precipitar-se os comensais.

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A guerra que faz, nas capitais em que só restam mulheres, o desespero dos homossexuais, será pelo contrário o romance apaixonado dos homossexuais, se estes forem suficientemente inteligentes para imaginarem quimeras, não o bastante para saberem desvendá-las, reconhecer sua origem, e se julgarem. De modo que, quando certos rapazes se engajaram simplesmente por espírito de imitação esportiva (como num determinado ano todos jogam diabolo), para Saint-Loup a guerra foi sobretudo o próprio ideal que ele pensava perseguir em seus desejos muito mais concretos, porém eivados de ideologia, ideal servido em comum com as criaturas que ele preferia, numa ordem de cavalaria puramente masculina, longe das mulheres, onde poderia expor a vida para salvar seu ordenança e morrer inspirando um amor fanático aos seus homens. E assim, conquanto sua coragem abrigasse muitas outras coisas mais, nela se achava o fato de que ele era um fidalgo; e nela se achava, igualmente, sob uma forma irreconhecível e idealizada, a ideia do Sr. de Charlus, que era a de que a essência de um homem nada tem de afeminada.

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Falei a Saint-Loup do meu amigo, o gerente do Grande Hotel de Balbec, que, ao que parece, anunciara terem ocorrido em certos regimentos franceses, no começo da guerra, algumas defecções que ele denominava "defeituosidades", acusando-as de terem sido causadas pelo que chamava de "militarista prussiano". Em dado momento, chegara mesmo a acreditar num desembarque simultâneo de japoneses, alemães e cossacos em Rivebelle, ameaçando Balbec, e dissera que nada mais tinha a fazer senão "raspar-se".

Achava um tanto precipitada a partida dos poderes públicos para Bordéus, declarando que eles tinham feito mal em "raspar-se" tão depressa. Este germanófobo afirmava, rindo, a propósito do irmão:

- Está nas trincheiras, a vinte e cinco metros dos boches! - até que, verificando-se que ele próprio o era, internaram-no num campo de concentração.

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"Os franceses explodiram a pontezinha sobre o Vivonne, a qual, dizia você, não lhe recordava a infância tanto quanto desejaria; os alemães explodiram outras, durante um ano e meio ocuparam uma metade de Combray, e os franceses a outra metade."

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Parecia quase haver algo de cruel nessas licenças dadas aos combatentes. Nas primeiras, dizia-se: "Não hão de querer voltar, desertarão." E não regressavam apenas de lugares que nos pareciam irreais porque só tínhamos ouvido falar deles pelos jornais, e porque não imaginávamos a possibilidade de alguém tomar parte nesses combates titânicos e voltar com apenas uma contusão no ombro; era das margens da morte, às quais voltariam, que eles regressavam; um momento para ficar conosco, incompreensíveis para nós, enchendo-nos de assombro, e de uma sensação de mistério, como esses mortos que evocamos, que nos aparecem por um segundo, que não ousamos interrogar - quando muito, poderiam responder: "Não poderíeis fazer ideia."

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Parecia comprazer-se nessa comparação entre aviadores e Valquírias, explicando-a, de resto, por motivos puramente musicais:

- Ora, é que a música das sirenes era a de uma Cavalgada! Decididamente, é preciso a chegada dos alemães para que se ouça Wagner em Paris.

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Agora, os homens escasseavam, o luto era mais frequente, inútil se tornava impedi-los de saírem de casa, a guerra já o fazia. A Sra. Verdurin se agarrava aos restantes. Queria persuadi-los de que eram mais úteis à França permanecendo em Paris.

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A despeito de si mesmo, a admiração que pudesse ter pela Inglaterra, pela forma notável como entrara na guerra, essa Inglaterra impecável, incapaz de mentira, impedindo que o trigo e o leite entrassem na Alemanha, representava-lhe a nação de homens de bem.

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- Não quero falar mal dos americanos, meu caro - continuou ele -, parece que são inesgotavelmente generosos e, como não houve maestro nessa guerra, cada um tendo entrado na dança a seu tempo, eles, que principiaram quando já estávamos quase no fim, podem mostrar um ardor que quatro anos de guerra já acalmaram em nós. Mesmo antes da guerra, amavam nosso país, nossa arte, pagavam bem caro pelas nossas obras-primas.

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- "Quem não está conosco é contra nós", não sei se tais frases são do imperador Guilherme ou do Sr. Poincaré, pois ambos, com algumas variantes, pronunciam-nas umas vinte vezes, se bem que, para falar a verdade, devo confessar que o imperador, neste caso, tem sido imitador do nosso presidente da República. A França talvez mostrasse tanto empenho em prolongar a guerra se se mantivesse fraca o tempo todo, mas, principalmente, a Alemanha não estaria tão interessada em terminá-la se continuasse a ser forte. [...]

Como um aviador de bombas, ele adquirira o hábito de falar muito alto, mesmo no campo, onde as palavras nunca alcançavam alguém, e sobretudo em sociedade, onde elas caíam ao acaso sobre os interlocutores; e onde era ouvido por esnobismo, por simpatia até, de tanto que os tiranizava, podia-se dizer que por receio. Nos bulevares, além disso, era um sinal de desprezo pelos transeuntes, para os quais nem baixava a voz nem se desviava do caminho. Mas a voz reboava, espantava, e sobretudo dava a entender claramente às pessoas que se viravam para ouvir as frases que nos teriam feito passar por derrotistas.

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A Cruz de Guerra, mesmo ganha em escritórios, bastava para fazer alguém ter assento, numa eleição triunfal, à Câmara dos Deputados, quase na Academia Francesa.

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- Na batalha do Somme, bem que ficou sabendo que começaram por cegar o inimigo, furando-lhe os olhos: destruindo-lhe os aviões e os balões cativos.

- Ah, sim! É verdade.

E como se tornara um tanto pedante desde que só vivia para a inteligência, ele afirmava que os antigos métodos voltariam.

- Sabe que as expedições da Mesopotâmia nesta guerra - (devia ter lido isto, àquela época, nos artigos de Brichot) - evocam a todo instante, sem modificações, a retirada de Xenofonte? E para ir do Tigre ao Eufrates o comandante inglês se serviu de canoas, barcos estreitos e compridos, as gôndolas locais, dos quais já se serviam os mais antigos caldeus.

Estas palavras davam-me com exatidão o sentimento da estagnação do passado que, em certos lugares, por uma espécie de peso específico, imobiliza-se indefinidamente, de modo que é possível recuperá-lo intacto.

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- E foi por tudo isto que ele se alistou, a guerra se lhe afigurou como uma libertação de seus desgostos familiares; se quer a minha opinião, ele não foi morto, deixou-se matar.


Mais:
http://docs.google.com/file/d/0BxwrrqPyqsnIMDZaQTA3Y01wUHc