quarta-feira, 19 de setembro de 2018

Uma história da guerra

Trechos de Uma História Da Guerra (1993), de John Keegan.


A política não desempenhou papel algum digno de menção na condução da Primeira Guerra Mundial. Essa guerra foi, ao contrário, uma aberração cultural monstruosa, a consequência de uma decisão inadvertida de europeus no século de Clausewitz - que começou com seu retorno da Rússia em 1813 e terminou em 1913, o último ano da longa paz europeia - de transformar a Europa numa sociedade de guerreiros. Clausewitz não foi o arquiteto dessa decisão cultural, assim como Marx não foi o arquiteto do impulso revolucionário que perverteu o liberalismo durante o mesmo período, mas ambos têm muita responsabilidade. Seus grandes livros, pretendendo ser obras de ciência, eram de fato obras intoxicantes de ideologia, apresentando uma visão do mundo não como era realmente, mas como poderia ser.

O propósito da guerra, disse Clausewitz, era servir a um fim político; a natureza da guerra, argumentava ele, era servir apenas a si mesma. Em conclusão, de acordo com essa lógica, os que fazem da guerra um fim em si mesmo terão provavelmente mais sucesso que aqueles que buscam moderar seu caráter por objetivos políticos. A paz do século mais pacífico da história europeia foi refém dessa ideia subversiva, que borbulhava e fervilhava como um vulcão ativo sob a superfície do progresso e da prosperidade. A riqueza gerada pelo século pagou, numa escala jamais vista, as obras da paz - escolas, universidades, hospitais, estradas, pontes, novas cidades, novos locais de trabalho, a infraestrutura de uma vasta e benevolente economia continental. Ela também gerou, por intermédio dos impostos, uma saúde pública melhor, taxas de natalidade mais altas e uma nova e engenhosa engenharia militar, os recursos para travar a guerra verdadeira, mediante a criação da sociedade guerreira mais forte que o mundo jamais conhecera. Em 1818, quando Clausewitz começou o manuscrito de Da Guerra, a Europa era um continente desarmado. O grande exército de Napoleão se dissolvera depois de seu exílio em Santa Helena e os de seus inimigos tinham minguado proporcionalmente. O recrutamento em larga escala tinha sido efetivamente abolido em todos os lugares, a indústria de armas entrara em colapso, os generais tornaram-se pensionistas, veteranos esmolavam nas ruas. Passados 96 anos, às vésperas da Primeira Guerra Mundial, quase todo europeu qualificado do sexo masculino em idade militar tinha uma carteira de identidade militar entre seus papéis pessoais, informando onde apresentar-se em caso de mobilização geral. Os almoxarifados dos regimentos estavam abarrotados de uniformes e armas sobressalentes para os reservistas; até mesmo os cavalos nos campos das fazendas estavam listados para serem requisitados em caso de guerra.

No início de julho de 1914, havia cerca de 4 milhões de europeus uniformizados; no final de agosto, havia 20 milhões, e muitos milhares já tinham sido mortos. A sociedade guerreira submersa irrompera armada na paisagem pacífica e os guerreiros travariam a guerra até que, quatro anos depois, não conseguissem mais lutar. E, embora esse resultado catastrófico não deva ser jogado na porta do estudo de Clausewitz, é correto ver nele o pai ideológico da Primeira Guerra Mundial, da mesma forma como temos razão em perceber Marx como o pai ideológico da Revolução Russa. A ideologia da "guerra verdadeira" foi a ideologia dos exércitos da Primeira Guerra, e o destino estarrecedor que aqueles exércitos construíram para si mesmos, graças a seu fervor para com essa ideologia, talvez seja o legado duradouro de Clausewitz.

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Quando os Estados europeus foram progressivamente impelidos a remilitarizar suas populações, em reação às forças liberadas pela Revolução Francesa, eles o fizeram de cima, e isso foi aceito com graus variados de entusiasmo. O serviço militar universal acabou sendo associado compreensivelmente ao sofrimento e à dor: houve 20 milhões de mortes na Primeira Guerra Mundial. [...] o fracasso dos esforços para atrelar dois códigos públicos contraditórios: o dos "direitos inalienáveis", inclusive a vida, a liberdade e a busca da felicidade, e o da abnegação total quando a necessidade estratégica o exige.

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No início da Primeira Guerra Mundial, a maioria dos Estados da Europa tinha alguma forma de instituição representativa e todos mantinham grandes exércitos de conscritos. A lealdade desses exércitos, reforçada impetuosamente por sentimentos nacionalistas, manter-se-ia durante os três primeiros anos da terrível provação da guerra. Em 1917, os custos, tanto materiais como psicológicos, de fazer de cada homem um soldado começaram a apresentar seus inevitáveis efeitos. Houve um motim em larga escala no exército francês na primavera daquele ano; no outono, o exército russo entrou em colapso total. No ano seguinte, o exército alemão seguiu o mesmo caminho; no armistício de novembro, em sua volta para casa, o exército se desmobilizou e o Império germânico foi jogado na revolução. Tratava-se do resultado quase cíclico de um processo que se iniciara 125 anos antes, quando os franceses tinham resgatado uma revolução apelando para que todos os cidadãos a apoiassem com armas. A política tornara-se a extensão da guerra e o velho dilema dos Estados - de como manter exércitos eficientes que fossem ao mesmo tempo confiáveis e financeiramente acessíveis - revelara-se tão longe de uma solução como na época em que a Suméria usara pela primeira vez sua receita para pagar soldados.

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Depois de chegarem, [os soldados] descobriram que a mobilidade quase milagrosa proporcionada pelas ferrovias evaporava. Face a face com o inimigo, não estavam em situação melhor do que as legiões romanas no que diz respeito a transportar seus suprimentos; além da cabeceira da ferrovia era preciso andar, e o único meio de abastecê-los era usando veículos de tração animal. Na verdade, a sorte deles era pior que a dos exércitos bem organizados de outros tempos, pois a artilharia contemporânea criava uma zona de fogo de vários quilômetros de profundidade dentro da qual o reabastecimento a cavalo era impossível e o reaprovisionamento da infantaria - de munição e ração - só podia ser feito com fardos carregados por homens.

Evidentemente, a perda de mobilidade surgiu com mais urgência em forma tática que logística: no centro da zona de fogo, a infantaria mal podia se mexer e qualquer movimento tinha um custo humano catastrófico. [...] a dimensão logística atormentou os exércitos ao longo de toda a Primeira Guerra Mundial, principalmente porque o esforço para conquistar a superioridade dentro da zona de fogo mediante o aumento da fuzilaria exigia um transporte ainda maior de munições entre o fim da linha férrea e as bocas de fogo, o que só podia ser feito por tração animal. Em consequência, a forragem para cavalos tornou-se a maior categoria de carga desembarcada, por exemplo, nos portos franceses para o exército inglês na frente ocidental em todo o período de 1914-18.

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A indústria da época da produção em massa, que laminou o aço e fez os blocos de motor que revolucionaram os transportes, também cuspia as granadas e balas que os exércitos de massa devoravam em quantidades cada vez maiores. [...] Na semana anterior à abertura da batalha do Somme, 1º de julho de 1916, a artilharia britânica deu 1 milhão de tiros, num peso total de cerca de 20 mil toneladas de metal e explosivos. A demanda por quantidades desse nível provocou a "crise dos projéteis" de 1915, mas a fome foi saciada por um programa de industrialização de emergência na Inglaterra e pela realização de grandes encomendas para fábricas trabalhando com ociosidade em outros lugares. A partir de então, as indústrias britânica e francesa nunca recuaram; os franceses, que tinham planejado antes da guerra gastar 10 mil projéteis de 75 mm diariamente, aumentaram a produção para 200 mil por dia em 1915 e, em 1917-18, forneceram à força expedicionária americana que chegava 10 milhões de obuses para sua artilharia de construção francesa, bem como 4791 dos 6287 aviões utilizados em combate pelos americanos. A Alemanha, apesar de ter de encontrar um substituto artificial para os nitratos, impedidos de chegar pelo bloqueio dos inimigos, aumentou a produção de explosivos de mil toneladas por mês, em 1914, para 6 mil, em 1915. Até mesmo o desprezado sistema fabril russo aumentou a produção de projéteis de 450 mil por mês, em 1915, para 4,5 milhões, em 1916, um crescimento de dez vezes.

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Os exércitos de todas as potências que entraram em guerra em 1914 estavam equipados com metralhadoras e seu equivalente menos letal, o rifle de repetição de retrocarga e pequeno calibre. Com um alcance de mil metros e precisão de tiro de quinhentos metros, essas armas logo estabeleceram um domínio da defesa no campo de batalha que aumentou muito as perdas nos ataques de infantaria, tornando-os muitas vezes suicidas. A partir do momento em que se cavaram linhas de trincheira onde a infantaria podia se abrigar dessa chuva de aço, os generais passaram a procurar meios de amortecer seus efeitos. A multiplicação das peças de artilharia foi a primeira solução tentada; seu resultado foi apenas o desgaste mútuo pelas artilharias em competição, devastação do campo de batalha e excesso de trabalho das indústrias fabricantes de obuses e dos serviços de suprimento próximos da frente de batalha. A invenção do tanque foi a segunda solução, mas produziram-se máquinas em número reduzido, muito lentas e desajeitadas demais para impor uma alteração decisiva nas condições táticas. Mais para o final da guerra, ambos os lados buscaram no recém-criado instrumento de poderio aéreo os meios de atacar diretamente o moral civil e a capacidade produtiva do adversário, na esperança de desgastar ambos. Porém nem o pesado aeroplano, nem o dirigível tinham alcançado capacidade ofensiva que alterasse o equilíbrio. A Primeira Guerra Mundial resolveu-se finalmente não pela descoberta ou aplicação de uma nova técnica militar, mas pelo incansável desgaste dos efetivos pela produção industrial. O fato de a Alemanha ter sido a derrotada nessa Materialschlacht foi quase fortuito; poderia ter sido qualquer de seus inimigos, entre os quais a Rússia, que de fato pagou a penalidade em 1917. Os meios, que os estados-maiores tinham convencido os governos de que garantiriam a paz e, se houvesse guerra, trariam a vitória - recrutamento cada vez mais amplo de soldados, compras cada vez mais caras de armas -, tinham se anulado uns aos outros. Suprimento e logística tinham prejudicado todos os combatentes quase na mesma medida.

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A vontade dos generais de ter mais soldados e a instituição de sistemas estatais compulsórios de recrutamento não teriam funcionado se os próprios homens não estivessem dispostos a servir. Desde o início dos Estados, os generais sempre quiseram mais soldados e a história da burocracia está cheia de exemplos de planos fúteis e descartados de alistamento. Mesmo quando um Estado dispunha de meios para identificar seus jovens aptos do sexo masculino e seus lugares de trabalho ou residência, como em 1914 todos os Estados europeus já eram capazes, a melhor das forças policiais não teria sido suficiente para levar um grupo etário inteiro para os quartéis se houvesse resistência e a sociedade em geral não a apoiasse.

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Em 1914, um clima cultural inteiramente novo dominava a sociedade europeia, no qual se aceitava o direito do Estado de exigir e o dever de todos os homens aptos de prestar serviço militar, se percebia no desempenho do serviço militar um treinamento necessário em virtudes cívicas e se rejeitava a velha distinção social entre guerreiro e os outros como um preconceito ultrapassado.

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Em 1914, o velho flagelo das doenças, até então o principal agente da morte nas guerras, já fora afastado dos exércitos. Isso fez a lista de baixas de 1914-18 mais difícil ainda de suportar. A vida dos soldados tornara-se saudável; os recrutas, criados em um meio ambiente de melhor saúde pública, bem alimentados pelos produtos da agricultura mecanizada, eram mantidos em forma e fortes. Na verdade, o tamanho das listas de baixas da Primeira Guerra Mundial refletia, em certo sentido, o declínio da mortalidade infantil e o aumento da expectativa de vida civil ocorrido no século anterior. Esses fatores combinaram-se para fornecer o número de cabeças que se apresentavam para a carnificina, que aumentava acentuadamente a cada ano. [...]

Em retrospecto, é fácil encontrar explicações mecanicistas para esse salto na quantidade de baixas. O poder de fogo, tanto da arma do soldado individual, como das metralhadoras e da artilharia que lhe davam apoio, multiplicara-se várias centenas de vezes desde os tempos da "indecisão" da pólvora, no século XVIII. [...] Já em 1914, o soldado de infantaria disparava quinze descargas por minuto, uma metralhadora, seiscentas, e uma peça de artilharia, atirando granadas shrapnel cheias de balas de aço, vinte descargas. Enquanto a infantaria ficasse protegida, boa parte desse fogo era desperdiçada, mas quando ela avançava era possível destruir um batalhão de mil homens em poucos minutos. Ademais, correr dessa torrente de disparos não oferecia escapatória, pois o fugitivo tinha de atravessar uma zona de alcance de fogo de centenas de metros até conseguir voltar à proteção das trincheiras. O fogo, portanto, pregava-o ao chão onde, se fosse ferido, poderia ficar sem assistência até sucumbir.

Todos os esforços dos altos comandos da Primeira Guerra Mundial para superar o impasse que o poder de fogo impunha às frentes de luta pela aplicação de métodos indiretos em outros lugares revelaram-se infrutíferos. A ação das frotas, em particular, trouxe pouco retorno para as enormes quantias gastas para construí-las nos sessenta anos decorridos desde a substituição dos navios de madeira pelos de ferro.

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"Cada homem um soldado", a filosofia que sustentava a política da conscrição, baseava-se numa incompreensão fundamental da potencialidade da natureza humana.

Os povos guerreiros podem ter feito de cada homem um soldado, mas tinham tomado o cuidado de lutar apenas em condições que evitavam o conflito direto ou sustentado com o inimigo, admitiam a ruptura de contato e o recuo como respostas permissíveis e razoáveis à resistência resoluta, não faziam um fetiche da coragem desesperada e mediam com muito cuidado a utilidade da violência.

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Os exércitos da Primeira Guerra Mundial eram compostos quase que do topo até a base de representantes de todas as posições e ocupações da sociedade, e muitos dos que foram poupados da morte e de ferimentos serviram por dois, três ou até quatro anos. [...]

A persistência até o fim da Alemanha, apesar da perda de mais de 2 milhões de uma população anterior à guerra de 70 milhões, é ainda mais notável. Ela pagou o preço emocional, embora numa moeda diferente da que circulou nas nações vitoriosas. Nestas, o custo foi considerado alto demais para jamais ser pago novamente.


Mais:
http://www.youtube.com/watch?v=f7AZSckr-Cs
http://haytom.us/the-cupboard-of-the-yesterdays