quarta-feira, 5 de setembro de 2018

Mediterrâneo

Trechos de O Grande Mar: Uma História Humana Do Mediterrâneo (2011), de David Abulafia.


Quando eclodiu a Primeira Guerra Mundial, toda a linha de cidades, de Ceuta, a oeste, até Porto Said, no leste, estava sujeita à hegemonia ou ao protetorado da Espanha, França, Itália e Reino Unido.

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Os turcos haviam perdido a pouca autoridade que ainda restava no norte da África; os alemães não conseguiram se estabelecer em lugar algum; os austríacos ainda estavam confinados em Trieste e na costa da Dalmácia e não participaram da corrida pelo norte da África; e o Reino Unido dominava as rotas marítimas entre Gibraltar e o Canal de Suez.

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[...] intenção das potências europeias de finalmente desmantelar o Império Otomano. Estava longe de ser um processo coordenado; de fato, a maior parte da iniciativa veio dos próprios territórios otomanos, já que até a Albânia, por tradição bastante leal a Constantinopla, havia se tornado, em 1912, um foco de descontentamento. A Primeira Guerra Mundial apenas acentuara a crescente tendência à separação das províncias otomanas. A adesão da Turquia ao lado alemão não foi de forma alguma inevitável. Enquanto as nuvens de guerra pairavam sobre a Europa, os turcos estiveram muito dispostos a negociar um novo tratado com o Reino Unido, o qual continuavam vendo como seu aliado óbvio para defender-se das tentativas dos russos de abrir um caminho do Mar Branco até o Mar Negro: eles também sabiam que a imprudência dos gregos, que levaram o rei George I da Grécia até Salônica, permanecia uma ameaça à sua capital; a Megáli Idea ou "grande ideia" de [Eleftherios] Venizelos significava nada menos que mudar a capital grega para Constantinopla, em substituição a Atenas. A característica mais extraordinária do Mediterrâneo em agosto de 1914 era a extrema volatilidade de todas as relações políticas: poderia o Reino Unido chegar a um acordo com a Turquia? Ou com a Rússia? O que deveria ser feito com a Grécia? Parecia que o sultão estava sendo atraído para as redes do Kaiser, mas não havia certeza. Em 10 de agosto de 1914, dois navios de guerra alemães foram autorizados a entrar no Chifre de Ouro, e o governo turco concordou que, se fossem perseguidos por navios britânicos, as baterias turcas abririam fogo contra os britânicos. Enquanto isso, na Grã-Bretanha, a Marinha Real Britânica apreendeu dois navios que estavam sendo construídos para a frota otomana, a um custo de 7,5 milhões de libras esterlinas, uma ação que provocou acusações ferozes da imprensa turca contra o Reino Unido.

Um dos que se voltaram decisivamente contra os turcos foi Winston Churchill, à época Primeiro Lorde do Almirantado. O Primeiro-Ministro Asquith disse em 21 de agosto que Churchill era "violentamente antiturco", embora sob sua retórica escondia-se uma inconfundível e audaz política. A vitória sobre o Império Otomano garantiria a segurança dos interesses britânicos, não só no Mediterrâneo, mas também no Oceano Índico, onde a Pérsia começava a emergir como uma importante fonte de petróleo que era enviado através do Canal de Suez. Uma vez que a Rússia entrou na guerra contra a Alemanha, o Dardanelos tornou-se uma passagem fundamental através da qual seria possível fornecer armas para a Rússia, e através da qual a Rússia poderia exportar grãos da Ucrânia, uma troca importante para o equilíbrio de pagamentos. Em março de 1915, temendo uma trégua entre Rússia e Alemanha, o governo britânico concordou que a Rússia pudesse assumir o controle de Constantinopla, do Dardanelos, do sul da Trácia e das ilhas do Egeu mais próximas ao Dardanelos.

A defesa apaixonada de Churchill de uma campanha para forçar a rendição do Dardanelos traduziu-se na mais importante ofensiva naval realizada no Mediterrâneo durante a Grande Guerra. Ao contrário da Segunda Guerra Mundial, na Primeira as ações no interior do Mediterrâneo foram relativamente poucas, e a frota austríaca se aventurou um pouco além do Adriático, que estava determinada a defender. [...] Uma ameaça militar turca ao Canal de Suez foi o suficiente para os britânicos imporem seu próprio candidato a quediva do Egito e chamarem o país de protetorado britânico; a partir desse momento, no Egito e no Chipre, a ficção de que essas terras ainda estavam sob o guarda-chuva do sultão passou para o esquecimento. Embora a superfície do Mediterrâneo permanecesse bastante tranquila, sob a calmaria havia agora a ameaça de um número cada vez maior de submarinos, cuja capacidade de causar danos às marinhas imperiais seria melhor demonstrada no Atlântico. Parte da explicação para essa calma relativa era que navios britânicos e alemães eram necessários para outras tarefas que eram consideradas mais importantes nos mares do norte.

A exceção muito controversa foi a campanha de Galípoli em 1915.

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Os submarinos inimigos ameaçavam os navios mercantes e, no ano de 1917, os ingleses e os franceses já haviam introduzido um eficiente sistema de comboios para acompanhar os navios que navegavam para o leste, partindo de Gibraltar. Em tempos de guerra, e após um século de relativa paz, apareceu um inimigo mais insidioso do que os piratas berberes.

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Do ponto de vista do Mediterrâneo, a Primeira Guerra Mundial foi apenas parte de uma série de crises que marcaram a agonia do Império Otomano: a perda de Chipre, Egito, Líbia e Dodecaneso. Depois a guerra mundial propriamente dita e a perda da Palestina, que passou para o controle britânico, seguida logo depois pelo mandato francês na Síria. Todas essas mudanças tiveram consequências, às vezes drásticas, nas cidades portuárias onde diferentes grupos étnicos e religiosos haviam coexistido durante séculos, especialmente em Salônica, Esmirna, Alexandria e Jafa. Ao final da guerra, os poderes vitoriosos dividiram os feudos do Império Otomano e os repartiram, e até mesmo Constantinopla ficou repleta de soldados britânicos. O sultão ficou politicamente imobilizado, o que deu muitas oportunidades aos radicais turcos, em particular a Mustafa Kemal, que se distinguira lutando em Galípoli.

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Esmirna sobreviveu à guerra e saiu dela fisicamente intacta, com a maioria de sua população a salvo de perseguição, em parte devido ao ceticismo de seu vali, o governador Rahmi Bey. Ele entendia que a prosperidade de sua cidade dependia de sua população heterogênea de gregos, armênios, judeus, turcos e comerciantes europeus. Quando recebeu a ordem de entregar os armênios às autoridades otomanas, o vali deu muito tempo, embora fosse forçado a enviar uma centena de "indesejáveis" para um destino incerto. Os gregos em Esmirna eram todos seguidores fiéis da ortodoxia, que desempenhava um papel significativo no sistema educacional grego e nas festividades públicas.

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Esmirna tinha um excelente porto que continuara a prosperar desde o final do século XVIII, quando a atividade comercial dos outros portos otomanos começou a declinar. [...] os turcos de Esmirna chegaram a comprar chapéus do tipo fez fabricados na França. [...] Mesmo durante a guerra, os "levantinos", como eram conhecidos, conseguiram manter o seu confortável estilo de vida, uma vez que Rahmi Bey não via motivo para tratar os comerciantes estrangeiros como inimigos; a maioria deles nascera em Esmirna e nunca visitara o país que havia emitido seus passaportes.

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[...] o sonho de Venizelos, a restauração dos domínios gregos que se estendiam por todo o mar Egeu e incluíam a costa da Ásia Menor. Segundo Venizelos, este era o verdadeiro coração da civilização grega: a antiga Jônia, cujos habitantes gregos, ele insistia, "constituíam a parte mais pura da raça helênica", e que especulava com otimismo serem 800.000 almas. O Reino Unido valorizava o apoio militar recebido dos gregos em 1919, durante a luta contra os revolucionários bolcheviques na Rússia, e esses combatentes da liberdade sem dúvida mereciam ser recompensados. [...] apresentara evidências convincentes de que os habitantes da cidade não queriam ser governados pela administração grega, já que todos eles, gregos, turcos, judeus e armênios, davam grande valor à harmonia que reinava na cidade, e tudo o que eles queriam era um governo autônomo local.

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[o Alto Comissário dos EUA em Constantinopla, o almirante Mark Lambert] Bristol afirmou que "os armênios são uma raça como os judeus, carecem de qualquer espírito nacional e têm pouco ou nenhum caráter moral", mas ele reservou sua maior ira para os britânicos, uma vez que ele não acreditava que Lloyd George fosse motivado por preocupações morais, mas que se tratava de uma corrida pelo petróleo.

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A família judia mais influente [em Alexandria] era a do barão Felix de Menasce, que ostentava um título nobiliárquico do Império Austro-Húngaro, embora seu avô tivesse nascido no Cairo e adquirido sua fortuna depois de se tornar o banqueiro do quediva, o vice-rei Ismail Paxá; na época de Felix, não apenas os negócios bancários, mas também o comércio, sustentavam a fortuna de sua brilhante família. Menasce fundou escolas e hospitais e até mesmo, depois de fazer inimizade com os líderes da nova e imponente sinagoga da rua Nebi Daniel, fundou sua própria sinagoga e cemitério. Apesar de levar uma vida secular em que a observância dos ritos judaicos mal tinha espaço, sentiu-se profundamente magoado ao saber que seu filho Jean, que estava estudando em Paris, havia se convertido ao catolicismo e recebera o batismo. Pior ainda, em sua opinião: seu filho foi ordenado religioso da ordem dos dominicanos e retornou a Alexandria para pregar. Felix de Menasce era amigo íntimo do líder sionista Chaim Weizmann, que visitou a cidade em março de 1918 e hospedou-se na imponente mansão da família Menasce. Não deixa de ser interessante que o barão Felix tenha usado seus contatos com os árabes da Palestina para tentar negociar um acordo bilateral entre judeus e árabes sobre o futuro da Palestina. No entanto, os britânicos, agora responsáveis pela Palestina, não estavam interessados nessa proposta.

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A vida cotidiana das comunidades estrangeiras girava em torno do comércio e das cafeterias, das quais as mais famosas eram as dos gregos, especialmente o Café Pastroudis. Dentro desses cafés, uma pessoa poderia encontrar membros da intelligentsia grega, por exemplo, o mais consumado dos intelectuais gregos, o poeta Kaváfis. O romancista inglês E.M. Forster, que passou a maior parte da Primeira Guerra Mundial em Alexandria (e se apaixonou por um árabe que era condutor de bonde), difundiu a poesia de Kaváfis, tornando-a conhecida para além de Alexandria. O problema era que a Alexandria à qual a mente do poeta continuava voltando era a antiga, e não a cidade moderna, que para ele não tinha atrativo algum. De todas as cidades portuárias do Mediterrâneo oriental, Alexandria era a que tinha sido menos afetada pelas mudanças políticas que se seguiram à queda dos otomanos, já que a cidade devia o seu renascimento aos colonos estrangeiros atraídos pelas iniciativas dos quedivas, e não dos sultões.

[...] É claro que a Alexandria cosmopolita não era toda a Alexandria, e a vida da elite não era a vida da maioria dos gregos, italianos, judeus e coptas que viviam na costa norte da cidade.

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Alexandria era uma cidade reconstruída há pouco tempo, e não muito longe dela, na Palestina, apareceu outra totalmente nova. Os britânicos encontraram-se nesta região em um ambiente político totalmente diferente do Egito. A revolta árabe durante a Primeira Guerra Mundial, encorajada em parte por T.E. Lawrence, dera aos britânicos alguns valiosos aliados contra os turcos. Simultaneamente, as exigências sionistas de uma pátria judaica intensificaram a tensão entre judeus e árabes na Palestina, especialmente depois que o governo britânico declarou seu apoio à ideia de um estado nacional judaico na Declaração Balfour de 1917.

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[Jafa] era o porto mais importante na Palestina. Para Jerusalém, era a principal saída para o mar, apesar de que navios de maior porte não podiam alcançar a terra e os viajantes eram obrigados a sair e utilizar barcaças. O sultão otomano dotou Jafa de um símbolo eloquente de modernização, construindo a Torre do Relógio, que ainda hoje existe. Às vésperas da Primeira Guerra Mundial, Jafa tinha 40.000 habitantes - muçulmanos, cristãos e judeus (os últimos, cerca de um quarto do total). Então, durante a guerra, os turcos, suspeitando que os habitantes de Jafa estavam em conluio com o exército britânico avançando em direção à área, ordenaram que árabes e judeus evacuassem a cidade; mas nem Jafa nem seus subúrbios judeus foram saqueados pelos turcos (tropas australianas acampadas por um tempo na cidade vazia causaram mais dano), e mais tarde Jafa recuperou sua prosperidade. Os trens que deixavam sua estação viajavam para o norte até Beirute, e para o sul e oeste até o Cairo, e inclusive chegavam a Cartum. A renda de Jafa vinha não só do comércio que passava do Mediterrâneo para o interior, mas também de suas excelentes laranjas, que eram distribuídas pelos territórios otomanos e pela Europa Ocidental. Jafa, e não Jerusalém, era o principal centro cultural da Palestina, e o crescente sentimento de identidade da população árabe refletia-se, por exemplo, no título e no conteúdo de um jornal: Falastin ("Palestina").

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Salônica viu-se aprisionada em meio à desintegração do Império Otomano; a cidade encontrou-se inclusive na linha de frente a partir de 1915, após a chegada de tropas britânicas e francesas que esperavam apoiar os exércitos sérvios que estavam lutando contra a Áustria (uma esperança a que renunciaram em seguida); os Aliados montaram acampamento em Salônica e arredores, uma área que os ingleses chamavam de "a gaiola de pássaros". A presença dos Aliados teve consequências políticas desestabilizadoras: o Reino Unido e a França, dando seu apoio a Venizelos em seu confronto com o rei da Grécia, acentuaram o cisma existente na política grega; em 1916, após a chegada de Venizelos a Salônica, houve combates entre os monarquistas e os venizelistas, enquanto os Aliados capturavam alguns navios da Marinha Real Helênica. Mais tarde, após o grande incêndio de 1917 e o fim da guerra, Salônica atraiu a atenção dos governos turco e grego, devido à grande quantidade de população muçulmana que permaneceu na cidade: em julho de 1923, em Salônica ainda viviam uns 18.000 muçulmanos. Vindos da Turquia, um milhão de cristãos chegaram à Grécia, refugiados da guerra que havia destruído Esmirna, e depois deles, aqueles que foram posteriormente expulsos sob a cláusula da troca de população estabelecida no tratado assinado em Lausanne, 92.000 que seriam instalados em Salônica. A cidade e as áreas rurais ao redor foram esvaziadas de muçulmanos, e os cristãos da Ásia Menor se instalaram nas casas e terras abandonadas pelos turcos, ou em áreas reconstruídas após o incêndio. É irônico que os habitantes de Salônica tenham descoberto que muitos dos refugiados da Anatólia falavam turco; a marca de identidade desses refugiados era a igreja grega, e não o idioma grego, e seus costumes dificilmente diferiam dos costumes dos turcos muçulmanos entre os quais tinham vivido nos últimos novecentos anos.