quarta-feira, 16 de maio de 2018

Don

Trechos de O Don Silencioso (1928), de Mikhail Sholokhov.


Os cossacos levavam, metidas nas camisas, as cópias das orações. Atavam-nas às cruzes, às medalhas que suas mães lhes davam, aos saquinhos que continham terra natal. Mas a morte não os distinguiu dos outros.

Seus cadáveres apodreceram nos campos da Galícia e da Prússia Oriental, nos Cárpatos, na Romênia; ali onde crepitava o incêndio da guerra e onde os cavalos dos cossacos deixaram impressas as marcas de seus cascos.

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- A Alemanha declarou guerra contra nós!

Um leve sussurro, como uma brisa suave que fizesse ondular um campo de trigo maduro, passou pelas fileiras. De repente, o relincho de um cavalo cortou o silêncio. Os olhos estranhados e as bocas abertas voltaram-se para o primeiro esquadrão, de onde partira o relincho.

O coronel seguiu falando. Colocava as palavras na ordem necessária, esforçando-se para acender o sentimento do orgulho nacional. Mas a imagem das bandeiras inimigas inclinando-se diante do vencedor não comovia então o espírito dos cossacos. Clamava neles, com vozes desesperadas, o mais íntimo: suas mulheres, seus filhos, suas noivas, o trigo sem ser colhido, os povoados desertos, a aldeia...

"Dentro de duas horas, na estação!" Isso foi o que cada um reteve do discurso.

As mulheres dos oficiais, agrupadas ali perto, choravam cobrindo o rosto com os lenços. Os cossacos regressaram aos quartéis. O oficial Khoprov levava quase nos braços a sua mulher, uma loira polonesa, grávida.

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A locomotiva, que bufava sob a pressão, dava apitos breves e preparatórios, chamando todos à realidade.

Comboios..., comboios..., inúmeros comboios...

Por todas as artérias do país, Rússia, transtornada, enviava até a fronteira ocidental seu sangue envolto nos casacos cinzas dos soldados...

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O front ainda não havia se estendido como uma enorme serpente de muitos quilômetros de comprimento. Todavia, algumas escaramuças e combates ligeiros de cavalaria estalavam ao longo da fronteira. Nos primeiros dias, depois da declaração de guerra, o Comando Alemão estendeu, como tentáculos, fortes patrulhas de cavalaria, que hostilizavam nossas unidades, chegavam perto dos postos, faziam reconhecimentos e observavam a distribuição de nossas tropas. A 12ª divisão de cavalaria, mandada pelo general Kaledin, marchava diante do 8º Exército de Brusilov. Pela esquerda, tendo passado a fronteira austríaca, avançava a 11ª divisão de cavalaria. Estas unidades, depois de um combate, apoderaram-se de Leinchnuv e de Brody, detendo-se ali. Os austríacos receberam reforços e a cavalaria húngara marchou contra a nossa, rechaçando-a até perto de Brody.

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A cavalaria esmagava o trigo maduro. As marcas das ferraduras dos cavalos cobriram o campo como se uma precipitação de granizo houvesse devastado toda a Galícia. As toscas botas dos soldados pisoteavam as estradas, amassando o limo e esmagando as calçadas como um rolo. Os projéteis sulcaram, como varíola, a face sombria da terra. Pedaços de ferro e de aço, salpicados de sangue humano, jaziam em crateras. Resplendores vermelhos elevavam-se pela noite no horizonte. As vilas, os povoados e os casarios ardiam no mês de agosto quando maduram as frutas e os grãos; o céu, varrido pelo vento, estava cinza e triste, e nos instantes em que o sol aparecia, os soldados sufocavam-se sob o calor opressivo. Agosto terminava. Nos jardins, as folhas começavam a amarelar; o roxo invadia-as pouco a pouco, e de longe parecia que as árvores, lesionadas por golpes de sabre, estivessem cobertas de feridas.

O regimento retirado da linha de fogo preparou-se para um repouso de três dias, recebendo reforços enviados do Don.

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"Desde muito cedo, as forças inimigas, vigorosamente apoiadas pela artilharia, pressionavam sobre nossa infantaria. Vi nossos soldados, creio que dos regimentos de infantaria números 241 e 273, fugirem cheios de pânico, completamente desmoralizados pelo fracasso da ofensiva, pois depois de haver atacado, sem o apoio da artilharia, foram repelidos pelo fogo inimigo, perdendo um terço de seus efetivos. Os hussardos alemães perseguiam-nos. Então entrou em combate nosso regimento, que ocupava uma vantajosa posição de reserva. Eis aqui o que recordo: deixamos o povoado de Tichoitchi às três da madrugada, em meio a uma profunda escuridão. Aspirava-se o olor penetrante dos pinheiros e dos campos de aveia. O regimento avançava dividido em esquadrões. Ficamos à esquerda da estrada e seguimos a campo cruzado. Os cavalos resfolegavam e mordiscavam a aveia coberta de geada. Apesar dos casacos, tínhamos frio. O regimento vagou longamente através do campo, e só uma hora depois um oficial do Estado Maior comunicou algumas ordens ao coronel. O Velho transmitiu a ordem com desagrado, e o regimento girou em ângulo reto até o bosque. Os esquadrões apertavam-se no caminho aberto através das árvores. A batalha se desenrolava, a curta distância, à esquerda. As baterias austríacas estavam em ação e pareciam numerosas. As detonações retumbavam no ar como se os galhos de cheiro forte dos pinheiros ardessem sobre nossas cabeças. Até a saída do sol fomos unicamente espectadores. De repente, ouviu-se um rumor débil, queixoso e triste. Em seguida, fez-se um silêncio cortado pelo claro barulho das metralhadoras. Naquele momento, desordenados pensamentos confundiam-se em meu cérebro. A única coisa que se me representava com lucidez na dor eram os rostos inumeráveis de nossos infantes, que avançavam ao ataque em colunas cerradas. Via com a imaginação suas formas cinzas e curvadas com os gorros cáqui, com suas botas grosseiras, que não lhes chegavam aos joelhos, pisoteando a terra outonal enquanto ouviam distintamente os disparos das metralhadoras austríacas. Dois regimentos foram repelidos e fugiram, abandonando as armas. Um regimento de hussardos perseguia-os de perto. Uma ordem ressoou. Ouvi apenas uma palavra, fria, impassível: 'Marchar...!' Voamos! As orelhas de meu cavalo abaixaram-se e apertaram-se tão fortemente sobre sua cabeça como se nunca mais fossem voltar ao normal."

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"Estamos descansando. A 4ª divisão do segundo corpo de exército está chegando ao front. Estamos no povoado de Kobylino. Esta manhã, as unidades da 11ª divisão de cavalaria e os cossacos do Ural atravessaram o povoado a galope. Os combates desenrolam-se a oeste. Os canhões troam sem cessar. Depois de comer fui ao hospital. Um comboio de feridos acabava de chegar. Os enfermeiros riam entre eles, enquanto descarregavam um carro. Aproximei-me. Um soldado enorme era descido coxeando, mas sorridente, ajudado por um enfermeiro. 'Veja, cossaco' - disse dirigindo-se a mim -: 'meteram-me chumbo no traseiro! Cravaram quatro pedaços em mim.' O enfermeiro perguntou: 'O obus atingiu-o por trás?'. 'É que eu 'avançava' para trás!'

Uma enfermeira saiu de uma barraca. Ao vê-la, invadiu-me um tremor que me obrigou a apoiar-me em uma carroça. A semelhança com Elisavieta era assombrosa: os mesmos olhos, o nariz, os cabelos, o mesmo tipo de semblante... Até a voz recordava a de Elisavieta! Talvez fosse apenas uma ilusão. Estou começando a encontrar algo semelhante entre ela e todas as mulheres...?"

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"Durante vinte e quatro horas deixaram os cavalos a pastar. Agora voltamos ao front. Estou destroçado fisicamente. O corneteiro deu o toque de ordem para encilhar as montarias. De bom grado eu dispararia contra ele neste momento..."

O comandante do esquadrão enviou Grigori Melekhov para estabelecer um enlace com o Estado Maior do regimento. Ao passar pelo local onde o combate acontecera, viu no meio da estrada o cadáver de um cossaco com a cabeça loira apoiada sobre seixos. Grigori apeou-se do cavalo e, tapando o nariz, examinou o morto. Já se emanava dele um cheiro denso e fétido. No bolso da calça encontrou um caderno de notas, um toco de lápis e um porta-moedas. Desabotoou-lhe a cartucheira e observou rapidamente a cara pálida e úmida, que já começava a se decompor. Na testa e no nariz apareciam manchas negras. A poeira cobria uma ruga que lhe cruzava a testa, dando-lhe uma expressão grave e pensativa.

Grigori cobriu-lhe o rosto com um lenço encontrado no bolso do morto, e seguiu seu caminho, voltando-se de vez em quando. No Estado Maior, entregou o caderno aos escreventes. Estes leram-no em voz alta e sorriram diante da vida breve de um desconhecido e o relato de suas paixões terrenas.

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Uma ambulância desembarcou ao mesmo tempo que ele. [...] O médico, gordo, de cara inchada, falava muito desdenhosamente de seus superiores e lançava pragas contra os oficiais do Estado Maior da divisão. Ao falar, retorcia a barba, e os olhos iracundos brilhavam através das lentes com armação de ouro. Dava livre curso a sua amargura biliosa diante daquele interlocutor ocasional.

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Nos escritórios do Estado Maior, tudo estava tranquilo e silencioso, como em todos os escritórios afastados das primeiras linhas. Os escreventes estavam inclinados sobre uma mesa enorme. Um velho capitão, ao telefone de campanha, ria das tolices de um interlocutor invisível.

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- Nas guerras futuras, o papel da cavalaria será nulo. [...]

- Escute, Tersintsev: não é tão fácil substituir o homem pela máquina. Você está exagerando.

- Não falo do homem, mas do cavalo. O cavalo será substituído pelo automóvel e pela motocicleta.

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Tudo nele era incolor e de reserva glacial, inteiramente como o karaitch [Ulmus thomasii], a árvore, dura como ferro, que brota no solo arenoso e severo da região do Don.

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Durante algum tempo marcharam em silêncio pela rua da aldeia destruída. Nos pátios, perto das escassas construções que ficaram de pé, muitos homens iam e vinham, e vários cavaleiros passavam pela rua, no meio da qual fumegava uma cozinha de campanha.

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- A guerra russo-japonesa provocou a revolução de 1905; esta guerra terminará com outra revolução. E não apenas com uma revolução, mas com uma guerra civil. [...]

- Eu sou, antes de tudo, um soldado fiel a meu soberano. Tenho um ataque de nervos só de ver os "camaradas socialistas".

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Os cossacos haviam sofrido uma mudança radical em comparação aos anos precedentes. Inclusive suas canções eram novas, nascidas da guerra, impregnadas de uma sombria melancolia.

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Ao voltar a cabeça, vê o incandescente disco solar no alto do céu, e outro igual em um remanso do rio circundado por arbustos amarelos e emaranhados. Atrás do rio, entre os choupos, estão escondidos os cavalos; à frente, as fileiras alemãs, com as águias de cobre que reluzem sobre seus capacetes. O vento eleva as nuvens azuis das explosões.

[...] em Rava-Ruska, com um pelotão de cossacos, reconquista uma bateria que fora tomada pelos austríacos. No mesmo ponto penetra na retaguarda inimiga, e com uma metralhadora põe em fuga os atacantes.

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Sim, era muito cioso de sua honra de cossaco, buscava ocasiões para demonstrar seu valor sem limites, afrontava o perigo, cometia loucuras, penetrava disfarçado na retaguarda austríaca, inutilizava o arame farpado e sentia que já desaparecera nele definitivamente aquela compaixão pelo homem que o oprimia nos primeiros dias da guerra. O coração endurecera, como um terreno salino durante as épocas de seca, e assim como o terreno salino não absorve água, o coração de Grigori não cedia espaço à compaixão. Com frio desprezo arriscava sua vida e a dos outros; por isso ganhou fama de homem corajoso, e quatro cruzes de São Jorge.

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Marcharam durante dezessete dias. Os cavalos enfraqueciam por falta de forragem. Nas paragens próximas à fronteira, devastadas pela guerra, quase não encontraram habitantes: haviam fugido para o interior da Rússia, ou se escondiam nos bosques.

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"Os acontecimentos são ameaçadores... Todos os soldados estão desmoralizados, cansados, e não querem continuar lutando. Já faz um ano que não existe exército no verdadeiro sentido da palavra. Os soldados transformaram-se em bandos de selvagens delinquentes. Você não pode imaginar a que nível de desagregação chegou nosso exército... Abandonam arbitrariamente as posições, saqueiam e matam os habitantes, assassinam os oficiais. Agora, a resistência a uma ordem militar é muito comum."

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Listnitski, que durante a guerra perdera o hábito de andar pelas grandes cidades, acolhia com satisfação o vozerio da urbe, interrompido por gargalhadas, gritos dos vendedores de jornais, buzinas de automóveis... E embora se sentisse à vontade no meio daquela multidão de gente bem vestida e bem nutrida, pensava: "Como estão todos contentes agora, alegres, felizes, vocês, comerciantes, agentes de Bolsa, empregados de todas as classes!"

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A um quilômetro de distância das ruínas de um povoado arrasado pelo fogo da artilharia durante os combates de junho, algumas trincheiras seguiam em zigue-zague ao longo do bosque. O setor mais próximo a ele estava ocupado por uma companhia especial de cossacos.

[...] estendia-se a estrada principal, destroçada pelos projéteis, e à margem do bosque crescia uma grama açoitada pelas balas, jaziam troncos meio queimados e, destacando-se, o terrapleno de argila avermelhada. Atrás das trincheiras, até mesmo a estrada devastada e as turfeiras recordavam a vida, o trabalho abandonado, enquanto que ali, à beira do bosque, a terra não oferecia ao olho humano algo mais que um amargo cenário de desolação.

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Até fins do inverno, perto de Novocherkask iniciara-se já a guerra civil, enquanto que, Don abaixo, reinava um silêncio de cemitério nas aldeias e nos burgos. Somente nas casas desenrolava-se uma luta doméstica que, de vez em quando, transluzia: os velhos não estavam de acordo com os filhos que haviam voltado do front. Da guerra interna que começara em torno da capital chegavam rumores confusos às terras cossacas, e orientando-se com dificuldade entre as correntes políticas, todos esperavam os acontecimentos.

Até janeiro, também na aldeia de Tatarski a vida desenvolveu-se pacificamente. Os cossacos, de regresso do front, repousavam ao lado de suas mulheres, sem suspeitar que à porta de suas casas bateriam dores e desastres piores que os passados na guerra recente.

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- Não somos nós, mas sim vocês, os culpados de provocar a guerra civil! Por que deram asilo na terra cossaca a certos generais fugitivos? É por isso que os bolcheviques trazem a guerra para o nosso Don silencioso. Não nos submeteremos a vocês!


Mais:
http://www.youtube.com/watch?v=Oau-Au9GpFs
http://en.wikipedia.org/wiki/Russian_Civil_War