domingo, 1 de abril de 2018

O que eu vi

Trechos de O Que Eu Vi, O Que Nós Veremos (1918), de Alberto Santos Dumont.


Nova York, 15 de Maio de 1918

Meu caro Sr. Santos-Dumont

O Aero Club da América envia-nos uma mensagem de congratulações pela inauguração do primeiro Serviço Postal Aéreo neste País. Confiamos em que a Linha Postal Aérea inaugurada entre Nova York, Filadélfia e Washington, que vos leva esta mensagem, será um primeiro passo para uma rede de linhas postais aéreas que cobrirá o mundo e será fator predominante na obra de reconstrução que se seguirá à guerra, quando os exércitos aliados houverem alcançado a vitória gloriosa e final pela causa da liberdade universal.


(Alan R. Hawley)

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Esta carta veio encher de legítima alegria o meu coração que, há já quatro anos, sofre com as notícias da mortandade terrível causada, na Europa, pela aeronáutica. Nós, os fundadores da locomoção aérea no fim do século passado, tínhamos sonhado um futuroso caminho de glória pacífica para esta filha dos nossos desvelos. Lembro-me perfeitamente que naquele fim de século e nos primeiros anos do atual, no Aero Club de França que foi, pode-se dizer "O ninho da aeronáutica" e que era o ponto de reunião de todos os inventores que se ocupavam desta ciência, pouco se falou em guerra; prevíamos que os aeronautas poderiam, talvez, no futuro, servir de esclarecedores para os Estados Maiores dos exércitos, nunca, porém, nos veio à ideia que eles pudessem desempenhar funções destruidoras nos combates. Bastante conheci todos esses sonhadores, centenas dos quais deram a vida pela nossa ideia, para poder agora afirmar que jamais nos passou pela mente, pudessem, no futuro, os nossos sucessores, ser "mandados" a atacar cidades indefesas, cheias de crianças, mulheres e velhos e, o que é mais, atacar hospitais onde a abnegação e o humanitarismo dos rivais reúne, sob o mesmo teto e o mesmo carinho, os feridos e os moribundos dos dois campos. Pois bem, isso se repete há quatro longos anos, e quem o "manda fazer"? - O Kaiser!

Façamos, pois, votos pela vitória dos aliados; triunfem as ideias do Presidente Wilson e se extinga na terra o militarismo prussiano. Assim como com a Polônia atual a sociedade suprimiu os cidadãos armados, suprima as matanças da guerra o desejado Exército das Nações.

Confiante nesse futuro, reconfortou-me a mensagem do presidente do Aero Club da América, em que ouvi falar, de novo, da aeronáutica para fins pacíficos, realização de minhas íntimas ambições, sonho daqueles inventores que só viram no aeroplano um colaborador da felicidade dos homens.

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Recebi felicitações do mundo inteiro; entre elas, porém, uma, certamente a que mais me honrou e para mim a mais preciosa, veio assim endereçada, numa fotografia do maior inventor dos tempos modernos:

"A Santos-Dumont, o Bandeirante dos Ares.
Homenagem de Edison."


Naquela época, em que a aeronáutica acabava de nascer, não era muito ser considerado o seu Bandeirante; hoje, porém, que ela existe e vai decidir a sorte da guerra, me é infinitamente preciosa essa apreciação do homem pelo qual tenho a maior admiração.

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Um largo tempo de percurso nos separa, impedindo o desenvolvimento de proveitosas relações comerciais, reciprocamente interessantes, sobretudo agora que a guerra anormaliza o mercado mundial.

Quem sabe quando uma potência europeia há de ameaçar um estado americano? Quem poderá dizer se na presente guerra não veremos uma potência europeia vir apoderar-se de território sul-americano? A guerra entre os Estados Unidos e um país da Europa é impossível? Uma aliança estreita entre a América do Norte e a do Sul redundaria em uma força formidável.

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A possibilidade da navegação aérea entre os Estados Unidos e a América do Sul é mera especulação fantasiosa?

Intimamente creio que a navegação aérea será utilizada no transporte de correspondência e passageiros entre os dois continentes. Algum de vós demonstrará incredulidade e rirá desta predição.

Sem embargo, faz 12 anos que eu disse que as máquinas aéreas tomariam parte nas futuras guerras e todos, incrédulos, sorriram.

Em 14 de julho de 1903, voei sobre a revista militar de Longchamps. Nela tomavam parte 50.000 soldados e em seus arredores se acotovelavam 200.000 espectadores. Foi a primeira vez que a navegação aérea figurou em uma demonstração militar. Naquela época, predisse que a guerra aérea seria um dos aspectos mais interessantes das futuras campanhas militares. Minha predição foi ridicularizada por alguns militares; outros, entretanto, houve que, desde logo, alcançaram as futuras e imensas utilidades da navegação aérea. Dentre estes, é, para mim, grato recordar o nome do General André, então Ministro da Guerra da França.

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Consideremos o valioso trabalho que o aeroplano tem produzido na atual guerra. A aviação revolucionou a arte da guerra. A cavalaria, que teve grande importância em momentos valiosos, deixou de existir.

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Vemos que hoje se realizam, inteiramente, previsões feita há doze anos, quando a Aeronáutica acabava de nascer.

O aeroplano provou a sua importância suprema nos reconhecimentos. De seu bordo, podem-se locar as trincheiras inimigas, observar os seus movimentos, o transporte de tropas, munições e canhões. De bordo do aeroplano, por meio de telegrafia sem fios, ou de sinais, pode-se dirigir o fogo das forças. Por meio de informações transmitidas pelo telégrafo sem fios, grandes peças de artilharia podem precisar seus tiros contra as trincheiras e baterias inimigas. O avião é de maior valor na defesa das costas do que os cruzadores.

A aviação demonstrou-se a mais eficaz arma de guerra tanto na ofensiva como na defensiva. Desde o início da guerra, os aperfeiçoamentos do aeroplano têm sido maravilhosos. Quem, cinco anos atrás, acreditaria na utilização de aeroplanos para atacar forças inimigas? Que os projéteis de canhões poderiam ser lançados com efeitos mortíferos de alturas inacessíveis ao inimigo?

Desde o começo da guerra, os aparelhos têm melhorado. Têm sido aumentados em dimensões e alguns, hoje, são feitos exclusivamente de aço. Os motores igualmente se têm aperfeiçoado. O mais espantoso acontecimento foi o desenvolvimento dos canhões para aeroplanos. A princípio, o recuo dos canhões, ao atirar, constituía a maior dificuldade relativa aos ataques aéreos. Os constantes e repetidos choques do contragolpe do disparo mesmo de pequenos canhões, logo bambeavam as frágeis estruturas dos aeroplanos assim utilizados, pondo-os fora de uso. Este inconveniente já está sanado. Novos canhões foram inventados, que não produzem contrachoque. Consistem em um tubo do qual são expelidos dois projéteis, por uma única explosão. No momento de atirar, um dos projéteis, uma mortífera bala de aço, desce velozmente em direção ao inimigo, e o outro, de areia, é descarregado no sentido contrário; dessas duas descargas simultâneas resulta a ausência de contrachoque. Imaginai o poder deste terrível fogo lançado de um aeroplano! Se o aeroplano, Srs., se tem mostrado tão útil na guerra, quanto mais não o deverá ser em tempos de paz?

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Melhorado pelas necessidades e exigências da guerra, o aeroplano - desviado dos fins destruidores - provará o seu incalculável valor como instrumento dos objetivos úteis da raça humana. No momento atual é bem possível que qualquer dos atuais grandes aparelhos possa fazer viagens de Nova York a Valparaíso, ou de Washington ao Rio de Janeiro. Um ponto de abastecimento de combustível poderia ser facilmente instalado em cada 600 milhas de percurso.

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Todos os países europeus são velhos inimigos e aqui no Novo Mundo devemos ser todos amigos. Devemos estar habilitados a intimidar qualquer potência europeia que pretenda guerra contra um de nós, não pelos canhões, dos quais temos tão pequeno número, mas sim pela força da nossa união. No caso de uma guerra contra uma potência europeia, nem os Estados Unidos, nem, tampouco, qualquer dos maiores países sul-americanos, nas atuais condições, poderia convenientemente proteger suas extensas costas. Seria irrealizável a proteção das costas brasileira e argentina por uma esquadra. Unicamente uma esquadra de grandes aeroplanos, voado a 200 quilômetros por hora, poderia patrulhar estas longas costas. Aeroplanos de reconhecimento poderão descobrir a aproximação da esquadra hostil e prevenir os seus navios de guerra para a luta.

Estarei eu falando de coisas irrealizáveis? Lembrai-vos de que há dez anos ninguém me tomou a sério. Agora temos ocasião de observar o que tem feito o aeroplano na Europa, fazendo reconhecimentos, dirigindo batalhas, movimento de tropas, atacando o inimigo e defendendo as costas.

A falta de comunicação nos antigos tempos foi a origem básica de uma Europa desunida e em guerra. Esperemos que a navegação aérea traga a união permanente e a amizade entre as Américas.


Mais:
Asas
http://docs.google.com/file/d/0BxwrrqPyqsnIeGZCRFZISUFyb0E