quarta-feira, 4 de abril de 2018

Chaplin

Trechos de Minha Vida (1964), de Charles Chaplin.


No clube reinava uma camaradagem que nem mesmo a eclosão da Primeira Guerra Mundial conseguiu perturbar. Todos achavam que aquilo terminaria em seis meses. A previsão de Lord Kitchener de que duraria quatro anos foi considerada ridícula. Muitos ficaram bastante satisfeitos por a guerra ter sido declarada, para que pudéssemos dar uma lição aos alemães. Não havia a menor dúvida sobre o resultado final; os ingleses e os franceses os liquidariam em seis meses. A contenda não havia atingido seu clímax e a Califórnia estava muito longe do front.

Naquela época, [Mack] Sennett começou a falar sobre a renovação do meu contrato e queria saber minhas condições. Eu sabia de alguma forma a extensão da minha popularidade, mas também sabia o quão era efêmera, e pensava que, no passo que eu estava indo, estaria esgotado dentro de um ano; então decidi aproveitar enquanto podia.

- Quero mil dólares por semana! - eu disse deliberadamente.

Sennett ficou estarrecido.

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Durante a guerra, encontrei-o no Ritz Hotel em Nova York. Cumprimentei-o de maneira efusiva. Perguntei-lhe se iria dar um concerto. Com uma solenidade pontifícia, ele respondeu: "Não dou concertos quando estou ao serviço do meu país."

Paderewski chegou a ser primeiro-ministro da Polônia; mas eu opinava como Clemenceau, o qual, durante uma das reuniões do fracassado Tratado de Versalhes, disse a ele: "Como é que um grande artista como você se rebaixou a ponto de se converter em político?"

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Seis meses depois, Nijinski ficou louco. Ele já mostrava sinais de loucura naquela tarde, no seu camarim, quando fez o público esperar. Eu fora testemunha dos primeiros impulsos de uma mente sensível à medida que se afastava de um mundo brutal e destruído pela guerra, para entrar no outro mundo de seus sonhos.

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Embora sendo um monumento à respeitabilidade inglesa, Elinor [Glyn] escandalizou o mundo eduardiano com o seu romance Três Semanas. O protagonista, Paul, é um jovem inglês de boa família que tem um caso amoroso com uma rainha, a última aventura desta antes de se casar com o velho rei. O príncipe herdeiro - um bebê - é, claramente, filho de Paul, ainda que isso seja um segredo. Enquanto esperávamos que os outros convidados chegassem, Elinor me levou a uma outra sala, onde havia retratos de jovens oficiais ingleses da Primeira Guerra Mundial. Com um amplo gesto, disse-me, apontando para eles: "Estes são todos os meus Pauls."

Acreditava com fervor no ocultismo.

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Quando a Primeira Guerra Mundial começou, todos achavam que não duraria mais de quatro meses; que a ciência da guerra moderna cobraria um tributo tão assustador de vidas que a humanidade exigiria a cessação de tal barbárie. Mas estávamos equivocados. Vimo-nos envolvidos em uma avalanche de destruição demente e massacres brutais que duraram quatro anos, perante o espanto da humanidade. Havíamos provocado uma hemorragia de magnitude global e não conseguimos detê-la. Centenas de milhares de seres humanos lutavam e morriam, e as pessoas começaram a se perguntar como e por que a guerra havia começado. As explicações não resultaram muito claras. Alguns disseram que era devido ao assassinato de um arquiduque; mas tornou-se difícil acreditar que tal conflagração mundial começasse por esse motivo. As pessoas precisavam de uma explicação mais realista. Então disseram que era uma guerra para garantir a democracia no mundo. Embora alguns tiveram que lutar menos do que outros, as baixas foram horrivelmente democráticas. À medida que milhões de vidas caíam ceifadas, começou a surgir a palavra "democracia". Como consequência, tronos entraram em colapso, criaram-se repúblicas e toda a face da Europa foi transformada.

Mas em 1915 os Estados Unidos alegaram que eram "orgulhosos demais para combater". Isso inspirou no país a canção I Didn't Raise My Boy To Be A Soldier. Essa canção caiu muito bem entre o público, até que o Lusitânia foi torpedeado, o que proporcionou a inspiração para uma nova canção: Over There, e muitos outros refrões sedutores. Até o afundamento do Lusitânia, o peso da guerra europeia quase não fora sentido na Califórnia. Não havia escassez de produtos, nem racionamento. Organizavam-se festas em jardins e bailes beneficentes da Cruz Vermelha, que eram uma desculpa para celebrar reuniões mundanas. Em um evento de gala, uma dama doou vinte mil dólares à Cruz Vermelha, com o objetivo de sentar-se ao meu lado em um jantar muito seleto. Mas, com o passar do tempo, a terrível realidade da guerra começou a ser sentida em todos os lares.

Em 1918, os Estados Unidos já tinham lançado duas emissões de Títulos da Liberdade, e então chamaram Mary Pickford, Douglas Fairbanks e eu para iniciarmos oficialmente a terceira campanha para Títulos da Liberdade em Washington.

Eu estava quase terminando meu primeiro filme para a First National, Vida De Cachorro. E, como me comprometi por contrato a estreá-lo ao mesmo tempo em que essa emissão de títulos começasse, passei três dias e três noites montando o filme. Quando ficou pronto, peguei o trem; eu estava exausto e dormi por dois dias. Quando chegamos, nós três começamos a escrever nossos discursos. Como eu nunca havia pronunciado um discurso sério até então, eu estava nervoso, de modo que Doug sugeriu que eu ensaiasse com a multidão que nos esperava nas estações. Ao parar em algum lugar, um amontoado de gente reunia-se ao lado da janela do vagão. De lá, Doug apresentava Mary, que discursava brevemente; logo eu me apresentava, mas, enquanto eu começava a falar, o trem se preparava para partir, e à medida que se afastava da multidão eu me tornava mais eloquente e intenso, e minha confiança aumentava quando aquela multidão ia diminuindo cada vez mais com a distância.

Em Washington, desfilamos pelas ruas como potentados, até chegar ao campo de futebol, onde pronunciaríamos nossa arenga inicial.

O palco dos oradores era feito de madeira tosca, recoberto de bandeiras. Entre os representantes do Exército e da Marinha estava um jovem alto e bonito, que estava ao meu lado, e começamos a conversar. Eu disse a ele que nunca tinha pronunciado um discurso e que eu estava muito inquieto.

- Não há com o que se preocupar - ele disse calmamente -. Fale com eles de maneira simples, com naturalidade. Diga-lhes para comprarem Títulos da Liberdade. Não tente ser engraçado.

- Não se preocupe! - eu disse com ironia.

Em seguida ouvi que me apresentavam. Então, ao estilo Fairbanks, subi ao palco. E sem uma única pausa comecei algo como uma metralhadora verbal, quase sem tomar fôlego: "Os alemães estão às suas portas! Devemos detê-los! E vamos detê-los se vocês comprarem Títulos da Liberdade! Não esqueçam que cada título que vocês adquirirem salvará a vida de um soldado, devolverá um filho a uma mãe! Façamos com que esta guerra termine em uma rápida vitória!" Eu falava com tanta rapidez e excitação que escorreguei no palco, agarrei Marie Dressler e caí com ela em cima daquele jovem alto e bonito, que resultava
ser o subsecretário da Marinha, Franklin D. Roosevelt.

Após a cerimônia oficial, estava programado que nos encontraríamos com o presidente Wilson na Casa Branca. Nervosos e emocionados, conduziram-nos à Sala Verde. De repente, a porta se abriu e apareceu um secretário, que disse sucintamente: "Ponham-se em linha, por favor, e deem um passo à frente." Então o presidente entrou.

Mary Pickford tomou a iniciativa.

- O interesse do público tem sido muito encorajador, senhor presidente, e estou certa de que a iniciativa será um grande sucesso.

- Foi e será... - murmurei, muito pasmado.

O presidente olhou para mim, incrédulo, e depois contou uma anedota senatorial sobre um ministro do gabinete que gostava do seu whisky. Todos nós rimos educadamente, e então ele saiu.

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No sul, visitamos vários campos de treinamento militar e vimos muitos rostos tristes e amargos. O destaque de nossa turnê foi a apresentação final em Nova York, em Wall Street, ao lado do Departamento do Tesouro, onde Mary, Douglas e eu vendemos títulos com valor de mais de dois milhões de dólares.

Nova York estava deprimente. Notava-se em toda parte a marca do militarismo. Não havia forma de evitá-la. Os Estados Unidos viviam sob uma regime de obediência, e qualquer outro pensamento era secundário à religião da guerra. A falsa alegria da música de bandas militares ao longo da Madison Avenue soava lúgubre e também deprimente quando eu a ouvia da janela do décimo segundo andar do hotel, arrastando-se a caminho de Battery para embarcar.

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Voltei para Los Angeles. Estabeleci-me novamente no Athletic Club e comecei a pensar em meu trabalho. Vida De Cachorro custou-me mais tempo e dinheiro do que o previsto. No entanto, eu não me preocupei, porque quando meu contrato terminasse, um novo filme compensaria essa despesa. Em vez disso, eu estava preocupado em encontrar uma ideia para esse segundo filme. Então ocorreu-me: "Por que não fazer uma comédia inspirada na guerra?" Comuniquei meus projetos a vários amigos, mas eles sacudiram negativamente a cabeça. [Cecil B.] DeMille me disse: "Neste momento, é perigoso brincar sobre a guerra." Perigosa ou não, a ideia me atraiu.

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Carlitos Nas Trincheiras foi pensado inicialmente como um filme de cinco rolos. O começo deveria ser "vida no lar"; a parte central, a "guerra"; e o fim, "o banquete", em que apareceriam todas as cabeças coroadas da Europa comemorando meu ato heroico de capturar o kaiser. E, é claro, no final eu acordaria do sonho.

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Carlitos Nas Trincheiras foi rodado no meio de uma insuportável onda de calor. Trabalhar dentro de uma fantasia de árvore (como fiz em uma das cenas) foi tudo menos agradável.

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Desde o início, Fairbanks começou a cair na gargalhada. Só parava quando tinha ataques de tosse. O adorável Douglas foi meu espectador mais entusiasmado. Quando terminou e saímos para a luz do dia, seus olhos estavam úmidos de tanto dar risada.

- É realmente engraçado? - perguntei, incrédulo.

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Carlitos Nas Trincheiras obteve um grande sucesso e foi um dos filmes preferidos pelos soldados durante a guerra; mas também naquela ocasião gastei mais tempo do que eu tinha previsto, e me custou ainda mais dinheiro do que Vida De Cachorro.

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A guerra era horrível; a luta sem trégua e a destruição prevaleciam na Europa. Nos campos de treinamento, ensinavam aos recrutas como atacar com a baioneta e, uivando, avançar e enfiá-la no ventre do inimigo. E, se a lâmina se enganchasse na virilha, a atirar na barriga para desimpedi-la. A histeria coletiva era desmedida. Os desertores eram condenados a cinco anos. Todo homem tinha que portar seu cartão de identidade militar. Vestir roupas civis era uma vergonha, já que a maioria dos jovens estava de uniforme e, quando não os usavam, podia-se pedir sua documentação. As mulheres davam-lhes uma pena branca.

Alguns jornais me censuraram por não ir à guerra. Outros vieram em minha defesa, alegando que meus filmes eram mais necessários do que os serviços que eu poderia fazer como soldado.

O Exército dos Estados Unidos, resplandecente e vigoroso, quando chegou à França queria entrar imediatamente em ação, contra os conselhos razoáveis dos ingleses e franceses, que vinham de três anos de sangrentos combates. Lançaram-se às batalhas com valor e audácia, mas ao custo de centenas de milhares de baixas. Durante várias semanas as notícias foram deprimentes; publicavam-se longas listas dos americanos mortos e feridos. Depois, houve um período de calma e, durante alguns meses, os americanos, como o resto dos Aliados, permaneceram nas trincheiras no meio da lama e do sangue.

Por fim, os Aliados começaram a se mover. No mapa, nossas bandeiras avançavam. Diariamente, as multidões observavam com ansiedade aquelas pequenas bandeiras. Então as tropas conseguiram romper as defesas, embora ao custo de um tremendo sacrifício. Então apareceram grandes manchetes: O KAISER FUGIU PARA A HOLANDA! E mais tarde, toda a primeira página com apenas estas palavras: FOI ASSINADO O ARMISTÍCIO! Eu estava no meu quarto do Athletic Club quando chegou a notícia. Nas ruas começou-se a ouvir um delirante alvoroço: as buzinas dos carros, as sirenes das fábricas e as trombetas começaram a soar, e seguiram soando durante todo o dia e toda a noite. O mundo enlouqueceu de alegria, cantando, dançando, abraçando-se, beijando-se. Finalmente chegava a paz!

Viver sem guerra era como sair de repente do cárcere. Havíamos estado submetidos a uma disciplina tão dura que, durante vários meses, continuamos a ter medo de sair para a rua sem nossos cartões de identidade militares. No entanto, os Aliados haviam vencido, independentemente do que isso significasse. Mas não tínhamos certeza se conquistáramos a paz. Apenas uma coisa era certa: que a civilização, tal como a conhecíamos, já não seria mais a mesma; uma era desapareceu, e uma certa decência elementar também desapareceu, embora a decência não tivesse sido abundante em época alguma.


Mais:
A Brief Life
http://docs.google.com/file/d/0BxwrrqPyqsnITzR0RjU5cnNxdXc
http://www.youtube.com/watch?v=KlIXcaZ70Xs