quarta-feira, 18 de abril de 2018

Crise

Trechos de A Crise Da Social-Democracia (1915), de Rosa Luxemburgo.


A cena mudou completamente. A marcha de seis semanas sobre Paris tomou as proporções de uma tragédia mundial; a enorme matança tornou-se um negócio quotidiano, esgotante e monótono, sem que as perspectivas de solução tivessem feito qualquer progresso. A política burguesa está paralisada, presa na sua própria armadilha: já não pode libertar-se dos espíritos que tem evocado.

Acabada a embriaguez. Acabado o alarido patriótico nas ruas, a caça aos automóveis de ouro; os sucessivos telegramas falsos; não mais se fala de nascentes contaminadas por bacilos da cólera, de estudantes russos que lançam bombas sobre todas as pontes do caminho de ferro de Berlim, de franceses sobrevoando Nuremberg; terminadas as evacuações de uma turba, que em toda a parte pressentia espiões; acabada a balbúrdia tumultuosa nos cafés, onde se ensurdecia com a música e cânticos patrióticos em grandes vagas; os habitantes de uma cidade inteira transformados em populaça, prontos a denunciar não importa quem, a importunar as mulheres, a gritar: Hurrah! e a atingir o paroxismo do delírio ao lançarem loucos boatos; um ambiente de crime ritual, uma atmosfera de destruição total, em que o único representante da dignidade humana era o agente policial à esquina da rua.

O espetáculo terminou. Há muito tempo que os eruditos alemães, esses "lêmures vacilantes", reentraram ao primeiro assobio no seu covil. A alegria esfuziante das raparigas correndo ao longo dos cais já não acompanha os comboios de reservistas e estes não mais saúdam a multidão debruçando-se das janelas da sua carruagem, com um sorriso alegre nos lábios; silenciosos, com o seu cartão sob o braço, caminham a passos curtos pelas ruas onde uma multidão de rostos tristes se entrega às suas ocupações quotidianas.

No ambiente de desilusão destes dias enevoados, ouve-se um outro coro: o grito rouco dos abutres e das hienas no campo de batalha. Dez mil tendas, garantia standard! Cem mil quilos de toucinho, de cacau em pó, de derivados do café, entregues imediatamente contra pagamento a pronto! Granadas, tornos, cartucheiras, anúncios de casamento com viúvas de soldados caídos na frente, cinturões de cabedal, intermediários que vos procuram, contratos com o exército - não se aceitam senão ofertas sérias! - A carne para canhão, embarcada em agosto e setembro, inchada de patriotismo, apodrece agora na Bélgica, nos Vosges, na Masúria, nos cemitérios onde vêm crescer em abundância os benefícios da guerra. Trata-se de enceleirar rapidamente esta colheita. Sobre o mar destes trigos, estendem-se milhares de mãos, ávidas de arrebatar o seu quinhão.

Sobre as ruínas frutificam os negócios. As cidades transformam-se em montões de escombros, as aldeias em cemitérios, regiões inteiras em desertos, populações completas em grupos de mendigos, igrejas em estrebarias. O direito dos povos, os tratados, as alianças, as mais sagradas palavras, a autoridade suprema, tudo é despedaçado. Não interessa qual o soberano que, pela graça de Deus, trate o seu primo de imbecil, covarde e perjuro, se este for um adversário, não interessa qual o diplomata que na presença do seu colega o qualifique de canalha infame, nem qual o governo que afirme que o governo oposto arrasta o povo à sua própria perda, cada um levando o outro ao desprezo público; e o alvoroço da fome rebenta em Veneza, Lisboa, Moscou, Singapura; é a peste que alastra pela Rússia, por toda a parte a angústia e o desespero.

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E no meio deste sabbat de feitiçaria ocorreu uma catástrofe com repercussões mundiais: a capitulação da social-democracia internacional. Seria para o proletariado o cúmulo da loucura se vivesse de ilusões ou encobrisse esta catástrofe: era o pior que lhe podia acontecer.

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Na atual guerra mundial, o proletariado caiu mais baixo do que nunca. Aí reside uma desgraça para toda a humanidade. Mas isso só seria o fim do socialismo se o proletariado internacional se recusasse a medir a profundidade da sua queda e a aproveitar os ensinamentos que ela comporta.

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[...] sobre a questão da guerra, a posição da social-democracia alemã era sempre decisiva. "Para nós, alemães, isto é inaceitável", vulgarmente era suficiente para decidir a orientação da Internacional. Com uma confiança cega, esta submetia-se às diretrizes da poderosa e tão admirada social-democracia alemã: era o orgulho de todo socialista e o terror das classes dirigentes de todos os países.

E a que é que assistimos, na Alemanha, na altura da grande prova histórica? À queda mais catastrófica, à derrocada mais espantosa. Em parte alguma a organização do proletariado foi tão completamente submetida ao serviço do imperialismo, em parte alguma o estado de sítio foi suportado com tão fraca resistência, em parte alguma a imprensa foi tão restringida, a opinião pública tão sufocada, a luta de classe econômica e política da classe operária tão duramente abandonada, como na Alemanha. Ora, a social-democracia alemã não era somente a vanguarda mais forte da Internacional, mas também o seu cérebro.

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Uma coisa é certa, a guerra mundial representa uma viragem para o mundo. É loucura insensata imaginar que nada mais temos a fazer do que deixar passar a guerra, tal como a lebre espera o fim da tempestade sob um silvado, para em seguida retomar alegremente o seu passo normal. A guerra mundial modificou as condições da nossa luta e transformou a nós próprios radicalmente. Não que as leis fundamentais da evolução capitalista, o combate entre o capital e o trabalho, devam conhecer um desvio ou uma moderação. Já agora, em plena guerra, caem as máscaras e as antigas feições, que conhecemos tão bem, olham-nos com escárnio. Mas, depois da erupção do vulcão imperialista, o ritmo da evolução recebeu tão violento impulso, que comparado aos conflitos que surgirão no meio da sociedade e à imensidade de tarefas que esperam o proletariado socialista num futuro imediato, toda a história do movimento operário parece não ter sido até agora mais do que um período paradisíaco.

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"Então acontecerá a catástrofe. Então soará na Europa a hora da marcha geral que conduzirá para o campo de batalha 16 ou 18 milhões de homens, a flor de diversas nações, equipados com os melhores instrumentos de morte e atirados uns contra os outros. Mas, na minha opinião, por detrás da grande marcha geral, existe a grande devastação. A culpa não é nossa: é deles. Impelem os acontecimentos ao máximo. Querem provocar uma catástrofe. Colherão aquilo que semearam. O crepúsculo dos deuses do mundo burguês aproxima-se! Estejam certos disso, está a chegar."

Eis o que declarava [August] Bebel, o orador da nossa facção, durante o debate sobre Marrocos no Reichstag.

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No Manual para os Eleitores Sociais-Democratas de 1911, destinado às últimas eleições parlamentares, pode-se ler, na página 42, a propósito da temida guerra:

"[...] Aquele que examina calmamente a possibilidade de uma grande guerra europeia, só poderá chegar a esta conclusão: A próxima guerra europeia será um jogo em que vale tudo, sem precedentes na história mundial, será, segundo todas as probabilidades, a última guerra."

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É a 4 de agosto de 1914 que sobrevém este inaudito acontecimento, sem precedentes.

Deveria ter acontecido assim? Um acontecimento de tanta importância não é com certeza fruto do acaso. Deve resultar de profundas e extensas causas objetivas. No entanto, estas causas também podem residir nos erros da social-democracia, que era o guia do proletariado, na fraqueza da nossa vontade de luta, da nossa coragem, da nossa convicção.

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Friedrich Engels disse um dia: "A sociedade burguesa enfrenta um dilema: ou passagem ao socialismo ou retorno à barbárie." Mas então que significa um "retorno à barbárie" do grau de civilização que conhecemos hoje na Europa? Até agora lemos estas palavras sem refletirmos, e repetimo-las sem nelas pressentirmos a terrível gravidade. Lancemos um olhar à nossa volta neste preciso momento, e compreenderemos o que significa um retorno da sociedade burguesa à barbárie. O triunfo do imperialismo remata a destruição da civilização - esporadicamente durante uma guerra moderna, e definitivamente se o período das guerras mundiais, que agora se inicia, seguir sem entraves até às suas últimas consequências. É exatamente o que Friedrich Engels tinha previsto, uma geração antes de nós, há já quarenta anos.

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"Agora estamos perante a realidade brutal da guerra. O pavor de uma invasão inimiga ameaça-nos. Hoje não temos de decidir a favor ou contra a guerra, mas sim sobre o problema dos meios requeridos com vista à defesa do país. A futura liberdade do nosso povo depende em parte, senão inteiramente, de uma vitória do despotismo russo, que se cobriu de sangue dos melhores homens do seu próprio povo. Trata-se de dissipar esta ameaça, de garantir a civilização e independência do nosso país. Aplicamos um princípio sobre o qual sempre insistimos: não abandonamos a nossa pátria na iminência do perigo. Nisto sentimo-nos de acordo com a Internacional, que sempre reconheceu o direito de todos os povos à independência nacional e à autodefesa, tal como, de acordo com ela, condenamos toda guerra de conquista. Inspirados nestes princípios, votamos os créditos de guerra pedidos."

Por esta declaração, o grupo parlamentar dava em 4 de agosto a palavra de ordem que determinaria a atitude dos operários alemães durante a guerra. Pátria em perigo, defesa nacional, guerra popular pela existência, civilização e liberdade - tais eram as palavras-chave que propunha a representação parlamentar da social-democracia. Todo o resto daí resultaria como simples consequência: a posição da imprensa do partido e da imprensa sindical, o tumulto patriótico das massas, a Sagrada União, a súbita dissolução da Internacional, tudo isto não era mais do que a consequência inevitável da primeira orientação que foi adotada no Reichstag.

Se na realidade estão em jogo a existência da nação e a liberdade, se esta só pode ser defendida pela arma assassina, se a guerra é a causa santa do povo - então tudo é claro e evidente, então torna-se necessário aceitá-la em massa. Quem quer o fim deve querer os meios. A guerra é um assassinato metódico, organizado, gigantesco. Para os homens normalmente formados, em primeiro lugar é necessário, produzir uma embriaguez apropriada com vista a um assassinato sistemático. É desde sempre o método habitual dos beligerantes. A bestialidade dos pensamentos e dos sentimentos deve corresponder à bestialidade da prática, ela deve preparar e acompanhar a prática. Desde então, o Wahre Jakob de 28 de agosto com a imagem do "batedor" alemão, os folhetos do partido em Chemnitz, Hambourg, Kiel, Francfort e Cobourg, entre outras, com a sua patriótica excitação em verso e prosa, distribuiu o narcótico espiritual de que o proletariado tinha necessidade, uma vez que não podia mais salvaguardar a sua existência e a sua liberdade senão cravando a arma assassina no peito dos seus irmãos russos, franceses e ingleses. Esses folhetos instigadores são, no entanto, mais lógicos consigo mesmos do que aqueles que querem indiferenciar o dia e a noite, conciliar a guerra com a humanidade, o assassínio com o amor fraternal, a aprovação dos meios necessários à guerra com a fraternidade socialista dos povos.

[...] Pela primeira vez no movimento operário moderno há um fosso entre os imperativos da solidariedade internacional dos proletários e os interesses de liberdade e existência nacional dos povos, pela primeira vez descobrimos que a independência e a liberdade das nações exige imperiosamente que os proletários dos diferentes países se massacrem e se exterminem uns aos outros. Até agora, vivíamos com a convicção de que os interesses das nações e os interesses de classe do proletariado coincidiam harmoniosamente, que eram idênticos, que não se podiam de forma alguma opor. Era a base da nossa teoria e da nossa praxis, era o espírito que animava a nossa agitação por entre as massas populares. Seríamos nós, neste ponto essencial da nossa concepção do mundo, vítimas de um engano monstruoso?

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Desde que a chamada opinião pública passou a desempenhar um papel nos cálculos dos governos, acaso se viu alguma guerra em que cada partido beligerante não desembainhasse a espada com o coração pesado, unicamente para a defesa da pátria e da sua causa justa, diante da indigna invasão do seu adversário? Esta lenda pertence à arte da guerra tal como a pólvora e o chumbo. O jogo é velho. O único elemento novo é que um partido social-democrata tenha entrado neste jogo.


Mais:
http://docs.google.com/file/d/0BxwrrqPyqsnIbHJ0WC1jU2EtUGs