quarta-feira, 25 de abril de 2018

Fala, memória

Trechos de Fala, Memória (1967), de Vladimir Nabokov.


A Primeira Guerra Mundial começou. Uma multidão de patriotas e meu tio Ruka apedrejaram a embaixada alemã. Petersburgo afundou-se em Petrogrado contra todas as regras de prioridade de nomenclatura. Beethoven acabou sendo holandês. Os documentários filmados mostravam fotogênicas explosões, os espasmos de um canhão, Poincaré com suas perneiras de couro, desolados lamaçais, o pobre pequeno tsarevich em farda circassiana com adaga e balas, suas altas irmãs mal vestidas, longos trens lotados de tropas. Minha mãe instalou um hospital particular para soldados feridos. Lembro-me dela, no elegante uniforme branco e cinza de enfermeira que ela abominava, denunciando com as mesmas lágrimas infantis a impenetrável submissão daqueles camponeses mutilados e a ineficiência da compaixão de meio expediente. E ainda mais tarde, quando no exílio, revendo o passado, ela muitas vezes se acusava (injustamente, como vejo hoje) de ter sido menos afetada pela miséria do homem do que pela carga emocional que o homem despeja sobre a natureza inocente - árvores velhas, cavalos velhos, cachorros velhos.

Sua predileção por cachorros dachshund marrons intrigava minha tias críticas. Nos álbuns de família que ilustram seus anos de juventude, era difícil ver um grupo em que não houvesse um desses animais.

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Minha velha (desde 1917) briga com a ditadura soviética não tem qualquer relação com questões de propriedade. É total o meu desprezo pelo emigrado que "odeia os vermelhos" porque eles "roubaram" seu dinheiro e sua terra. A nostalgia que venho alimentando todos esses anos é uma sensação hipertrofiada de infância perdida, não de tristeza por dinheiro perdido.

E finalmente: reservo a mim mesmo o direito de sentir saudade de um nicho ecológico.

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O então grande e glamoroso Nord-Express (nunca mais foi o mesmo depois da Primeira Guerra Mundial, quando seu marrom elegante se transformou num azul nouveau-riche), consistia exclusivamente desses vagões internacionais e rodava apenas duas vezes por semana ligando São Petersburgo a Paris. Eu deveria dizer diretamente a Paris, se os passageiros não fossem obrigados a trocar para um trem superficialmente similar na fronteira russo-alemã (Verzhbolovo-Eydtkuhnen), onde a bitola russa larga e preguiçosa de um metro e cinquenta e três era substituída pela bitola padrão da Europa de um metro e quarenta e três, e o carvão sucedia a lenha de bétula.

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Ele [Lenski] se consolou, no entanto, com a compra de outra coisa quente: o projeto do que ele chamou de "electroplano", que parecia um velho Blériot, mas tinha - e aqui o cito novamente - um motor "voltaico". Só voou em seus sonhos - e nos meus. Durante a guerra, ele lançou uma milagrosa comida para cavalos na forma de bolos chatos parecidos com galettes (ele mordiscava um e oferecia pedacinhos a seus amigos), mas a maior parte dos cavalos continuava preferindo a aveia. Traficou uma porção de outras patentes, algumas malucas, e estava com grandes dívidas quando herdou uma pequena fortuna com a morte do sogro. Isso deve ter sido no começo de 1918, porque, eu me lembro, ele nos escreveu (estávamos ilhados na região de Yalta) nos oferecendo dinheiro e todo tipo de ajuda. A herança ele prontamente investiu num parque de diversões no litoral da Crimeia oriental e não poupou esforços para conseguir uma boa orquestra, construir um rinque de patinação com alguma madeira especial e instalar fontes e cascatas iluminadas por lâmpadas vermelhas e verdes. Em 1919, os bolcheviques chegaram, apagaram as luzes e Lenski fugiu para a França; a última notícia que tive dele foi nos anos 1920, quando disse estar ganhando a vida precariamente na Riviera, pintando quadros em conchas e pedras.

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Ele foi convocado logo depois do começo da Primeira Guerra Mundial e mandado para o front. Acabou sendo ligado ao estado-maior em São Petersburgo. A ética militar o impediu de tomar parte ativa no primeiro tumulto da revolução liberal em março de 1917. Desde o começo, a História parecia ansiosa por privá-lo de uma oportunidade plena de revelar seus grandes dotes de estadista numa república russa de tipo ocidental. Em 1917, durante o estágio inicial do Governo Provisório - ou seja, enquanto os kadets ainda participavam dele -, ocupou no conselho de ministros a posição responsável, mas inconspícua, de secretário executivo. No inverno de 1917-18 foi eleito para a Assembleia Constituinte, só para ser preso por enérgicos marinheiros bolcheviques quando ela foi desfeita. A Revolução de Novembro já havia entrado em seu rumo sangrento, sua polícia já estava ativa, mas aquele tempo o caos de ordens e contraordens às vezes ficava do nosso lado: meu pai seguiu por um escuro corredor, viu uma porta no fim, saiu para uma rua lateral e foi para a Crimeia com uma mochila que tinha pedido que seu valete Osip lhe trouxesse num canto escondido, e um pacote de sanduíches de caviar que o bom Nikolay Andreievich, nosso cozinheiro, acrescentou por vontade própria.

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A própria essência da liberdade de verão - sem escola e desurbanizada - permanece ligada em minha mente ao extravagante ruído do motor que o silenciador aberto emitia na estrada longa e solitária. Quando, no segundo ano da Primeira Guerra Mundial, Pirogov foi mobilizado, quem o substituiu foi o moreno Tsiganov de olhos ferozes, um antigo ás de corrida que tinha participado de diversas competições tanto na Rússia quanto no exterior e tivera várias costelas quebradas num sério acidente na Bélgica. Mais tarde, em algum momento de 1917, logo depois que meu pai renunciou ao gabinete de Kerenski, Tsiganov decidiu - apesar dos enérgicos protestos de meu pai - poupar o poderoso carro Wolseley de possível confisco desmontando-o e espalhando as partes em lugares escondidos que só ele conhecia. Ainda mais tarde, na tristeza de um trágico outono, com os bolcheviques ganhando o controle, um dos ajudantes de Kerenski pediu a meu pai um carro sólido que o primeiro pudesse usar se forçado a partir precipitadamente; mas nosso velho e fraco Benz não servia, e o Wolseley havia desaparecido embaraçosamente.

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Quando conheci Tamara - para lhe dar um nome concolor a seu nome real - ela estava com quinze anos, e eu era um ano mais velho. O local era um campo rústico, mas acolhedor (abetos negros, bétulas brancas, turfeiras, campos de feno e terra nua) pouco ao sul de São Petersburgo. Uma guerra distante estava se arrastando. Dois anos depois, aquele trivial deus ex machina, a Revolução Russa, veio, provocando a remoção do cenário inesquecível. De fato, já então, em julho de 1915, sombrios presságios e rumores nos bastidores, o bafo quente de levantes fabulosos, estavam afetando a chamada escola "simbolista" da poesia russa - especialmente o verso de Alexander Blok.

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Quando, no fim do ano, Lenin assumiu, os bolcheviques imediatamente subordinaram tudo à retenção do poder, e um regime de derramamento de sangue, de campos de concentração e sequestros começou sua estupenda carreira. Na época, muitos acreditaram que era possível lutar contra a gangue de Lenin e preservar as conquistas da Revolução de Março. [...] Pelo que me lembro, a razão principal para mandar meu irmão e eu embora tão prontamente [para a Crimeia, região que ainda estava livre (liberdade que duraria apenas algumas semanas)] era a possibilidade de sermos convocados pelo novo exército "vermelho" se ficássemos na cidade.

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A vida em família havia mudado completamente. A não ser por algumas joias astutamente enterradas no conteúdo normal de uma embalagem de talco, estávamos absolutamente arruinados. Mas isso era uma questão muito pequena. O governo tártaro local havia sido eliminado por um soviete novo em folha e vivíamos submetidos ao absurdo e humilhante senso de absoluta insegurança. Durante o inverno de 1917-18, e avançando pela ventosa e clara primavera da Crimeia, a morte idiota caminhava ao nosso lado. Dia sim, dia não, no branco píer de Yalta (onde, como você lembra, a dama de "A Dama do Cachorrinho" de Tchekhov perdeu sua lorgnette em meio à multidão em férias), várias pessoas inofensivas haviam, previamente, recebido pesos amarrados aos pés e em seguida sido fuziladas por duros marinheiros bolcheviques importados de Sebastopol com essa finalidade. [...] Tínhamos uma espingarda e uma automática belga e fazíamos todo o possível para desprezar o decreto que dizia que qualquer pessoa que possuísse armas de fogo ilegais seria executada na hora.

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Então, um dia da primavera de 1918, quando os pompons das amendoeiras em flor enfeitavam a encosta escura da montanha, os bolcheviques desapareceram e um exército de alemães singularmente silencioso os substituiu. Russos patriotas ficaram divididos entre o alívio animal de escapar dos executores nativos e a necessidade de dever seu resgate ao invasor estrangeiro - ainda mais alemães. Estes últimos, porém, estavam perdendo sua guerra no Ocidente e tinham vindo a Yalta na ponta dos pés, com sorrisos tímidos, um exército de aparições cinzentas fácil para um patriota ignorar, e ignorado ele foi, a não ser por alguns invasores bastantes ingratos que desrespeitavam sem muito empenho as placas de NÃO PISE NA GRAMA que apareceram nos gramados dos parques. Dois meses mais tarde, depois de consertarem lindamente o encanamento de várias villas deixadas vagas pelos comissários, os alemães desapareceram por sua vez; os brancos se infiltraram do leste e logo começaram a combater o exército vermelho, que estava atacando a Crimeia pelo norte.

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Meu pai tinha estado em Londres antes - pela última vez em fevereiro de 1916, quando, com outros cinco importantes representantes da imprensa russa, havia sido convidado pelo governo britânico a dar uma olhada no esforço de guerra da Inglaterra (o qual, insinuava-se, não gozava de apreciação suficiente por parte da opinião pública russa).

Na Inglaterra, os visitantes viram a Frota. Jantares e discursos se sucederam nobremente. A oportuna captura de Erzurum pelos russos e a iminente introdução do alistamento obrigatório na Inglaterra haviam fornecido aos palestrantes muitos tópicos. Ocorrera um banquete oficial, presidido por sir Edward Grey, e uma engraçada entrevista com George V a quem Chukovski, o enfant terrible do grupo, insistiu em perguntar se gostava das obras de Oscar Wilde. O rei, intrigado com o sotaque de seu inquiridor e que, de qualquer forma, nunca havia sido um leitor voraz, retrucou devidamente ao perguntar o que os convidados achavam do fog de Londres.

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[No exílio] Eu logo me afastei da política e me concentrei na literatura. Abriguei em meu apartamento em Cambridge os escudos vermelhos e os relâmpagos azuis da Canção da Campanha de Igor (esse incomparável e misterioso épico do final do século XII ou final do século XVIII), a poesia de Pushkin e Tyutchev, a prosa de Gogol e Tolstoi, e também a maravilhosa obra dos grandes naturalistas russos que haviam explorado e descrito o lado selvagem da Ásia Central.


Mais:
http://en.wikipedia.org/wiki/Cursed_Days