domingo, 21 de outubro de 2018

Paga de soldado

Trechos de Paga De Soldado (1926), de William Faulkner.


Julian Lowe, número ..., que foi cadete aviador da Força Aérea no Esquadrão tal e tal, mais conhecido como "Asa Solitária", contemplava o mundo com desgosto, como um doente de icterícia.

- - -
Triste e desgostoso, recostava-se sobre o assento, sem desfrutar sequer da prerrogativa de viajar em um vagão Pullman, dando voltas, sobre o polegar, ao chapéu e sua tantas vezes amaldiçoada fita branca.

- - -
[...] - Fui vítima de um ataque de gases quando limpava as latrinas, e desde então não enxergo muito bem. A Berlim! Sim, claro! Vamos a Berlim!

- - -
Sob uma sobrancelha levantada em ângulo, o olho do cadete Lowe fixava-se em um ponto acima.

- Ouça: o que está bebendo?

- Irmão, não sei. Na terça-feira passada, no Congresso, deram uma medalha ao sujeito que faz esta bebida, porque ele apresentou um plano para acabar com a guerra: reuniria todos os holandeses do exército e faria com que bebessem, durante quarenta dias, tanto deste licor quanto pudessem aguentar. Percebe? Para arruinar qualquer guerra! Entende o que se propôs?

- - -
Largado no chão, entre os dois assentos, achava-se o companheiro de viagem de Yaphank, lutando para acender um cigarro úmido e quase desfeito. "Como a devastação da França", pensou o cadete Lowe deixando correr sua memória sobre as espinhosas reminiscências de um tal capitão Bleyth, piloto da R.A.F., enviado especialmente para reforçar durante algum tempo a democrática esquadrilha.

- - -
- Vamos! Despertem! Aqui está o general Pershing, que vem tomar um trago com seus pobres soldados. - Dirigindo-se ao cadete Lowe: Observem-no! Não lhes parece que se debate afundado na depravação?

- A "Batalha" de Cognac - murmurou entre dentes o que estava adormecido no chão -. Dez homens mortos, talvez quinze. Talvez uma centena.

- - -
Não lhe restava outro remédio a não ser deixar-se banhar em licor ou bebê-lo, de modo que optou pelo último. Enquanto retinha o líquido na boca, suas entranhas subiam-lhe pelo esôfago, redemoinhavam na garganta e logo baixavam às sacudidas, arrastando junto o nauseabundo líquido.

- Viu? Não é nada do outro mundo, certo? Leve em consideração que sinto mais pena do que você em ver como diminui o meu bom licor. Ainda que eu deva admitir que tem certo gosto de gasolina.

O ultrajado estômago do cadete Lowe agitava-se entre suas amarras musculares como um balão cativo. Arrotou e seus intestinos enroscaram-se em um êxtase apaixonado. Seu amigo voltou a meter-lhe a garrafa na boca.

- - -
- O que quero dizer é que eu gostaria antes de dar uma olhada nesta nação pela qual combatemos.

- Demônios! Não posso! Desde o dia do armistício, minha mãe me manda diariamente um telegrama para recomendar-me que voe baixo, com muitas precauções, e que regresse para casa tão logo esteja desmobilizado. Aposto com você como ela é capaz de ter telegrafado ao presidente, pedindo-lhe que me dispense do serviço o mais rápido possível.

- - -
- Que venha essa garrafa, general!

E enquanto Lowe enchia os copos, murmurou-lhe ao ouvido:

- Não se preocupe, ele não faz por mal. Creio que necessita deixar que seus pensamentos corram por outros lugares para não cair no turbilhão das recordações. Todos temos recordações horríveis da guerra. Eu mesmo perdi uma vez oitenta e nove dólares em uma partida de dados e, além daquela derrota, tive que perder a de Chatoterri, como é público e notório, segundo dizem os literatos. Portanto, bebamos um pouco mais de whisky.

- Saúde! - murmurou o oficial sem sequer levantar o copo.

- O que quer dizer com isso de Château-Thierry? - perguntou Lowe.

- - -
Durante escassos nove dias, o tema obrigatório das conversas no povoado foi o regresso de Donald Mahon. Os vizinhos, curiosos e amigos foram vê-lo...; os homens mantinham-se em pé ou sentados diante dele, respeitavelmente joviais e alegres: sólidos pilares do banco e do comércio, homens de negócios que só se interessavam pela guerra como um subproduto da ascensão e da queda do senhor Wilson e, ainda assim, apenas por sua produção em dólares e em centavos de dólares, enquanto suas mulheres discutiam entre elas sobre modas, por cima das cicatrizes e da face retorcida do pobre Mahon. Alguns dos conhecidos mais casuais do pastor também foram vê-lo, com a gola da camisa democraticamente desabotoada, mascando fumo e negando-se humilde, mas firmemente, a tirar o chapéu. Não faltaram muitas jovens bonitas com as quais ele havia dançado, as quais ele havia cortejado nas noites de verão, mas vinham para observar-lhe a cara e retirar-se depois, rapidamente, com náuseas reprimidas, para nunca mais voltar, a menos que na primeira visita o rosto dele estivesse oculto (em cujo caso buscavam ocasião de vê-lo descoberto). Vinham os rapazes da escola sonhando com aventuras impossíveis, e ficando desiludidos porque ele não queria contar-lhes história alguma da guerra. Todos iam e vinham, enquanto Gilligan, seu fiel e enojado serviçal, manejava-os com habilidade imparcial e desalentadora.

- - -
- Eu vivia em um povoado pequeno, como este, e já estava farta... - ouça bem! - farta de ficar em casa a manhã inteira, vestir-me à tarde somente para caminhar pelo centro e depois passar as noites fingindo me divertir nos bailes, reuniões e passeios com os rapazes do lugar. Todas as manhãs, as tardes e as noites de todos os dias, de todos os anos, eram iguais. Quando a guerra foi declarada, pude convencer alguns amigos de meus pais para que me conseguissem um posto em Nova York. Assim entrei na Cruz Vermelha. Você já sabe como se trabalha lá. Entreter os soldados servindo-lhes refrescos, dançando com os camponeses encabulados que haviam sido arrebatados de suas terras para entrar no quartel e, tendo uma hora de licença na grande cidade, queriam passá-la o melhor possível. Nada tão difícil como isso em Nova York, se não se sabe como procurar.

- - -
- Um dia, em uma breve nota, anunciou-me que iria à cidade para permanecer ali até que partisse com destino a ultramar. [...] quando o vi chegar com seu uniforme resplandecente, todo tiras e estrelas, quando vi outros soldados saudando-o com respeito, fiquei admirada e enfeitiçada, imaginando que não poderia existir outro exemplar masculino mais esplêndido e poderoso. Você deve lembrar como estavam as coisas naquele momento: a guerra era uma loucura, uma histeria coletiva. Todo o país era um grande circo.

- - -
Mas o Destino, utilizando o Ministério de Guerra como instrumento, enganou-os de cabo a rabo.

- - -
Por alguma razão inexplicável, a chuva cessara e no ar úmido ouvia-se debilmente esse ruído inconfundível que fazem os batalhões e os regimentos quando descansam; um silêncio ordenado, mais agudo que o clamor de um tumulto. Já do lado de fora, Madden sentiu em seus pés a presença familiar do lodo, reconheceu a escuridão molhada, o odor de excrementos e de suor de homens sob um céu remoto, demasiadamente afastado para que pudesse distinguir a paz ou a guerra.

- - -
Muitas vezes pensou no capitão Green enquanto cruzava o território da França. Costumava pensar nele quando contemplava a cortina prateada da chuva, sempre acompanhada de álamos, à maneira de um friso eterno para uma eterna tela semitransparente que deixava adivinhar paisagens formosas e fecundas: caminhos e canais e aldeias onde os telhados brilhavam violentamente; torres e árvores; povoados, uma cidade; e depois, caminhões e tropas nos cruzamentos dos caminhos. Costumava pensar nele vendo as pessoas que iam à guerra, agitadas, febris, como homens de negócios nas grandes cidades; vendo os soldados franceses jogando "croquet" com seus manchados uniformes azuis; viu os soldados norte-americanos que o observavam jogar e presenteava-os com cigarros; viu, também, soldados ingleses e norte-americanos lutando entre si, mas sem que ninguém se importasse com ele. Afastados, estavam os M. P. (Polícia Militar). Para que um homem queira se tornar um M. P. é preciso que tenha um parafuso a menos. Zona de guerra. As coisas seguem como de costume. A Idade de Ouro dos não-combatentes.

- - -
Naquela época, haviam-se acostumado ao troar distante dos canhões (que estavam disparando contra homens) e ao sinistro relampejar no horizonte, pelas noites; haviam sido metralhados por um aeroplano alemão quando estavam em fila em frente à cozinha, esperando a refeição, diante do pessoal de uma bateria francesa camuflada, que os observava sem interesse, lá das casamatas e trincheiras; além disso, receberam muitos e valiosos conselhos dos soldados que voltavam do front.

- - -
Entre os muitos conselhos gratuitos que receberam, recordavam particularmente que deveriam deixar-se cair no chão ao escutar o estrondo de um canhão ou o silvo de uma bomba; assim foi como, no instante em que uma metralhadora começou a disparar, ali pelo flanco direito, fazendo saltar a lama podre que os enterrava, alguém lançou o corpo à terra, outro tropeçou nele e logo todos se arremessaram ao solo como um só homem. Alguns dos oficiais amaldiçoaram-nos com palavras grosseiras e outros soldados deram-lhes pontapés para que se levantassem. Depois, quando estavam parados junto ao muro de terra molhada, apertados na escuridão, farejando a morte, o tenente ia e vinha correndo diante da fila de homens, proferindo um discurso breve e amargo.

- Quem diabos disse a vocês para que lançassem o corpo à terra? [...] Sargento, empreendamos a marcha, e se outro homem se deixar cair, que os demais sigam andando e pisem-no até deixá-lo enterrado no lodo!

- - -
O sargento Madden voltou a pensar no capitão Green alguns dias depois, quando avançava com seus homens entre o arame farpado, perto de Cantigny, dizendo:

- Adiante, bastardos, adiante! Acham que nunca irão morrer?

- - -
Donald Mahon despertara ao ouvir vozes novas.

- Quanta gentileza a sua em ter vindo! - dizia a senhora Powers - Todos os amigos de Donald portaram-se muito bem com ele. Especialmente os que tiveram filhos ou parentes na guerra. Eles sabem o que é isso, não é mesmo?

(Ah, pobre homem! E seu rosto contraído, quebrado, cheio de cicatrizes! Madden não me disse que sua face estava assim, Donald!)

- - -
O "Dia do Jovem", quer dizer, o dia dedicado ao ser humano de tão pouca sorte que não tinha idade suficiente para alistar-se no exército quando eclodiu a guerra. Durante os dois últimos anos, aqueles desafortunados passaram-nos tão negros como se houvessem estado no campo de batalha. Naturalmente, as moças utilizaram-nos durante a escassez de homens, mas sempre com indiferença, de uma maneira impessoal. Oh, uniforme! Oh, vaidade! Foram plenamente utilizados pelas moças, é verdade, mas tão logo apareceu um uniforme, terminaram abandonados e decepcionados.

A partir daquele momento, os uniformes triunfaram em todas as ocasiões; eram vistos em todas as partes, andando daqui para ali, exibindo-se, e não apenas eram considerados "na moda" e românticos, mas também que eles próprios mostravam-se muito dispostos a gastar o dinheiro que traziam, e, portanto, iam longe demais e rápido demais para que os desafortunados jovens pudessem segui-los.

- - -
- Isso quer dizer que também existe cinema na França.

- Sim. Para nos entretermos em nosso tempo livre.

- Com certeza vocês passaram muito bem por lá - a moça oferecia a ele seu perfil abstraído - enquanto nós trabalhávamos como escravas enrolando ataduras. Espero que nós mulheres possamos ir para combater na próxima guerra; eu, pessoalmente, prefiro marchar e disparar rifles que costurar. Você acha que nos deixarão lutar na próxima guerra? - perguntou, enquanto observava um jovenzinho que dançava contorcendo-se como um bicho-da-seda.

- Tomara que vocês tenham que ir para combater, se desejam tanto assim que estale outra guerra - retrucou James Dough levantando sua perna artificial para cruzá-la e esfregando dissimuladamente o braço direito, entre os ossos do qual passara uma bala.

- - -
- Lembre que diariamente você os via nas instalações da Cruz Vermelha: os mesmos que estão ali; pobres rapazes; tão bons, tão jovens, tão tristes porque iam para a guerra: e só porque iam para a guerra é que nós as moças éramos atenciosas com eles. Mas agora não têm guerra aonde ir e veja como elas os tratam. Foram abandonados.

- - -
- As coisas incríveis que aprendemos com as mulheres da França! Vocês pretendem me dizer que estas garotas aqui sabem aquelas coisas? Impossível! Não podem ter mudado tanto!

- Não! - respondeu Gilligan com ênfase - Isso não as agradaria.

- É claro que não as agradaria! Estas são moças decentes. Serão mães da futura geração.

- Talvez haja alguma que se agrade... - insinuou Gilligan.

- - -
- Sim, fui soldado e até lutei um pouco - respondeu Jones.

- Ah! - exclamou inesperadamente a senhora Saunders - Você esteve na guerra? Que interessante!

Mas já perdera o interesse pelas proezas militares de Januarius Jones, e perguntou:

- Quando esteve na França não teria encontrado por acaso com o tenente Donald Mahon?

- Não, senhora. Dispunha de tão pouco tempo para falar com os demais que não recordo ter tido alguma conversa agradável durante a contenda - respondeu gravemente, apesar de que nunca estivera na França e sequer vira a Estátua da Liberdade.


Mais:
http://southernliterature.umwblogs.org/2010/10/31/faulkners-military-experiences
http://torontodreamsproject.blogspot.com.br/2011/10/william-faulkner-drunk-in-cockpit-of.html
Humphrey Bogart
http://www.youtube.com/watch?v=25wWkDE2KI4