domingo, 14 de outubro de 2018

Guerras estúpidas

"How horrible it is to have so many people killed! And what a blessing that one cares for none of them!" (Jane Austen - from a letter to Cassandra Austen, 31st May 1811)

Trechos de Guerras Estúpidas (2008), de Ed Strosser e Michael Prince.



Em 1918, o presidente americano Woodrow Wilson, que usava óculos e vestia calças elegantes, ordenou a invasão da Rússia, recém-instalada no comunismo, enquanto a Primeira Guerra Mundial ainda estava sendo travada. Em sua defesa, a ordem explícita que deu ao comandante geral foi: não cause problemas. Como esse general logo descobriu, se você invadir um país para derrubar seu governo, espera-se que esses governantes notem sua presença, fiquem zangados e tentem atirar em você.

Os Estados Unidos pisaram no solo da Rússia siberiana em 1918, em uma tentativa de derrubar Lenin e seus pioneiros comunistas no início da União Soviética. Foi um golpe ousado e visionário: um futuro inimigo havia sido identificado e pretendia-se acabar com ele em seu berço, o tipo de ação estratégica preventiva que, por razões que ficarão óbvias, raramente foi tentada pelas democracias atuais.

Esta aventura Aliada, condenada desde o início, teve que superar a falta de um plano real (sem mencionar que a Primeira Guerra Mundial ainda estava sendo travada). O único planejamento real que foi feito para a invasão da Rússia, o maior país da Terra, foi um breve memorando que o presidente Wilson enviou ao major-general William S. Graves, aquele que Wilson escolhera para comandar as tropas americanas designadas para esta história infeliz. Wilson, um ex-professor universitário, intitulou seu relatório sobre a invasão de "Memorando"; talvez muito influenciado pelas numerosas e imprecisas obras de estudantes de filosofia que ele havia corrigido, Wilson copiou o estilo desses textos. Os políticos falam sobre teoria, os generais, sobre logística, e o memorando de invasão de Wilson carecia de ambos. Suas principais características foram a brevidade e uma total falta de detalhes. Ele parecia não ter pensado sobre as implicações práticas de um objetivo como "derrubar os comunistas" em um país com uma área de milhares de quilômetros, apenas com a ajuda de algumas brigadas de homens corajosos e um punhado de aliados incontroláveis.

A invasão da Sibéria chegou a prejudicar os comunistas a tal ponto que eles conseguiram permanecer no poder só por mais oitenta anos.

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OS ATORES

Woodrow Wilson: Enfrentou os comunistas quando o senador Joseph McCarthy ainda estava na escola primária.

Vladimir Lenin: Com a ajuda inestimável do kaiser Wilhelm II, liderou os bolcheviques em sua tomada do poder na Rússia depois de assassinar o czar e sua família de crianças ameaçadoras. Acreditava em uma revolução mundial da classe trabalhadora, após a qual ninguém possuiria coisa alguma, mas todo mundo trabalharia duro para ter tudo junto, ou algo assim. Convenceu o kaiser a mandá-lo de volta à Rússia para iniciar uma revolução, embora odiasse os alemães e os alemães o odiassem.

Almirante Alexander Kolchak: Era atraente vestido com seu uniforme de almirante e os países ocidentais o apoiaram. Roubou toda a reserva de ouro do czar. Estava determinado a destruir os bolcheviques. Mas as táticas navais não funcionam muito bem em terra.

Major-General William S. Graves: Depois de ler o ridículo memorando de Wilson, imaginou que aquele assunto grandioso terminaria mal, mas mesmo assim embarcou diligentemente na aventura.

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As guerras formam estranhos parceiros de cama e a Primeira Guerra Mundial não foi exceção. Estados Unidos, Grã-Bretanha e França, juntamente com outros pequenos países que sempre lutam com os aliados mais importantes, mas aos quais ninguém realmente presta atenção, uniram-se contra o kaiser alemão e a Áustria. O czar não era exatamente um tipo de pessoa democrática, mas por causa de uma série de tratados entrelaçados que ninguém realmente compreendia, os russos acabaram formando uma equipe com franceses e britânicos contra os alemães, os austríacos e os turcos no primeiro grande espetáculo do sangrento século XX.

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A situação na Rússia sofreu uma mudança horrivelmente dramática para os Aliados no final de 1917, quando os bolcheviques, liderados por Lenin e Trotsky, tomaram o controle do país através de um golpe de Estado executado com inteligência (disfarçado de revolução), e apartaram do poder o governo provisório, demonstrando o fato de que, se seu objetivo é estabelecer um novo governo e você o chamar de governo provisório, provavelmente acabará sendo assim.

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Os bolcheviques assinaram entusiasticamente o Tratado de Brest-Litovsk em 3 de março de 1918, presenteando-se com uma completa e absoluta derrota. [...] Os Aliados estavam desesperados para trazer os russos de volta ao campo de jogo, e se isso significava que a Rússia precisava mudar de governo novamente, então que assim fosse.

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Infelizmente, o presidente Wilson já havia traçado o décimo quarto ponto de seu plano para uma paz mundial duradoura. Este ponto afirmava enfaticamente que os países deveriam poder governar a si mesmos, que é o que os russos estavam fazendo cem por cento. Apesar da existência de seu plano para alcançar a perfeição do mundo, Wilson, pressionado pelos ingleses e franceses, acabou lançando seus ideais ao mar.

Felizmente, para Wilson, caiu do céu um estupendo pretexto: a legião checoslovaca perdida. A legião, que contava com uma força de cerca de 30.000 homens, vinha lutando contra os alemães e austríacos juntamente com os servos do czar, que seguiam morrendo para poder continuar submetidos a seu governante não muito perspicaz. Quando os russos deixaram a guerra, os checoslovacos, cujas fileiras estavam cheias de desertores do exército austríaco, tornaram-se soldados sem guerra. Os checoslovacos obtiveram permissão dos bolcheviques para viajar no trem Transiberiano até o porto de Vladivostok, na costa do Pacífico, de onde os franceses irresponsáveis concordaram em levá-los de volta ao matadouro do front ocidental.

Os Aliados já tinham seu pretexto: as tropas checoslovacas precisavam de ajuda. Além disso, grande parte do equipamento que os Aliados enviaram aos russos ingratos estava enferrujando nos portos de Vladivostok, bem como nos portos russos ao norte, em Arkangelsk e em Murmansk. Os Aliados eram os donos do equipamento, e como os russos parariam de intervir na guerra, queriam que fosse devolvido.

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Aquele documento vazio, que parecia escrito por um novato, era um suflê diplomático excepcional, uma invasão não invasiva, e não o roteiro de um programa para conquistar o maior país do mundo.

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Em 1º de setembro de 1918, após desembarcar em Vladivostok (a cerca de 8.000 quilômetros da sede do governo em Moscou), o General Graves descobriu que sua força de invasão estava cercada de inimigos: russos hostis - tanto os bolcheviques (vermelhos) como os antibolcheviques (brancos) -, bem como os franceses e os britânicos, que trabalhavam abertamente para derrubar os bolcheviques e tentar enganar os americanos para ajudá-los a atirar em alguns deles. A própria cidade de Vladivostok era controlada por uma parte das tropas checoslovacas.

Além disso, uma grande força de tropas japonesas estava à espreita tentando tirar proveito do caos na Rússia para tomar algumas áreas do território russo.

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As primeiras baixas americanas ocorreram em 16 de setembro de 1918, depois de um encontro com os bolcheviques, os quais, após ouvirem o boato de que estavam sendo invadidos, juntaram-se aos prisioneiros alemães e austríacos para atacar os Aliados.

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Graves continuou com sua brilhante estratégia de não fazer absolutamente coisa alguma no crescente tumulto da guerra civil russa. Os exércitos brancos, formados por cossacos, inicialmente derrotaram os bolcheviques. Os freelancers checoslovacos, que não se deixaram impressionar por Kolchak, estavam cientes do perigo que se escondia para quem se opusesse aos bolcheviques e, finalmente, decidiram aproveitar-se do fato de que a guerra havia acabado e ir para casa. No entanto, eles se viram presos no crescente caos da guerra civil.

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Em julho de 1919, Graves foi instruído por Washington a visitar Kolchak em Omsk, dado que, no mês anterior, o governo americano e os Aliados haviam prometido a ele que forneceriam munição e comida para seu governo.

Graves chegou a Omsk depois de uma longa viagem de trem pela Sibéria, pelo lago Baikal, no mais profundo do interior... a tempo de ver a queda do governo Kolchak. Ele saiu com uma má opinião do almirante.

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[...] os soldados checoslovacos que, mais de um ano depois do fim da Primeira Guerra Mundial, zarpavam finalmente para sua terra natal. Não havia mais pretextos, então era o momento de ir embora.

Logo chegaram os navios americanos para traslado.

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O que aconteceu depois?

Pode-se esperar que, quando dois pesos-pesados como os Estados Unidos e a Rússia se enfrentam, o mundo inteiro se modifica. E, talvez, o aspecto mais surpreendente desta questão louca é que nada mudou, exceto que foram dados ao mundo alguns veteranos checoslovacos da Primeira Guerra Mundial e forneceu-se aos bolcheviques propaganda que eles poderiam usar durante as próximas oito décadas: a América tentou nos invadir. Ninguém nos Estados Unidos se lembra disso, mas eles sim.

Woodrow Wilson sofreu um ataque cardíaco em 1919 e sua esposa tornou-se presidente de fato até o final de seu mandato. Enquanto ela esteve no comando, conseguiu ocultar o presidente enfermo do vice-presidente e do gabinete. Ela não invadiu país algum e Wilson morreu em 1924.

O general William Graves retirou-se do exército em 1928 e escreveu um livro criticando toda aquela experiência.


Mais:
http://www.youtube.com/playlist?list=PLrWPsj6fVbeVgQ8X9iYKw8fsoJVDrDiiZ
Os Simpsons 1 (trecho daqui); Os Simpsons 2
http://www.youtube.com/watch?v=Mvu1MdckGDA
http://www.youtube.com/watch?v=dG0T04XK9AA