domingo, 25 de março de 2018

Saber militar e marxismo

Trechos de Saber Militar E Marxismo (1922), de Leon Trotsky (Lev Davidovich Bronstein).


Um dos oradores protestou contra a designação de arte conferida à atividade militar, baseando-se - vejam bem! - no fato de que a atividade militar não se submetia aos cânones da beleza. Trata-se do mais puro mal-entendido. O comércio, sobretudo na rua Soukharevska, não se submete certamente a critérios estéticos e, contudo, a arte do comércio existe. O comércio tem os seus próprios métodos complexos.

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Não é possível, a partir da teoria de Darwin ou da lei da seleção natural, deduzir métodos de guerra, mas um responsável militar que estudou Darwin será, além de outras qualidades, mais instruído: será mais largo o seu horizonte, terá um maior espírito de oportunidade, observará aspectos da natureza e do homem que antes não via.

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A história dos termos, das hipóteses e das teorias não substitui a própria ciência. A física é a física e a atividade militar é a atividade militar.

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Li recentemente que, no tempo de Napoleão, o xadrez se baseava nas manobras - e assim continuou até meados do século XIX, para assim permanecer na época da paz armada - desde a guerra franco-prussiana até à última guerra imperialista - estritamente um jogo "de posição", ao passo que hoje parece ter-se tornado mais flexível e prestar-se às manobras. É pelo menos o que afirma um jogador americano.

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A guerra é uma certa forma de relações entre as pessoas. Por conseguinte, os métodos e processos da guerra dependem das qualidades anatômicas e físicas do indivíduo, da forma de organização do homem coletivo, da sua técnica, da sua situação física, cultural e histórica, etc. Assim, os métodos e processos da guerra são definidos por condições mutáveis e é por isso que em caso nenhum podem ser eternos.

No entanto, é absolutamente evidente que há, nesses métodos e processos, elementos de maior ou menor estabilidade. Por exemplo, nos métodos da cavalaria, reencontraremos os elementos comuns à época de Aníbal, ou mesmo de uma época anterior. É evidente que os métodos de aviação são de origem mais recente. Nos métodos de infantaria, podemos reencontrar elementos comuns às ações das hordas e das tribos mais primitivas que se guerreavam antes mesmo de terem domesticado o cavalo. Enfim, nas operações militares em geral, podemos igualmente encontrar os processos mais elementares que são comuns aos homens e aos animais que se batem. Escusado será dizer que, nestes casos, também estamos perante "verdades eternas", isto é, de generalizações científicas decorrentes das propriedades da matéria, mas muito simplesmente de processos mais ou menos estáveis dum artesanato ou duma arte.

O conjunto dos "princípios militares" não forma uma ciência militar, pois esta última não existe - do mesmo modo que não há uma ciência de serralharia. Há toda uma série de ciências que o comandante militar deve conhecer, para se sentir absolutamente à vontade na sua arte. Mas a ciência militar não existe. Há, sim, um artesanato militar, que pode elevar-se até ao nível da arte militar.

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Que gênero de verdades pode a história fornecer-nos? O papel e a importância do crescimento das cidades na Idade Média para o desenvolvimento da atividade militar, a invenção da arma de fogo, a queda do regime feudal e a importância dessa revolução para o exército, etc.

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Os exércitos da infantaria alemã do século XV, os exércitos permanentes dos séculos XVII e XVIII e o exército nacional saído da Revolução Francesa correspondem a uma época determinada da evolução econômica e política e baseiam-se numa certa técnica, da qual dependem as estruturas e os métodos de ação. A história militar pode e deve determinar a interdependência social entre o exército e os métodos que ele utiliza. E que faz a filosofia militar? Regra geral, estuda os métodos e os processos utilizados no decurso do período anterior, que considera verdades eternas finalmente descobertas pela humanidade e que devem conservar a sua importância por todos os tempos e por todos os povos. Depois, apercebemo-nos de que esses métodos ou princípios foram já utilizados numa menor escala por Aníbal e César nas suas operações.

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A ação do princípio "eterno" da livre concorrência levou, como é sabido, ao monopólio, à criação de poderosos trustes nacionais e mesmo internacionais. As pessoas que os dirigem têm perante si um campo de manobras estratégicas tal, que pode comparar-se ao teatro das operações militares da última Grande Guerra. É evidente que Rockefeller dispõe de uma extensão muito mais vasta para manifestar a sua "livre vontade" no domínio da construção econômica do que qualquer industrial ou comerciante de há 50 ou 100 anos. Mas Rockefeller não é uma violação arbitrária das leis de Manchester; é, sim, o seu produto histórico e, ao mesmo tempo, a sua viva negação.

Do personagem de barbicha de Gogol até ao bem barbeado Rockefeller, cada industrial ou comerciante possui as suas verdadezinhas eternas para as operações comerciais: "Não se vende sem enganar", etc. - até aos cálculos mais complicados do truste do petróleo.

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Cientificamente concebida, a história militar estuda as características típicas da organização do exército e da guerra, numa época determinada, em interdependência com o regime social - mas de modo nenhum ensina, nem pode ensinar, como edificar a artilharia e como garantir a vitória.

A arte militar do nosso tempo está resumida nos regulamentos. Estes exprimem a essência da experiência passada, transformada em moeda utilizável para amanhã. É um conjunto de processos artesanais ou artísticos. E, do mesmo modo que o conjunto dos manuais de organização das empresas industriais, de cálculo, de contabilidade e de correspondência comercial não forma uma ciência do regime capitalista, o conjunto das instruções, das ordens e dos regulamentos militares, não pode também formar uma ciência militar.

Para nos convencermos de quão grandes são a confusão e a contradição, no plano dos chamados princípios eternos da atividade militar (que são também as leis da ciência militar), consideremos o livro do maior chefe militar vitorioso da nossa época, o marechal [Ferdinand] Foch - 'Os Princípios da Guerra'.

Na sua introdução de 1905, apoiando-se nas primeiras informações sobre a guerra russo-japonesa, Foch escreve: "A ofensiva manobrista vence, finalmente, todas as resistências." Foch considerava esta ideia uma das verdades eternas da arte militar, opondo-se - diga-se de passagem - a alguns dos nossos inovadores, que veem na estratégia ofensiva de manobra características próprias da guerra revolucionária. Veremos mais tarde que ambos os pontos de vista são falsos: enganam-se, tanto Foch, que considera a ofensiva manobrista um princípio eterno, como os camaradas que nela descobrem um princípio específico do Exército Vermelho.

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É evidente que, nestes planos [leis anatômicas ou psicológicas], a mudança não é tão radical. Um grego ou um troiano de coração trespassado morria como morrem os nossos soldados. A base fundamental psicofisiológica e anatômica do ser humano não mudou lá muito. Inútil dizer que as leis da natureza são as mesmas. Mas mudou radicalmente a interdependência do ser humano e da natureza. O meio artificial que o homem coletivo estabeleceu entre ele e a natureza - instrumentos, máquinas - desenvolveu-se tanto e tão bem que transformou completamente os processos de trabalho, e sua organização, bem como as relações sociais. Sem dúvida nenhuma, desde a época de Troia, os grupos humanos (nações e classes) conservaram sempre esta aspiração a aniquilar-se, a vencerem-se e a conquistarem-se uns aos outros. O meio artificial ou a técnica humana - no sentido mais lato da palavra - transformaram a guerra, bem como todas as outras relações humanas. É verdade que, já na época do cerco de Troia, não se atingia essa finalidade apenas com unhas e dentes, mas também graças a instrumentos artificiais que o homem colocava entre ele e o adversário. Esta base mais vasta permanece imutável. Por outras palavras - a guerra é um afrontamento hostil entre grupos humanos, armados de instrumentos de morte e de extermínio, que tem por finalidade conseguir, graças à força física, a dominação do grupo inimigo.

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Não se pode, evidentemente, falar-se de guerra, porque o afrontamento, na floresta, de dois dos nossos remotos antepassados, quando se atiravam um contra o outro por causa de uma fêmea, nada pode ter de comum com a arte militar, no sentido indicado pelos "princípios eternos". Assim, é preciso logo de início reduzir a eternidade da arte militar, abrindo-lhe uma conta corrente a partir do momento em que o homem se ergueu solidamente sobre as suas patas traseiras, se armou de um pau e começou a agir coletivamente, tanto no combate como na economia, em destacamentos de estruturas ainda não solidamente estabelecidas.

Von der Golz, e Foch depois dele, reconhecem que os fatores estudados pela arte militar mudam (pau, espingarda, espingarda automática, pistola, metralhadora, etc.), mas os princípios da arte permanecem - se não eternos, pelo menos invariáveis desde que a guerra existe.

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Foch prediz que "no decurso da próxima guerra, as primeiras operações militares serão decisivas" (pág. 10). De acordo com esta opinião, Foch conclui "que ela (a próxima guerra) não poderá durar muito tempo e que será necessário fazê-la com uma rude energia, para atingir rapidamente a sua finalidade, sem o que ela não terá nenhum resultado" (pág. 38).

Basta, de fato, citar estas conclusões para que os princípios eternos de Foch pareçam bastante lastimáveis a nossos olhos, à luz dos acontecimentos ulteriores.

Durante a última guerra, depois das tentativas ofensivas, que muito caro lhe custaram, o exército francês passa à defesa posicional.

- os insucessos iniciais não determinaram o resultado da guerra, contrariamente às previsões de Foch;

- a guerra durou quatro anos;

- no seu conjunto, a guerra conservou sempre um caráter posicional que se estendeu às trincheiras;

- o primeiro período de campanha de manobra provou, simplesmente, a necessidade de se entranhar na terra;

- o último período de campanha não fez mais do que confirmar o que as trincheiras já tinham provado: o esgotamento das forças de resistência da Alemanha.

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Como pudemos ver, não foi feliz a tentativa de eternizar os princípios napoleônicos. Provou-o a guerra imperialista. Não poderia ser de outra maneira.

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Durante a última guerra imperialista, nenhuma das duas partes era portadora dum novo princípio, encarnado por uma nova classe revolucionária. A guerra tinha, de ambos os lados, um caráter imperialista. Mas ao mesmo tempo, ameaçava em igual medida a existência das duas partes, nomeadamente da França e da Alemanha. O golpe fulminante que teria provocado a imediata desmoralização e baixa do moral no outro campo não foi nem poderia ser bem sucedido, devido à grande força material e humana dos dois campos que gradualmente punham em jogo todas as suas forças e todos os seus meios. Por isso é que, contrariamente às previsões de Foch, as primeiras operações em nada determinaram o resultado da guerra. Por isso, cada ofensiva se quebrava contra outra ofensiva e os exércitos, sustentados pelas retaguardas, se enterravam. Foi também por isso que a guerra durou tanto tempo - até ao esgotamento dos recursos materiais e morais de uma das partes. Assim, a guerra imperialista travou-se, do início ao fim, em contradição com o princípio "eterno" da manobra ofensiva, decretado por Foch. Esta circunstância é ainda sublinhada pelo fato de que Foch venceu contra os seus próprios princípios. Para o explicar, é preciso lembrar que, se os princípios de Foch jogavam contra ele, ele tinha, aliás, a seu favor os soldados ingleses e americanos e principalmente as munições, os tanques e os aviões anglo-americanos.


Fonte:
http://www.marxists.org/portugues/trotsky/1922/05/08.htm

Mais:
http://docs.google.com/file/d/1QiCzgtSzLUg-mg_dDXlNyQjivCpyjgr8
http://archive.org/details/RedTerrorInRussia1918-1923