quarta-feira, 10 de janeiro de 2018

Surpreendido pela alegria

[Neste último ano haverá 2 posts por semana. Aguente firme, leitor-soldado veterano das trincheiras, falta só mais um pouco.]

Trechos de Surpreendido Pela Alegria (1955), de C.S. Lewis.



Tennyson se saiu otimamente bem naquela ocasião. Tinha uma voz boa e grave, e cantava solos no coro. [...]

Que todos encontrem a paz. Um destino pior os aguardava, pior do que o mais vingativo dos calouros explorados poderia desejar. Ypres e o Somme devoraram a maior parte deles. Foram felizes enquanto duraram seus dias de glória.

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Durante minhas últimas semanas em Wyvern, estranhas matérias começaram a circular nos jornais, pois estávamos então no verão de 1914. Lembro que eu e um amigo ficamos perplexos diante de uma coluna que trazia o seguinte título: "Poderá a Inglaterra manter-se fora disso?" "Manter-se fora disso?", disse ele. "Eu não vejo como é que ela pode entrar nisso." A lembrança pinta as últimas horas daquele período letivo com tintas levemente apocalípticas, e talvez a lembrança falha. Ou talvez para mim fossem apocalípticas o bastante para saber que eu estava partindo, para ver todas aquelas coisas odiadas pela última vez; mas não simplesmente (naquele momento) para odiá-las. Há uma esquisitice, um quê de fantasmagórico mesmo numa cadeira de Windsor quando ela lhe diz: "Você nunca mais me verá." Logo no início das férias a Inglaterra declarou guerra. Meu irmão, então de licença de Sandhurst, foi convocado. Algumas semanas mais tarde fui encontrar o sr. Kirkpatrick em Great Bookham, no condado de Surrey.

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No continente, continuava a inábil carnificina da primeira Guerra Alemã. Assim, já prevendo que provavelmente duraria até eu atingir a idade do serviço militar, fui forçado a tomar uma decisão que a lei havia tirado das mãos dos meninos ingleses da minha idade; pois na Irlanda não havia a figura do alistamento obrigatório. Mesmo então não me orgulhei por decidir servir, mas de fato achei que a decisão me absolvia de acompanhar o andamento da guerra. Para Arthur, cujo coração irremediavelmente o descartava, não havia tal dúvida. Portanto, consegui esquecer a guerra de um modo que algumas pessoas julgarão vergonhoso, outras inacreditável. Outras ainda podem considerar essa atitude como fuga da realidade. Mas sustento que foi antes um acordo com a realidade, a delimitação de uma fronteira. Na prática, eu disse ao meu país: "Você me terá numa data já fixada, mas não antes. Morrerei nas suas guerras se necessário for, mas até lá viverei minha vida. Poderá ter meu corpo, mas não minha mente. Participarei de batalhas, mas não lerei sobre elas." Se essa atitude necessita de explicações, devo dizer que um menino que é infeliz na escola inevitavelmente adquire o hábito de conservar o futuro no seu devido lugar; se ele começa a admitir infiltrações do próximo período letivo nas férias correntes, acaba entrando em desespero.

[...] acho difícil lamentar o fato de ter escapado à assustadora perda de tempo e ânimo que implicaria ler notícias da guerra ou participar mais que artificial e formalmente das conversas sobre o assunto. Ler, sem conhecimento militar ou bons mapas, relatos de batalhas que eram distorcidos antes de chegar ao general de Divisão, e distorcidos mais ainda por ele mesmo, além de redigidos com todo elogio e gratidão pelos jornalistas; tentar gravar aquilo que será contradito no dia seguinte; temer e esperar intensamente com base em indícios inconsistentes - tudo isso é seguramente um mal emprego da mente.

Mesmo em tempo de paz acho que estão redondamente enganados os que defendem que meros meninos devam ser incentivados a ler jornais. Quase tudo o que um menino lê lá na adolescência já terá sido reconhecido como falso em ênfase e interpretação, ou mesmo em fato, quando o mesmo menino estiver na casa dos vinte anos - e a maioria dessas informações terá perdido toda a importância. A maior parte do que estiver gravado na memória precisará, portanto, ser desaprendido; e ele provavelmente terá adquirido um gosto incurável pela vulgaridade e o sensacionalismo, e o hábito fatal de esvoaçar de parágrafo a parágrafo para ver que uma atriz se divorciou na Califórnia, um trem descarrilou na França e quadrigêmeos nasceram na Nova Zelândia.

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Ganhando ou não uma bolsa de estudos, no ano seguinte eu entraria no exército; e mesmo um temperamento mais otimista que o meu podia sentir em 1916 que um subalterno de infantaria seria louco se desperdiçasse o tempo se preocupando com algo tão hipotético quanto sua vida pós-guerra.

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É claro que nunca fui aprovado nos tais exames preliminares, mas não consigo lembrar se voltei a fazer as provas, sendo outra vez reprovado. A questão perdeu importância depois da guerra, pois um benévolo decreto eximiu os ex-combatentes de prestá-los. Do contrário, sem dúvida, eu me veria obrigado a abandonar a ideia de entrar em Oxford.

Não chegara a completar um período letivo na universidade quando meus documentos foram aprovados, selando meu alistamento; e a situação fez dele um período letivo dos mais anormais. Metade da faculdade fora convertida num hospital, e estava nas mãos da R.A.M.C. (Unidade Médica do Exército Real Britânico). Na metade restante, vivia uma minúscula comunidade de estudantes - dois de nós ainda de idade inferior à militar, dois incapacitados, outro partidário do Sinn Fein, que não queria lutar pela Inglaterra, e alguns outros que nunca consegui classificar.

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Depois veio o Exército. Por uma guinada notável do destino, isso não significou a saída de Oxford. Fui enviado para um Batalhão de Cadetes cujo acantonamento ficava em Keble.

Passei pelo curso normal de treinamento (algo leve naquela época, comparado ao da guerra atual) e fui alocado como segundo tenente na Infantaria Leve de Somerset, o antigo 13º Regimento de Infantaria. Cheguei às trincheiras da frente de batalha no meu décimo nono aniversário (novembro de 1917), servi a maior parte do tempo nas vilas próximas a Arras-Fampoux e Monchy - e fui ferido no monte Bernenchon, perto de Lillers, em abril de 1918.

Fiquei surpreso por não desgostar mais do Exército. Foi, é claro, detestável. Mas as palavras "é claro" aliviaram o aguilhão. É nisso que ele diferia de Wyvern. Ninguém era obrigado a gostar. Ninguém dizia que você deveria gostar. Ninguém fingia gostar. Todos os que você encontrava ali tinham como certo que tudo aquilo era uma odiosa necessidade, uma horrível interrupção da vida racional. E isso fazia toda a diferença. A tribulação evidente é mais fácil de suportar que a tribulação que se alardeia prazerosa. Aquela gera camaradagem e até (quando intensa) uma espécie de amor entre os companheiros de provação; esta, desconfiança generalizada, cinismo dissimulado e aflitivo ressentimento.

Além disso, achei meus superiores incomparavelmente mais tratáveis que os veteranos de Wyvern. Isso sem dúvida porque os homens de trinta são mais gentis com os de dezenove do que estes com os meninos de treze: são realmente adultos e não precisam de autoafirmação.

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Certa vez, também, no Clube dos Oficiais de Arras, onde eu jantava só e bem satisfeito com meu livro e meu vinho (uma garrafa de Heidsieck custava então oito francos, e doze uma de Perrier Jouet), dois oficiais de postos infinitamente superiores, todos cobertos de condecorações e insígnias vermelhas, vieram à minha mesa perto do fim da refeição, e saudando-me como "sorridente Jim", levaram-me à mesa deles para umas doses de conhaque e alguns charutos. Não estavam bêbados, nem me deixaram embriagado. Foi pura boa vontade. E embora excepcional, isso não era exageradamente excepcional. No exército havia gente detestável; mas a lembrança preenche aqueles meses com contatos agradáveis e transitórios. A cada poucos dias parecia que se encontrava um erudito, um excêntrico, um poeta, um alegre humorista, um contador de casos ou pelo menos um homem de boa vontade.

No meio daquele inverno tive a sorte de cair de cama com o que as tropas chamavam de "febre da trincheira" - P.U.O. (pirexia de origem desconhecida) para os médicos - e fui enviado para um hospital em Le Tréport, ficando ali por um maravilhoso período de três semanas.

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O hospital era um hotel transformado e ficávamos dois num quarto. Minha primeira semana viu-se prejudicada porque uma das enfermeiras do turno da noite estava tendo um ardente caso de amor com meu colega de quarto. Minha febre era alta demais para que eu me sentisse constrangido, mas o sussurro humano é um ruído muito tedioso e antimusical; especialmente à noite. Depois disso minha sorte mudou. O homem amoroso foi enviado para outro lugar e substituído por um misógino musical de Yorkshire, que na nossa segunda manhã juntos disse o seguinte: "Eh, rapaz, se nós mesmos fizermos a cama aquelas mulheres não vão ficar no quarto tanto tempo." Assim, passamos cada um a arrumar sua cama todo dia, e a cada dia, quando as duas enfermeiras olhavam para dentro, diziam: "Ah, eles já arrumaram as camas! Não são ótimos esses dois?" - recompensando-nos com os sorrisos mais radiantes. Acho que atribuíam nosso ato ao galanteio.

Foi aqui que li pela primeira vez um volume dos ensaios de Chesterton. Jamais ouvira falar dele e não tinha a menor ideia do que ele representava; tampouco posso explicar por que ele me conquistou tão prontamente. Talvez fosse de esperar que meu pessimismo, ateísmo e ódio do sentimentalismo fizessem dele para mim o menos atraente de todos os escritores. Parece até que a Providência, ou alguma "causa segunda" de uma espécie bem obscura, supere nossas inclinações anteriores quando decide aproximar duas mentes.

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O leitor já terá adivinhado que nosso batalhão era excepcionalmente bom; uma minoria de bons soldados de carreira comandando um conjunto agradavelmente heterogêneo de praças promovidos (esses, fazendeiros dos condados do sudoeste da Inglaterra), advogados e universitários. Ali podia-se ter uma conversa tão boa quanto em qualquer outro lugar.

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Duvido que, dentre os homens que lutaram na França, algum outro tivesse maior probabilidade de ir direto para o Céu se fosse morto em combate. Em vez de zombar dele, melhor teria sido se eu me dedicasse a limpar suas botas. Posso acrescentar que não gostei do tempo que passei na companhia comandada por ele. Wallie tinha uma verdadeira paixão por matar alemães, e um completo desrespeito pela segurança não só sua como dos outros. Estava sempre arquitetando ideias brilhantes, diante das quais nós os oficiais subalternos ficávamos arrepiados. Felizmente ele era bem facilmente dissuadido por qualquer argumento plausível que nos ocorresse.

Tal era sua coragem e inocência que jamais, nem por um instante, desconfiava de qualquer motivo nosso que não fosse militar. Jamais poderia assimilar os princípios de boa vizinhança que, pelo acordo tácito das tropas, sabia-se governar a guerra de trincheiras, e aos quais fui apresentado imediatamente pelo meu sargento. Eu havia sugerido "despachar" uma granada de rifle contra uma posição alemã, onde víramos cabeças se mexendo. O sargento replicou: "Como o sinhô quisé. Só que assim que o sinhô começá a fazê esse tipo de coisa, a gente vai começá a levá bomba também, sabe?"

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O trem militar que partia de Rouen - aquele trem interminável, que viajava a menos de vinte quilômetros por hora e no qual não se viam dois vagões iguais - saía perto das dez horas da noite. Eu e mais três outros oficiais ficamos numa cabine. Não havia aquecimento; luz só das velas que nós mesmos levávamos; e para sanitários, as janelas. A viagem duraria cerca de quinze horas. O frio era enregelante.

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Sobre a guerra em si - já tantas vezes descrita por gente que presenciou mais dela que eu - devo falar pouco aqui. Até o grande ataque alemão na primavera, vivemos um período incrivelmente calmo. E mesmo então eles atacaram não as nossas posições, mas as dos canadenses que estavam à nossa direita, simplesmente "mantendo-nos calados" com saraivadas contra nossa linha ao ritmo de três bombas por minuto - durante todo o dia.

Acho que foi nesse dia que reparei como um pavor maior reduz o menor à insignificância: um rato que vi (um pobre ratinho tiritante, como eu não passava de um pobre homem tiritante) nem tentou fugir de mim. Ao longo do inverno, o cansaço e a água eram nossos principais inimigos. Consegui dormir marchando, despertaram-me e surpreendi-me ainda marchando. O soldado andava nas trincheiras em botas de borracha de cano alto, com água acima do joelho; impossível não lembrar a torrente gelada enchendo a bota quando você a perfurava num arame farpado.

A familiaridade tanto com os mortos muito antigos quanto com os muito recentes confirmava aquela ideia de cadáver que eu concebera no momento em que vi minha mãe morta. Passei a conhecer, a prantear, a respeitar o homem comum: especialmente o querido sargento Ayres, que (suponho) foi morto pela mesma granada que me feriu. Eu era um oficial fútil (distribuíam-se patentes com excessiva facilidade na época), um fantoche manipulado por ele, que acabou transformando essa relação ridícula e dolorosa em algo belo; tornou-se para mim quase um pai.

Mas quanto ao resto, a guerra - os sustos, o frio, o cheiro dos explosivos, os homens horrendamente mutilados se movendo como besouros meio esmagados, os cadáveres sentados ou de pé, a paisagem de terra arrasada, sem uma folha sequer de capim, as botas calçadas dia e noite até parecerem andar sozinhas - tudo isso me surge em imagens raras e desbotadas na lembrança. É tudo alheio demais ao restante do meu passado, e muitas vezes me parece ter acontecido a outra pessoa, não a mim. De certa forma, é até irrelevante. Um instante de imaginação parece hoje importar mais que as realidades subsequentes. Foi a primeira bala que ouvi - de mim tão distante que "gania" como a bala de um jornalista ou de um poeta dos tempos de paz. Naquele momento havia algo não exatamente como o medo, menos ainda como a indiferença: um sinalzinho tremulante que dizia: "Isso é Guerra. Foi sobre isso que Homero escreveu."

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A NOVA FISIONOMIA

O restante das minhas experiência bélicas pouco tem a ver com este relato. De como "capturei" cerca de 60 inimigos - ou seja, descobri, para grande alívio meu, que a multidão de espectros cinzentos que subitamente surgiram do nada traziam todos as mãos erguidas -, isso não merece menção, senão como piada. Pois Falstaff não "capturou" sir Colville of the Dale? Tampouco interessa ao leitor saber como acabei indo para casa por conta de uma granada inglesa, ou como a lindíssima irmã N., do C.C.S. (Centro de Tratamento de Feridos), desde então personifica minha ideia de Ártemis.

Duas coisas sobressaem. Uma é o momento, logo depois de ter sido atingido, em que achei (ou pensei achar) que não estava mais respirando, concluindo que aquilo era a morte. Não senti medo algum, mas também coragem alguma. Não me parecia ocasião para nenhum dos dois sentimentos. A afirmação - "Eis aqui um homem à morte" - surgiu-me na mente tão seca, factual e desprovida de emoção quanto algo que se lê num livro didático. Nem sequer foi interessante.

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Voltei a Oxford - desmobilizado - em janeiro de 1919.

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Quanto à Alegria, rotulei-a "experiência estética" e conversei muito sobre ela usando esse nome, dizendo que era muito "valiosa". Mas me vinha muito raramente e, quando vinha, não empolgava muito.

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Nossa geração, a geração dos soldados que regressaram da guerra, começou a passar. Oxford se encheu de novos rostos. Os calouros passaram a encarar com histórica complacência o nosso deturpado ponto de vista. O problema da carreira profissional assomava maior e mais lúgubre.


Mais:
Vida de C.S. Lewis
http://docs.google.com/file/d/0BxwrrqPyqsnIUG9hVUhtMXpieEk