quarta-feira, 24 de janeiro de 2018

Adeus às armas

Trechos de Adeus Às Armas (1929), de Ernest Hemingway.


O ano seguinte trouxe numerosas vitórias. Conquistaram as montanhas que estavam no fundo do vale, e a colina, com sua floresta de castanheiros. As vitórias se repetiram além da planície, ao sul do planalto, e em agosto pudemos atravessar o rio e ficar em uma casa de Gorizia, onde havia uma fonte e um jardim com árvores frondosas, cercado por um muro, e glicínias junto à casa. Agora se combatia nas montanhas vizinhas, situadas a menos de uma milha. A cidade era bonita e nossa casa era muito agradável. Atrás passava o rio, e a cidade tinha sido conquistada brilhantemente, mas as montanhas de mais adiante eram inexpugnáveis, e me alegrei por ver que os austríacos tinha o desejo de, uma vez terminada a guerra, habitar ali algum dia, porque se eles bombardeavam o local não era para destruir, mas apenas para fins estratégicos.

Os habitantes continuavam nela. Havia hospitais e cafés, artilharia nas ruas afastadas e dois prostíbulos: um para a tropa e outro para os oficiais. Ao final do verão, as noites frescas, os combates nas montanhas por trás da cidade, a ponte ferroviária, destruída pelas granadas, o túnel desabado ao lado do rio onde há pouco se tinha combatido, as árvores ao redor da praça, a extensa avenida de árvores que conduzia a ela, tudo isto, sem falar das mulheres da cidade, do rei que passava de automóvel e ao qual era possível ver o rosto, seu longo pescoço e seu queixo acinzentado, como um cavanhaque; além disso, a visão imprevista do interior das casas as quais o bombardeio deixara, em sua maior parte, sem uma de suas paredes, os entulhos e os escombros nos jardins e nas ruas, as vitoriosas operações no Carso; estes fatos faziam deste um outono muito diferente do anterior, quando vivíamos no campo. A guerra também se modificara.

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A ofensiva começaria dentro de dois dias e eu teria que ir a Plava com as ambulâncias. Há muito tempo que eu não escrevia para os Estados Unidos e sabia que tinha que fazê-lo, mas havia demorado tanto que agora achava muito difícil escrever. Além disso, eu não tinha algo a dizer.

Mandei duas ou três cartas militares, Zona di Guerra, das quais suprimi tudo menos "Estou bem". Isto os faria ter paciência. Na América estas cartas fariam muito sucesso: eram estranhas e misteriosas. Nosso setor também era estranho e misterioso. Pensei que, comparado com outras guerras com a Áustria, o lugar em que nos encontrávamos era perigoso, ainda que bem dirigido. O exército austríaco fora criado para proporcionar vitórias a Napoleão, qualquer Napoleão. Eu gostaria que houvéssemos tido um Napoleão, mas em seu lugar tínhamos o general Cadorna, gordo e feliz, e Vittorio Emmanuele III, o homenzinho de pescoço longo e cavanhaque. Do outro lado, na ala direita do exército, tinham o duque de Aosta. Talvez fosse charmoso demais para ser um bom general, mas de qualquer maneira tinha um aspecto varonil. Muitos gostariam de tê-lo como rei. Mas era apenas primo do rei e mandava no Terceiro Exército. Nós pertencíamos ao Segundo Exército. O Terceiro Exército tinha algumas baterias inglesas.

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Às vezes matavam os condutores das ambulâncias inglesas. Eu sabia que não me matariam! Pelo menos nesta guerra. Pessoalmente eu não me interessava e não me parecia mais perigosa que uma guerra de cinema. Deus sabe que eu gostaria que terminasse. Talvez ocorresse neste verão. Talvez os austríacos cedessem. Nas guerras anteriores sempre cederam. O que se passava com esta guerra? Todos diziam que os franceses haviam chegado ao fim. Rinaldi me disse que os franceses se sublevaram e que as tropas entraram em Paris. Perguntei-lhe em que resultara e ele respondeu: "Oh, foram contidos!"

Eu gostaria de ir à Áustria em tempo de paz. Ir à Floresta Negra e ao maciço de Hart. Mas onde fica o maciço de Hart? Lutava-se nos Cárpatos, mas eu não queria ir lá. No entanto, talvez não fosse totalmente desagradável. Eu poderia ir à Espanha, se não fosse pela guerra.

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Falei com o comandante e me inteirei de que, a partir do início da ofensiva, teríamos que conduzir nossas ambulâncias, cheias, ao longo do caminho coberto, até o topo, seguindo a estrada.

No alto da colina encontraríamos um posto e várias ambulâncias para evacuar. Confiava em que o caminho não estivesse interceptado. Só se dispunha de uma pessoa para esta operação. O caminho fora coberto para esta operação, já que, desde o outro lado do rio, estava-se sob o fogo inimigo. Aqui, nas construções, o barranco do rio nos protegia do fogo das metralhadoras. Uma ponte quase derrubada cruzava o rio. Quando começou o bombardeio tinha-se a intenção de construir outra, mas agora as tropas tinham que atravessar os vales, subindo pela curva do rio. O comandante era de baixa estatura e tinha um grande bigode muito retorcido. Participara da guerra contra a Líbia e mostrava duas condecorações por suas feridas. Ele me disse que, se tudo terminasse bem, faria com que me condecorassem.

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Os Estados Unidos declararam guerra à Alemanha, mas não à Áustria. Os italianos tinham certeza de que a América também declararia guerra à Áustria e se interessavam por todos os americanos que chegavam, inclusive os da Cruz Vermelha. Perguntaram-me se o presidente Wilson declararia guerra à Áustria, e respondi que era questão de dias. Eu ignorava quais eram os insultos que recebêramos da Áustria, mas considerava lógico que se lhe declarasse a guerra como à Alemanha. Perguntaram-me se declararíamos guerra à Turquia. Respondi que não tinha muita certeza.

- Turkey [peru em inglês] - eu disse - é nossa ave nacional.

Mas, traduzido, o jogo de palavras soava muito ruim; pareciam não compreendê-lo e desconfiar, assim que eu disse que sim, que provavelmente declararíamos guerra à Turquia.

- E a Bulgária?

Havíamos bebido vários copos de conhaque e respondi que sim, em nome de Deus, que à Bulgária e ao Japão.

- Mas - disseram - o Japão é aliado da Inglaterra. Não se pode confiar nesses malditos ingleses.

- Os japoneses cobiçam as ilhas do Hawaii - eu disse.

- Onde ficam as ilhas do Hawaii?

- No Oceano Pacífico.

- Por que os japoneses querem essas ilhas?

- Não as querem de maneira alguma - eu disse -. São meras formalidades. Os japoneses são uns homenzinhos estupendos e simples que apreciam a dança e os vinhos leves.

- Como os franceses - disse o comandante -. Retomaremos Nice e Saboia dos franceses.

- Reconquistaremos a Córsega e toda a costa Adriática - acrescentou Rinaldi.

- Itália conhecerá novamente os esplendores de Roma - disse o comandante.

- Não gosto de Roma - respondi -. Faz muito calor e há muitas pulgas.

- Você não gosta de Roma?

- Sim, eu gosto de Roma. É a mãe das nações. Nunca me esquecerei de Rômulo sendo amamentado no Tibre.

- Quê?

- Nada.

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Napoleão varreu os austríacos nas planícies. Nunca os atacara nas montanhas. Ele os teria deixado descer e açoitá-los-ia perto de Verona. Mas no front ocidental não açoitavam quem quer que fosse. Hoje em dia era impossível ganhar as guerras de tal maneira. Talvez continuássemos indefinidamente. Talvez fosse uma nova Guerra dos Cem Anos.

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Na cidade houve duas manifestações contra a guerra e, em Turim, um motim considerável. Um comandante inglês me disse um dia, no clube, que os italianos perderam cento e cinquenta mil homens no planalto de Bainsizza e em San Gabriele.

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- Onde viveremos depois da guerra?

- Provavelmente em um asilo para anciões - eu disse -. Durante três anos esperei ingenuamente que a guerra terminasse no Natal. Mas agora já não espero que acabe antes que nosso filho seja tenente.

- Talvez chegue a general.


Mais:
http://docs.google.com/file/d/0BxwrrqPyqsnIbjU1cHRzT2xQcUU
http://www.youtube.com/watch?v=KT1RIeg5WL0