domingo, 22 de outubro de 2017

O Oriente Médio

Trechos de O Oriente Médio (1996), de Bernard Lewis.


A I Guerra Mundial foi a última que o Império otomano travou como grande potência entre grandes potências. Em fins de outubro de 1914, navios de guerra turcos, acompanhados por dois cruzadores alemães, bombardearam os portos russos de Odessa, Sebastopol e Theodosia, no mar Negro. O sultão-califa proclamou uma jihad contra todos os que pegassem em armas contra ele e seus aliados. A Grã-Bretanha, a França e a Rússia, as três principais potências Aliadas, governavam vastas populações muçulmanas na Ásia central, norte da África e Índia. Os turcos e seus aliados alemães alimentavam a esperança de que esses súditos muçulmanos respondessem ao apelo da jihad e se levantassem contra seus senhores imperiais. Na verdade, não fizeram nada disso e os otomanos foram obrigados a enfrentar o poder da Rússia imperial e da Grã-Bretanha imperial nas suas fronteiras oriental e meridional.

No princípio, as coisas correram bem para os turcos. Em dezembro de 1914, eles iniciaram uma ofensiva na região oriental da Anatólia, capturaram Kars, cedida à Rússia em 1878 e, por algum tempo, ocuparam a cidade de Tabriz, no Irã, tomada dos russos, que vinham operando com toda liberdade nesse país, a despeito da neutralidade que o governo do xá proclamara, mas que era fraco demais para cumprir. No sul, em inícios de 1915, forças otomanas procedentes da Palestina cruzaram o deserto do Sinai e atacaram o canal de Suez, no Egito ocupado pelos britânicos.

Esses sucessos, no entanto, tiveram curta duração. No leste, os russos contra-atacaram com grandes efetivos e, com ajuda local, ocuparam e mantiveram por algum tempo a cidade de Van. No sul, o ataque turco ao canal de Suez foi repelido pelos britânicos que, enquanto isso, haviam enviado da Índia uma expedição ao golfo Pérsico. No dia 22 de novembro de 1914, uma força britânica ocupou o que era na ocasião o porto otomano de Basra. O objetivo imediato britânico era proteger o oleoduto que descia do Irã, mas este sucesso inicial encorajou planos mais ambiciosos. Em 1915, forças britânicas ocuparam certo número de cidades às margens dos rios Tigre e Eufrates e iniciaram o avanço para o norte, na direção de Bagdá.

Entrementes, os otomanos enfrentavam um ataque muito mais perigoso, a uma curta distância da capital. Em fevereiro de 1915, os britânicos iniciaram uma operação naval na área dos Dardanelos e ocuparam a ilha de Lemnos, onde estabeleceram uma base. Na primavera e verão, tropas britânicas e australianas desembarcaram em certo número de lugares na península de Galipoli, numa audaciosa tentativa para romper as defesas otomanas nos Estreitos e estabelecer contato com os russos no mar Negro.

Em fins de 1915 e princípios de 1916, a situação melhorou bastante para os otomanos. Os russos foram expulsos de Van, os britânicos amargaram uma derrota e tiveram que se render no Iraque, e as forças do sultão lançaram o segundo ataque contra o canal de Suez. Em princípios de 1916, após violenta luta e pesadas baixas, os britânicos e australianos retiraram-se de Galipoli e abandonaram a tentativa de forçar a abertura dos Estreitos.

A longo prazo, no entanto, prevaleceu o poder superior dos Aliados. Após a Revolução Russa de 1917, diminuiu a pressão do leste, mas o avanço britânico a partir do sul não pôde mais ser detido.

Durante todas essas lutas e sublevações, a vasta maioria dos súditos do Império otomano, quaisquer que fossem suas identidades étnicas e religiosas, permaneceu leal. Houve, contudo, duas exceções, dos armênios na Anatólia e dos árabes no Hijaz, na Arábia. Mesmo entre os armênios e árabes, contudo, a maioria era pacífica e ordeira, e os homens serviam nos exércitos do sultão. Entre os líderes nacionalistas de ambos os grupos, porém, havia alguns que viam na guerra a oportunidade de sacudir o jugo otomano e obter independência nacional. Evidentemente, esse desejo só podia ser realizado com ajuda das potências europeias, que eram nesse momento inimigas do sultão. Em 1914, os russos formaram quatro grandes unidades constituídas de voluntários armênios, e mais três em 1915. Todas elas, embora principalmente recrutadas na Armênia russa, incluíam armênios otomanos, alguns deles desertores, e figuras públicas bem conhecidas. Uma dessas unidades era comandada por um antigo membro armênio do Parlamento otomano. Bandos de guerrilheiros armênios surgiram em várias partes do país e, em vários locais, as populações armênias se levantaram em rebelião armada, notadamente na cidade anatoliana de Van, no leste, e na cidade ciliciana de Zeytun.

Na primavera de 1915, quando rebeldes armênios ganharam o controle de Van, os britânicos voltaram aos Dardanelos, os russos atacaram no leste e outra força britânica avançou, aparentemente, na direção de Bagdá, o governo otomano resolveu determinar a deportação e relocalização da população armênia da Anatólia - costume este tristemente conhecido na região desde os tempos bíblicos. Algumas categorias de armênios, juntamente com suas famílias, no entanto, foram declarados isentos de deportação: católicos, protestantes, operários das estradas de ferro e membros das forças armadas. A grande massa de armênios da Anatólia, que se estendia muito além das áreas em perigo e da ação de grupos suspeitos, no entanto, foi incluída na deportação e nas suas trágicas consequências.

Os deportados sofreram privações indescritíveis. No império em guerra, que passava por uma aguda escassez de material humano, não havia nem soldados nem gendarmes disponíveis, e a missão de escoltar os deportados foi entregue a uma força civil local, recrutada às pressas. As estimativas variam muito quanto aos números, mas não pode haver dúvida de que, pelo menos, centenas de milhares de armênios pereceram, talvez mais de um milhão. A maioria morreu de fome, de doenças e de exposição às intempéries; grandes números deles foram brutalmente assassinados, fosse por membros de tribos locais e aldeões, por negligência ou cumplicidade da escolta indisciplinada, que nem recebia soldo nem alimentos, ou pela própria escolta.

Parece que o governo central otomano fez algum esforço para controlar esses excessos. Os arquivos contêm telegramas de altas autoridades, preocupadas com a prevenção ou punição de atos de violência contra os armênios. Incluem eles registros de quase 1.400 julgamentos em cortes marciais, nos quais pessoal civil e militar foi julgado e condenado, alguns deles à morte, por crimes contra os deportados. Esse esforço, no entanto, produziu efeito apenas limitado e a situação foi com certeza agravada pelo rancor acumulado em décadas de conflito étnico e religioso entre os armênios e seus vizinhos outrora pacíficos. As cidades de Istambul e Ismir ficaram fora das ordens de deportação, como também grande parte da Síria e Mesopotâmia otomanas, para onde foram levados os deportados que sobreviveram.

A revolta árabe contra o domínio otomano ocorreu em terreno mais bem escolhido, foi mais bem planejada, teve sincronização melhor e contou com mais apoio do que a dos armênios. Enquanto os armênios estavam agrupados no coração da Turquia, em meio a uma população predominantemente muçulmana na Ásia, a revolta árabe começou no Hijaz, na Arábia, em uma província semi-autônoma, governada por um potentado árabe hereditário, o sharif Hussein, em território exclusivamente árabe e muçulmano, e incluiu Meca e Medina, os dois locais mais sagrados do islã. E contou com a vantagem adicional da grande distância dos centros de poder otomano e de fácil acesso para os britânicos, que se encontravam no Egito. Os rebeldes árabes tinham também algo de útil para oferecer aos britânicos e só depois de longas e cuidadosas negociações é que, em 1917, o sharif proclamou a independência do Hijaz e, mais tarde, proclamou-se "Rei dos Árabes". O governo britânico, que em cartas a Hussein fizera certas promessas a respeito de uma mal definida independência árabe, endossou a proclamação.

A importância militar de alguns milhares de irregulares beduínos, em batalhas que envolviam enormes exércitos regulares, pode ter sido diminuta, embora a importância moral de um exército árabe combater os turcos e, ainda mais, o governante de lugares sagrados denunciar o sultão otomano e sua chamada jihad, foi imensa e de valor especial para os impérios britânico e, incidentalmente, francês, na manutenção da autoridade que exerciam sobre súditos muçulmanos. A revolta árabe, além disso, teve melhor sincronização e coincidiu com a grande retirada das forças otomanas de todas as províncias árabes. Talvez mais importante que tudo, os árabes tiveram mais sorte em matéria de patrocinadores. Os britânicos, ao contrário dos russos, não haviam sido debilitados por uma revolução interna e puderam ir até o fim em ajuda militar. Já o cumprimento subsequente das promessas políticas era outro assunto, mas, pelo menos, salvou os rebeldes árabes de uma vingança otomana.

Em fins de 1916, forças britânicas avançaram do Egito para a Palestina otomana, enquanto outra força desembarcava no Iraque e reiniciava o interrompido avanço para o norte. Na primavera de 1917, forças britânicas haviam ocupado Bagdá, no Iraque, e Gaza, na Palestina. Em dezembro de 1917, capturaram Jerusalém e, em outubro de 1918, Damasco. No dia 29 de outubro de 1918, após três dias de negociação preliminar, uma delegação otomana subiu para bordo do navio de guerra britânico HMS Agamemnon, ancorado em Mudros, na ilha de Lemnos. No dia seguinte, assinaram um armistício.

A I Guerra Mundial assinalou a culminação da retirada do islã diante do avanço do Ocidente. O Irã, embora oficialmente neutro, foi devastado por soldados estrangeiros, com ajuda de forças auxiliares locais. Nas terras otomanas, esta guerra final, tal como acontecera com a Guerra da Crimeia, ocasionou um envolvimento mais intenso com a Europa e a aceleração de todos os processos de mudança. Mas, ao contrário da Guerra da Crimeia, terminou em derrota e os turcos foram obrigados a entregar seus territórios árabes à Grã-Bretanha e à França. Só em suas terras natais na Anatólia é que conseguiram desafiar os vitoriosos e, após uma luta, fundar uma república turca independente.

Os anos transcorridos entre 1918 e 1939 [...]

Esse período começou com o colapso ou, mais exatamente, a destruição da velha ordem que, tanto para melhor quanto para pior, prevalecera durante quatro séculos ou mais em grande parte do Oriente Médio. Os otomanos, construindo sobre a obra de seus predecessores, haviam erigido uma estrutura política que perdurara e um sistema político que funcionara. Tinham criado também uma cultura política que era bem compreendida e na qual cada grupo e, na verdade, cada indivíduo, sabia qual sua posição, poderes e limites e, mais importante ainda, o que devia e lhe era devido, a quem e por quem. O sistema otomano enfrentara tempos ruins, mas, a despeito de numerosas dificuldades, continuava a funcionar. Perdera a lealdade e aceitação da maioria de seus súditos cristãos, mas era ainda aceito como legítimo pela maior parte da população muçulmana. Nas últimas décadas, a ordem otomana começava a demonstrar sinais de recuperação e mesmo de melhoramento. Os aprimoramentos que porventura houvesse, no entanto, foram desviados e interrompidos pelo envolvimento do país na I Guerra Mundial e pelo resultante fim do Império - o colapso do Estado e o desmembramento de seus territórios.

Desde a chegada da expedição do general Bonaparte ao Egito, em fins do séc. XVIII, o curso dos fatos no Oriente Médio fora profundamente influenciado e, em tempos de crise, dominado pelos interesses, ambições e ações das Grandes Potências europeias. Quando os otomanos finalmente partiram, e as potências ocidentais se estabeleceram inequivocamente como governantes da região, as rivalidades imperiais assumiram uma forma nova e mais direta.

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Clareando a fumaça da batalha e as névoas da diplomacia no cenário do Oriente Médio após a I Guerra Mundial, tornou-se visível que haviam ocorrido grandes mudanças. Algumas delas trouxeram nova esperança a povos dominados por impérios orientais e ocidentais. [...]

Essas esperanças, no entanto, rapidamente se desvaneceram.

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[...] em 1919, quando um oficial turco chamado Mustafá Kemal, que mais tarde adotou o sobrenome Ataturk, organizou e liderou um movimento de resistência no coração da Anatólia contra invasores e ocupantes estrangeiros. Em uma série de vitórias notáveis, conseguiu expulsar do país as forças estrangeiras, anular o tratado de paz draconiano imposto pelos vencedores ao governo do sultão e, desde que este se recusara a alinhar-se com as novas forças, aboliu o sultanato e proclamou a república. Sob a liderança de Ataturk, a república implantou e executou um exaustivo e extenso programa de modernização e - o único no mundo muçulmano - secularização.

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Ao fim da I Guerra Mundial, a comunidade judaica, antiga e nova, alcançara proporções consideráveis. O governo britânico concedeu à ideia sionista reconhecimento formal com a Declaração Balfour, de novembro de 1917, manifestando o apoio do governo ao projeto de estabelecimento de um não definido "Lar Nacional para os Judeus". Os termos dessa promessa foram incorporados no mandato da Liga das Nações, sob o qual os britânicos administravam a Palestina. A promessa e sua implementação deram uma dimensão especial à luta árabe contra o mandato britânico e a presença judaica.


Mais:
http://www.biblebelievers.org.au/moongod.htm
http://www.crisismagazine.com/2016/was-muhammad-a-false-prophet
http://www.grupoalmuzara.com/a/fichalibro.php?libro=3026&edi=1