domingo, 8 de outubro de 2017

O Imperador Guilherme

Trechos de 'O Imperador Guilherme', uma das crônicas de Ecos De Paris (1905), de Eça de Queirós.


Com efeito, desde que subiu ao trono, Guilherme II, imperador e rei, ainda não deixou de atrair e reter sobre si a curiosidade do mundo, uma curiosidade divertida e arregalada de público que espera surpresas e lances - como se esse trono da Alemanha fosse na realidade um palco vistosamente ornado no Centro da Europa. E esta é até agora a obra pitoresca de Guilherme II - o ter convertido o trono dos Hohenzollerns num palco onde ele constantemente e soberbamente se exibe com caracterizações inesperadas. Bem pode, pois, o sentimental heresiarca da Vida de Jesus [Ernest Renan] lamentar que a morte lhe não consinta assistir, no quinto acto, à solução deste imperador problemático. Pois que, por ora, neste primeiro acto de três anos, desde que ele trilha o seu palco imperial, Guilherme II, pela diversidade e multiplicidade das suas manifestações, só tem revelado que existem nele, como outrora em Hamlet, os germes de homens vários, sem que possamos preconceber qual deles prevalecerá, e se esse, quando definitivamente desabrochado, nos espantará pela sua grandeza ou pela sua vulgaridade. Realmente, neste rei, quantas encarnações da realeza!

Um dia é o rei-militar, rigidamente hirto sob o casco e a couraça, ocupado somente de revistas e manobras, colocando um render da guarda acima de todos os negócios de Estado, considerando o sargento instrutor como a unidade fundamental da nação, antepondo a disciplina do quartel a toda lei moral ou da Natureza, e concentrando a glória da Alemanha na hirta precisão com que marcham os seus galuchos. E subitamente despe a farda, enverga a blusa, e é o rei-reformador, só atento às questões do capital e do salário, convocando com fervor congressos sociais, reclamando a direcção de todos os melhoramentos humanos, e decidindo penetrar na história abraçado a um operário como a um irmão que libertou. E logo a seguir, bruscamente, é o rei de direito divino, à Carlos V ou à Filipe Augusto, apoiando altivamente o seu ceptro gótico sobre o dorso do seu povo, estabelecendo como norma de todo o governo o sic volo sic jubeo, reduzindo a "suma lei à vontade do rei" e, certo da sua infalibilidade, sacudindo desdenhosamente para além das fronteiras todos os que nela não crêem com devoção. O mundo pasma - e, de repente, ele é o rei de corte, mundano e faustoso, atento meramente ao brilho e ordem sumptuosa da etiqueta, regulando as galas e as mascaradas, decretando a forma do penteado das damas, condecorando com a Ordem da Coroa os oficiais que melhor valsam nos cotillons, e querendo volver Berlim num Versalhes donde emane o preceito supremo do cerimonial e do gosto. O mundo sorri - e repentinamente é o rei moderno, o rei século dezanove, tratando de caturra o passado, expulsando da educação as humanidades e as letras clássicas, determinando criar pelo parlamentarismo a maior soma de civilização material e industrial, considerando a fábrica como o mais alto dos templos, e sonhando uma Alemanha movida toda pela electricidade.

Depois, por vezes, desce do seu palco - quero dizer do seu trono - e viaja, dá representações através das cortes estrangeiras. E aí, desembaraçado da majestade imperial, que em Berlim imprime a todas as suas figurações um carácter imperial, aparece livremente sob as formas mais interessantes que pode revestir nas sociedades o homem de imaginação. A caminho de Constantinopla, singrando os Dardanelos, na sua frota, é o artista que em telegramas ao chanceler do império (em que assina imperator rex) pinta, numa forma carregada de romantismo e cor, o azul dos céus orientais, a doçura lânguida das costas da Ásia. No Norte, nos mares escandinavos, entre os austeros fiordes da Noruega, ao rumor das águas degeladas que rolam por entre a penumbra dos abetos, é o místico, e prega sermões sobre o seu tombadilho, provando a inanidade das coisas humanas, aconselhando às almas como única realidade fecunda a comunhão com o eterno. Voltando da Rússia é o alegre estudante, como nos bons tempos de Bona, e da fronteira escreve para Sampetersburgo ao marechal do palácio uma carta em verso, fantasistamente rimada, a agradecer o caviar e as sanduíches de foie-gras colocadas no seu vagão como provido farnel de jornada. Em Inglaterra está em um luxuoso centro de sociabilidade, e é o dândi, com os dedos faiscantes de anéis, um cravo enorme na sobrecasaca clara, borboleteando e furtando com a veia soberba de um D'Orsay. E subitamente, em Berlim, por alta noite, as cornetas soltam ásperos toques de alarme, todos os fios da Agência Havas estremecem, a Europa, assustada, corre às gazetas, e um rumor passa, temeroso, de que "haverá guerra na Primavera". Que foi? No es nada, como se canta no Pan y Toros. É apenas Guilherme II que ressubiu ao seu palco - quero dizer ao seu trono.

O mundo, perplexo, murmura: "Quem é este homem tão vário e múltiplo? O que haverá, o que germina dentro daquela cabeça regulamentar de oficial bem penteado?" E o Sr. Renan geme por morrer talvez antes de assistir, como filósofo, ao desenvolvimento completo desta ondeante personalidade. Assim, Guilherme II se tornou um problema contemporâneo - e há sobre ele teorias como sobre o magnetismo, a influenza, ou o planeta Marte. Uns dizem que ele é simplesmente um moço desesperadamente sedento da fama que dão as gazetas (como Alexandre, o Grande, que, em risco de se afogar, já sufocado, pensava no "que diriam os Atenienses") e que, mirando à publicidade, prepara as suas originalidades com o método, a paciência e a arte espectacular com que Sara Bernhardt compõe as suas toilettes. Outros sustentam que há nele apenas um fantasista em desequilíbrio, arrebatado estonteadamente por todos os impulsos de uma imaginação mórbida, e que, por isso mesmo que é imperador quase omnipotente, exibe soltamente sem que uma resistência vigilante lhos coíba e lhos limite todos os desregramentos da fantasia. Outros, por fim, pretendem que ele é apenas um Hohenzollern em que se somaram e conjuntamente afloraram com imenso aparato todas as qualidade de cesarismo, misticismo, sargentismo, burocratismo e voluntarismo que alternadamente caracterizavam os reis sucessivos desta felicíssima raça de fidalgotes de Brandeburgo.

Talvez cada uma destas teorias, como sucede felizmente com todas as teorias, contenha uma parcela de verdade. Mas eu antes penso que o imperador Guilherme é simplesmente um diletante da acção - quero dizer um homem que ama fortemente a acção, compreende e sente com superior intensidade os prazeres infinitos que ela oferece, e a deseja portanto experimentar e gozar em todas as formas permissíveis da nossa civilização. [...] Hoje que se libertou da dura superintendência do velho Bismarck pode abandonar-se ao seu insaciável diletantismo da acção com a licença "com que o corcel novo (como diz a Bíblia) galopa no deserto mudo". Quer ele o gozo de comandar vastas massas de soldados, ou de sulcar os mares numa frota de ferro? Tem só de lançar um telegrama, fazer ressoar um clarim.

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Tudo pode, porque governa dois milhões de soldados e um povo que só zela a sua liberdade nos domínios da filosofia, da ética ou da exegese, e que quando o seu imperador lhe ordena que marche - emudece e marcha.

E tudo pode ainda porque inabalavelmente acredita que Deus está com ele, o inspira e sanciona o seu poder.

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E a certeza, o hábito desta sobrenatural aliança vai nele crescendo tanto que de cada vez alude a Deus em termos de maior igualdade - como aludiria a Francisco de Áustria, ou a Humberto, rei de Itália. Outrora ainda o denominava, com reverência, o "amo que está nos céus", o "muito alto que tudo manda". Ultimamente, porém, arengando com champanhe aos seus vassalos da marca de Brandeburgo, já chama familiarmente a Deus - o "meu velho aliado"! E aqui temos Guilherme & Deus, como uma nova firma social, para administrar o universo. Pouco a pouco mesmo, talvez Deus desapareça da firma e da tabuleta, como sócio subalterno que entrou apenas com o capital da luz, da Terra e dos homens, e que não trabalha, ocioso no seu infinito, deixando a Guilherme a gerência do vasto negócio terrestre - e teremos então apenas Guilherme & Cia. Guilherme, com supremos poderes, fará todas as operações humanas.

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Ora, se ele dirigisse um império situado nos confins da Ásia, ou se não possuísse na Torre Júlia um tesouro de guerra para manter e armar dois milhões de soldados, ou se estivesse cercado por uma opinião pública tão activa e coercitiva como a da Inglaterra, Guilherme II seria apenas um imperador, como tantos, na história, curioso pela mobilidade da sua fantasia e pela ilusão do seu messianismo. Mas, infelizmente, plantado no Centro da Europa trabalhadora, com centenares de legiões disciplinadas, um povo de cidadãos disciplinados também e submissos como soldados, Guilherme II é o mais perigoso dos reis, porque falta ainda ao seu diletantismo experimentar a forma da acção mais sedutora para um rei - a guerra e as suas glórias. E bem pode suceder que a Europa um dia acorde ao fragor de exércitos que se entrechocam, só porque na alma do grande diletante o fogoso apetite de "conhecer a guerra", de gozar a guerra, sobrepujou a razão, os conselhos e a piedade da pátria.

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Guilherme II está na verdade jogando contra o destino esses terríveis dados de ferro, a que aludia outrora o esquecido Bismarck. Se ganha dentro e fora da fronteira, poderá ter altares como teve Augusto (e de facto também Tibério). Se perde é o exílio, o tradicional exílio, em Inglaterra, o cabisbaixo exílio, esse exílio que ele hoje tão duramente intima àqueles que discrepam da sua infalibilidade.

E não se mostraram já os prenúncios vagos do desastre?

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Onde estão os tempos em que Hegel considerava a autocracia prussiana quase como uma parte integrante da sua filosofia e da ordem do universo? [...] Tudo passou. A metafísica rosna descontente. Das duas grossas pedras angulares da monarquia prussiana, o filósofo e o soldado, Guilherme II hoje só tem o soldado - e o trono, sobrecarregado com o imperador e o seu Deus, pende todo para um lado, que é talvez o do abismo.

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Dentro de anos, com efeito (que Deus faça bem lentos e bem longos), este moço ardente, imaginativo, simpático, de coração sincero e talvez heróico, pode bem estar, com tranquila majestade, no seu schloss de Berlim gerindo os destinos da Europa, ou pode estar, melancolicamente, no Hotel Metrópole, em Londres, desempacotando da maleta do exílio a dupla coroa amolgada da Alemanha e da Prússia.


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