domingo, 23 de fevereiro de 2014

Cruel e magnífica

Trechos de Minha Mocidade (1930), de Winston S. Churchill. A tradução é do "corvo" Carlos Lacerda.


É uma pena, realmente, que a guerra, em sua marcha voraz, baixa e oportunista, tenha relegado tudo isso e se tenha voltado para os químicos de óculos ou os mecânicos que manobram alavancas de metralhadora ou de avião. Mas, em Aldershot, em 1895, nenhum desses horrores afligia o gênero humano. Os dragões, os lanceiros e, acima de tudo, segundo nos parecia, os hussardos, aspiravam ainda ao lugar de honra no campo de batalha. A guerra, que era cruel e magnífica, tornou-se cruel e sórdida. Na verdade, estragaram-na completamente. Toda a culpa é da democracia e da ciência. A partir do momento em que se permitiu a uma dessas intrigantes semeadoras de distúrbios tomar parte no próprio combate, adeus nobreza da guerra! Em vez de um pequeno número de profissionais perfeitamente adestrados, defendendo a causa de sua pátria, com armas antigas, e a surpreendente complicação das manobras arcaicas, apoiadas a cada instante pelos aplausos do país, vemos agora populações inteiras, inclusive mulheres e crianças, lançadas umas contra as outras num brutal extermínio do qual só conseguem escapar alguns burocratas de olhos remelentos, que sobram para fazer a escrita da carnificina. Desde o momento em que a democracia foi admitida, ou antes, se fez admitir no campo de batalha, a guerra deixou de ser um esporte de gentlemen; que vá para o diabo, então! E que venha a Liga das Nações.

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Às vezes fico pensando se outras gerações teriam assistido a uma revolução de valores de fatos tão completa quanto a que atravessamos. Praticamente nenhuma das noções estabelecidas, que haviam me ensinado a considerar permanentes e vitais, ficou de pé. Em compensação, tudo o que eu considerava impossível, ou me ensinaram a considerar impossível, veio a acontecer.

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Naquele tempo nos parecia real o perigo (era assim que nós, os jovens oficiais, o considerávamos) de que os governos liberais e democráticos tornassem a guerra impossível. Cedo, porém, havíamos de verificar que esse receio era ilusório. A era da paz chegava ao fim, e guerras não faltariam. Viriam guerras em quantidade, até mesmo guerras demais. Poucos dos jovens e ardentes alunos de Sandhurst promovidos a oficiais, e de jovens oficiais que nessa época e mais tarde se alistaram no serviço de S. Majestade, cheios de esperanças, haviam de sobreviver às horríveis provações que lhes reservava o destino. As pequenas escaramuças da fronteira hindu e do Sudão atraíam o exército britânico. Mas a guerra sul-africana deveria atingir proporções capazes de satisfazer plenamente as ambições de nosso pequeno exército. E, depois de tudo isso, teríamos ainda que enfrentar o dilúvio!

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Os homens da atual geração, maltratados, mutilados e fatigados pela guerra, talvez não compreendam as deliciosas sensações e o ardente entusiasmo com que um jovem britânico, educado numa era de paz, partia para o primeiro contato com um verdadeiro teatro de operações.

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Sempre me lembro de tê-lo ouvido dizer que nunca mais haveria guerra entre povos civilizados. "Vi frequentemente os países chegarem a extremos, mas sempre aconteceu alguma coisa para detê-los." [...] Três ou quatro vezes pude verificar que tinha razão. Era a conclusão natural de uma vida vivida na época vitoriana. No entanto, dia chegou em que o mundo mergulhou em águas muito mais profundas, águas que Lord William Beckford e seus contemporâneos jamais teriam podido sondar.

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Essa guerra era cheia de imprevistos e incidentes palpitantes. Não era como a Grande Guerra. Ninguém pensava em ser morto. Aqui e ali, em cada regimento ou cada batalhão, meia dúzia, vinte, na pior hipótese, trinta ou quarenta homens teriam que pagar tributo à guerra. Mas, para a massa dos que combatiam nas pequeninas campanhas do Império Britânico, nessa época descuidosa e desaparecida, a guerra não era mais do que um esporte e um jogo atraente. A maioria dentre nós iria tomar parte numa guerra em que o acaso desempenhava outro papel, onde a morte era regra geral, os ferimentos graves eram considerados uma felicidade, onde brigadas inteiras eram ceifadas pela onda de aço da artilharia e da metralha, e onde os sobreviventes de um furacão sabiam que, na certa, deveriam sucumbir no furacão seguinte.

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Com Lord Salisbury desapareceriam muitas coisas. Sua renúncia e sua morte marcam o fim de uma época. Um novo século de tempestade e perturbações já empolgava o Império Britânico num feroz turbilhão.

O mundo que Lord Salisbury governara, os tempos e as cenas que descrevi neste volume, a estrutura e o caráter do Partido Conservador, os fundamentos da classe britânica, tudo isso seria em breve separado de nós por precipícios e abismos como raramente se formaram em tempo tão curto. Mal podíamos prever a força dessa torrente que nos arrastaria e nos separaria com ímpeto irresistível; e menos ainda as horríveis convulsões que iriam sacudir o mundo e despedaçar o arcabouço do século XIX. De qualquer modo, Percy previa acontecimentos que não estava destinado a presenciar. [...] E ele predizia, com estranha segurança, uma era de guerras tremendas, de terrores incomensuráveis e renovados. Empregou a palavra Armageddon, que até então eu só vira na Bíblia.



Mais:
http://docs.google.com/file/d/0BxwrrqPyqsnISE1OaEE2R3hXdmc