quinta-feira, 8 de maio de 2008

História regional da infâmia

(divagação inspirada pelo 18° Cine Ceará, ocorrido em abril, cujo tema foi o cangaço)

Aqui pelo NE, é bastante conhecido um culto a abortos e a aleijões da História. Antônio Conselheiro e o arraial de Canudos, cangaço, padre Cícero, José Lourenço e o sítio Caldeirão, dentre outros. Existe toda uma aura mística em torno dos antigos celerados molambentos com o emblemático chapéu em meia-lua e o peito cruzado por cartucheiras. Além dos beatos fanáticos que lideravam hordas de camponeses absurdamente ignorantes e miseráveis pelo sertão afora.

Seqüelas do hype, podemos observar os seguintes estereótipos, propagados com gosto de gás por néscios de vários lugares:

1) A imagem do cabra-macho, que resolve as mais corriqueiras pendências na ponta da peixeira.

2) Uma terra de pobreza extrema e generalizada, com forte tendência a parir insurreições do populacho.

É de se estranhar que a maioria do pessoal de cá identifique estandartes sagrados em tais mazelas.

Num cacoete de universitário bicho-grilo, primatas do pretérito imperfeito nordestino são alçados à condição de heróis e revolucionários, vingadores de um povo sofrido tiranizado por autoridades e riquinhos sádicos. Ainda que não passassem de reles [broncos, famintos, fedidos, desdentados, assassinos, estupradores, bandoleiros, delinqüentes, degoladores] mergulhados em atitudes desesperadas que eram a reação inepta a um meio hostil. Há por aí manifestações, ditas artísticas, de baixíssima estatura que dão o maior valor colocar os mongos do semi-árido em um pedestal, romancear e poetizar seus feitos.

E são ridículos demais os adeptos da idolatria da miséria. Seres da cidade grande, bem nascidos, criados à base de leite Ninho e rodeados pelo asfalto quente e pelas elevações de concreto. Mal termina a fase de queda dos dentes e entram em cena as calças jeans rasgadas, as alpargatas, a falta de asseio e as camisetas com foto do argentino Ernesto Guevara. Os papais, que ralam que só uma pinóia para dar um bom padrão de vida para sua gente, talvez achem bonitinho e coisa da idade as preferências de suas crias alarves. Errado. Prosélitos mais velhos também são vítimas da patologia.

Sim, tranqueira demais que um xexelento com acesso a [internet banda larga, telefonia 3G, LAN houses, boas livrarias e bibliotecas, cinemas multiplex, bons cursos na área de tecnologia, escolas de idiomas] crie uma fixação em simpatizar com o que de mais [retrógrado, caduco, deletério, vulgar, constrangedor, criminoso] nossa terra já teve a desgraça de gerar. E não adianta espernear nem fazer cara de choro, os recursos anteriormente mencionados foram proporcionados pelo desenvolvimento da brincadeirinha de oferta-procura-correr-atrás-de-grana. Comédia é ver que os que renegam e repudiam o atual modelo de organização são os mesmos que usufruem que é uma beleza dos bens produzidos nele. Já aqueles mitos nativos, que eu saiba, nada acrescentaram de bom nem trouxeram avanço a alguém. Até que houve realizações. Prisões, chacinas, traumas. Além da vergonha eterna para uma região onde muitos parecem é encher o peito de orgulho épico de uma herança marginal. Esses fenômenos são a sujeira que é empurrada para debaixo do tapete. Em vão, pois ela insiste em mostrar sua horrenda cara de bunda para as visitas. Pensem numa gastura.

Celebrar a memória de lixos radioativos como Lampião e Corisco é celebrar [a brutalidade, o subdesenvolvimento, o crime, a penúria, a ignorância, o vandalismo] que proliferaram durante nosso passado destrambelhado e vendê-los maquiados de artigos folclóricos do Mercado Central ou de feirinha do interior.

Na verdade, se dermos uma voltinha pelo mundo, veremos o quão é comum a tietagem envolvendo párias, primitivismo, plebe e bandidagem. De jeito nenhum os tolos admiradores de cangaceiros, de beatos e de riscadores de faca são raridades de zoológico. Há sicilianos que amam os códigos e violências dos mafiosos, gaúchos adoradores de rebeldes separatistas barbudos e decapitadores, norte-americanos fascinados por pistoleiros do Oeste com rostos estampados em cartazes de Procurado vivo ou morto, islâmicos que vêem os sórdidos homens-bomba como santos e mártires. O fã-clube de freak shows regionalistas, seu nome é Legião.