terça-feira, 31 de maio de 2011

Nossos japoneses são mais criativos

Se me perguntarem, considero-me mais sintonizado com o Japão que com o sertão de Inhamuns. Uma coleção de nomes evocativos, como se eu tivesse passeado por lá. Recordo Godzilla, Kamen Rider, biombo com desenho de árvore sakura, chapeuzinho do Raiden, máscaras kabuki, tempero Ajinomoto, Sega, motocas Honda, karaokê, Toshiba, portas corrediças de papel, quimonos, partidas de go, nunchakus, kendo, origami, tatuagens yakuza, bonsai, trem-bala, shamisen, gueixas de leque. Até a grande atriz Joan Fontaine, 5 meses mais nova que meu avô materno, nasceu em Tóquio.

Falo isso porque, na recente festa de aniversário do vô Antonino - 94 anos, artrítico viúvo resmungão bom de garfo e de copo, sobrevivente de: 2 enfartos, 1 ataque de jaguatirica, 1 queda de avião teco-teco, 1 tiro efetuado por jagunço, 1 alcatéia de bisnetos a implorar centavos e 1 noite de mingau de aveia com arsênico preparado por empregadinha ingrata -, encontrei, depois de anos e danos, o primo Gil. Ele virou sozinho 8 garrafas de cerveja e lembramos diversas histórias.

Teve a vez em que combinamos dar umas voltas com a turma de sempre pela Praia de Iracema. Na época, ele servia no Forte Schoonenborch, o mesmo em que esteve presa a Bárbara de Alencar. Fui esperá-lo na calçada em frente, enquanto reparava no desfile de turistas bonitas, as peles dum avermelhado de camarão. Circulavam, segurando contra o vento enormes mapas, registrando em vídeo a paisagem ou apenas conversando, famílias paulistanas, músicos de Bremen, freiras italianas, marinheiros noruegueses, mascates da Síria, estudantes de intercâmbio de Serra Leoa, antropólogos franceses e narcomilicianos da Colômbia - boinas com estrelinha, calças camufladas, coturnos - tirando férias da luta por justiça & paz. Uns cinco minutos e ele apareceu, do tamanho de uma sequóia, mochilão nas costas, cabelo cortado rente na cabeçorra de pitbull e camiseta com um discreto escudo do Exército no lado esquerdo do tórax. Cumprimentou-me com gíria de caserna.

Descíamos pela rua José Avelino, perto de onde funcionava a hoje extinta boate Mystical, a gaiola das loucas, quando topamos com um grupo de japoneses que rodopiavam, discutiam, apontavam para direções opostas. Perdidos. Provavelmente, adeptos de alguma filosofia de Não ser careta, de deixar-se levar pela magia do acaso nos labirintos das cidades estrangeiras ou babaquices do gênero. Camisas floridas, bermudas, bonés, sacolas, incansáveis máquinas fotográficas. Pensem num conjunto que era um estereótipo ambulante, fuzarca de desorientados.

Aproximamo-nos dos asiáticos e eles foram logo pedindo ajuda, informação. Hipótese, pois minha ignorância em relação ao idioma de Matsuo Basho e de Astro Boy era tão alta quanto a taxa de suicídios da terra do sumô. Falha na comunicação. Consegui entender, graças a uma imagem em folder rabiscado de caracteres kanji nervosamente cutucada por dedos indicadores, que eles queriam ir à praça Cristo Redentor. Dura peleja, gesticulamos aos visitantes que os acompanharíamos ao local desejado. O sacana do Gil, aproveitando-se da confusão babélica e tendo a certeza de sair impune, mandou a seguinte, com inexplicáveis trechos em inglês e artificial sotaque arretado:

- Tudo ok, ninja friends. Felicidades. Nós aqui de Fortaleza ser igual a vocês Nippon, também curtir very much acorrentar garotas dopadas e fazer fuk-fuk nelas. Banzai!

Vê se pode. Fiquei estático como um monte Fuji, pelo gosto duvidoso da brincadeira. Com um cenho franzido de quem tomou óleo de rícino ou foi presenteado com livro de crônicas do Arnaldo Branco. Os simpáticos samurais bebedores de saquê, sem compreender patavina do comentário, agradeciam com mesuras e inclinações de arigatô. Caminhamos resolutos, semelhantes a kamikazes rumo à proa de um encouraçado americano.

segunda-feira, 2 de maio de 2011

No país dos ianques

E aquela história de que é possível encontrar um cearense em cada canto do planeta? Bom, conheço a Kamile, que atualmente mora no Porto, entre fados e viúvas de Salazar. Tem o Chico Dalla, que se pirulitou para Osaka, no Japão. Tem o Markos, que passou uma temporada em Lincoln, Nebraska, cercado por gorros de guaxinim. Tem o Ricardo, que correu atrás de esquilos na cidade da Georgia (EUA) cujo nome não lembro. Tem a Jô, que se doutorou em Valladollid, na Espanha. Tem o Fernando, que foi fazer mestrado em Paris. Tem a Clícia, que foi participar de intercâmbio em Pequim. Tem o Carlos, que estuda idiomas em Amsterdã, Roterdã, Balangandã ou algo que o valha. Tem o Wladimir, que residiu durante um semestre em Bruxelas. Tem o Felipe, que trabalhava num hotel em Cancún e conferiu de perto o par de faróis da Salma Hayek.

E houve o escritor Adolfo Caminha. Cearense carioquizado que no finalzinho do século XIX viajou a Nova Orleans e a Nova York. Registrou a visita no relato No País Dos Ianques. Alguns trechos:

"Todos ansiávamos pela chegada ao país maravilhoso dos ianques, ao berço da eletricidade, todos queríamos conhecer de visu o celebrado país das descobertas engenhosas."

"'- Como? Pois no Brasil também se fabricam navios de guerra? Está muito adiantado o Brasil!'. E repetiam com um ar de dúvida e de ironia medindo de alto a baixo e de popa a proa o majestoso cruzador, que balouçava de leve sobre o Mississipi."

"O domingo no país dos ianques é para se divertir, para se descansar, para se jogar o criket, para se passear a cavalo, para se apostar regatas, de modo que o protestantismo americano nada tem de comum com o protestantismo britânico."

"Em tais condições, estrangeiros no meio de uma cidade deserta, imagine-se o nosso embaraço, a triste situação em que nos colocava a curiosidade. Os raríssimos transeuntes que porventura encontrávamos, marinheiros ou vagabundos que desciam para o cais da Battery, olhavam-nos com um ar de surpresa, embasbacados, medindo-nos de alto a baixo, como se fôssemos uns verdadeiros botocudos de tanga e cocar."

"E punha-me, nessa embriaguez do grandioso, a pensar no progresso dos Estados Unidos, desse país modelo, onde tudo move-se por meio de eletricidade e vapor, onde tudo é feito às carreiras, num abrir e fechar de olhos, sem a menor perda de tempo; vinham-me à imaginação escandescida as descobertas de Franklin, de Fulton e de Edison, as maravilhosas experiências sobre o telégrafo, sobre o telefone e sobre o fonógrafo, e eu repetia com os meus botões, mergulhando o olhar na distância, abarcando a cidade inteira: - Grande país!"

"A Broadway é o centro comercial, a rua de maior movimento quotidiano - equivale à City de Londres. Aí é que os carros se atropelam, que os transeuntes se abalroam numa confusão burlesca e indescritível de que a nossa Rua do Ouvidor não dá sequer a menor idéia. Negociantes, capitalistas, banqueiros, corretores, operários e vagabundos acotovelam-se, empurram-se, pisam-se os calos e vão seguindo adiante, sem olhar para trás, carregados de embrulhos, suando no verão, que costuma ser muito forte em Nova Iorque. A gente vê-se abarbada para romper aquela multidão cerrada, compacta e egoísta."

"Um cosmopolitismo sem igual em parte alguma. Americanos, ingleses, espanhóis, franceses, italianos, alemães, gente de todas as nacionalidades, até turcos com os seus costumes esquisitos, confundem-se nas ruas de Nova Iorque, enchendo-as em ondas sucessivas e tumultuosas, como em dias de carnaval no Rio. Parece mesmo, à primeira vista, que o elemento estrangeiro absorve o nacional, tão numeroso é aquele. Custa, porém, a encontrar-se um português ou um brasileiro. Em compensação a raça latina é abundantemente representada por espanhóis da Europa e da América. Os mexicanos, apesar da natural e oculta ojeriza que têm aos americanos dos Estados Unidos, encontram-se a cada passo e distinguem-se logo pelo seu tipo original: estatura média, rosto anguloso e abolachado, moreno, cabelo duro, olhos pequenos; amáveis. Não perdem ocasião de dizer mal dos americanos, que, entretanto, dedicam-lhes uma afeição especial."

"Coney Island aos domingos é para os americanos o que o Bois é para os franceses e Hyde Park é para os ingleses - um interessantíssimo microcosmo de incrível bizarraria, cheio do vago rumor de uma multidão que passeia, que canta, que ri e que bebe ao ar livre, num pêle-mêle vertiginoso, com as suas toilettes claras, com o seu belo ar despretensioso, com os seus gestos largos de quem respira uma atmosfera leve e pura."

"Esse povo verdadeiramente democrático não pede lições a país nenhum: engrandeceu à custa de seus próprios esforços e dia a dia prospera, assombrando o mundo com as suas empresas colossais."
 


O livro é curtíssimo e muito bom. Recomendo uma espiada.

sexta-feira, 1 de abril de 2011

Além do Bojador

Tomar banho todo domingo no chuveirinho dos fundos do cavernoso boteco praiano Ressaca de Tubarão deve ser morte lenta, arriscar-se a terminar igual à madame Curie ou ao elenco de Sangue De Bárbaros. Observação que me ocorre sempre que atravesso a ponte do rio Ceará. Ao redor, um insistente cheiro semelhante ao de salmoura que impregna a avenida Duque de Caxias nas imediações do prédio do DNOCS. É, paisagem insalubre. Saveiros balançam tristes numa massa líquida espumosa e turva que é quase um resíduo de siderúrgica. O ocasional vôo de gaivotas míopes. Sujeitos de aspecto rude descamam pargos e tilápias. A opressiva mudez de um cargueiro inválido, a ferrugem e as cracas que não dão a mínima para seu aventuroso pretérito de contrabando e de capitães com exóticas gripes meridionais. Entre os nativos das Goiabeiras, endemia de micose e de bicho-de-pé.

Com a maré da imaginação, porém, a gente consegue navegar para longe. Do nada, surgem os imponentes destróieres da arrebatadora última parte de Os Canhões De Navarone. A esquadra bombardeia sem piedade o feioso pedaço de cinzento mundo real, que se esboroa como se fosse de papel machê. Isso sim é equipe de edição. A área é reduzida a um monte de fragmentos de um branco de terno de almirante. Ótimo. Vou preenchê-los com um cardume de memórias delirantes. Preparar velas da gávea, içar âncora.

O destino, ao som de ukulele, é o Batoque, o ano é 2006. Eu sob um alpendre de palha, mirando o oceano Atlântico e sorvendo água de coco, único vivente em milhas, herdeiro de duna. A cada 20 minutos, um piloto de motocross riscava uma trilha em frente à barraca, o capacete de viajante espacial, o uniforme com dezenas de logotipos de patrocinadores. Siris e náutilos curtiam o ciclo das ondas. Uma brisa peregrina trazia acordes de reggaeton do Caribe, fedor de marijuana da ilha de Fernando de Noronha e gritos fantasmagóricos das garças e dos biguás que pereceram em demorada agonia no colossal vazamento de óleo na Baía de Guanabara em janeiro de 2000. Para eu não ter uma síncope de tédio, providenciei I) um monstro marinho que às vezes emergia o pescoço guindástico, II) um galeão pirata com o tombadilho repleto de um butim de especiarias, III) testes nucleares em um atol próximo, IV) rumores de especulação imobiliária desordenada no litoral e V) alemães interessados em roubar a patente da rapadura. Foi quando apareceu a Sra. Redonda. É sério, ela andou exagerando. Na caranguejada, nas toneladas de anchova, no sarrabulho, na jaca, no bolo confeitado de três camadas. Entabulou diálogo a gordossaura. Simpática a cetácea figura. A simpatia, republiqueta onde os jaburus costumam exilar-se. Mas até que funcionava, e dava para esquecer por poucos segundos sua total falta de noção e seu abuso de poluição visual na amaldiçoada hora em que escolheu o diminuto traje de verão, feito provavelmente de algum material de nome engraçado, popeline, tactel, pelanc, ops, helanca. Ela resolveu encarar o mar. Novo circunstante, brotou da areia, acho, um moleque fortão com jeito de surfista, talvez o Jonas do caso. Refletindo barulhentamente, comentei: "Espia aquilo, parece um peixe-boi, uma baleia encalhada, uma caravela adernando com excesso de peso. É a Ariel tamanho GG. Vai causar é uma procela com essa batida de pernas. Qualquer problema, vamos precisar de uma operação de dragagem para resgatar a hipopótamo." No que ele devolve: "Você diz, uh, ali, minha mãe?"

Antes que eu desfaleça de vergonha, ou pior, de um mata-leão, uma brainstorming dissolve bruscamente a constrangedora cena e me afoga num redemoinho que me arremessa no banco traseiro de um Celta verde. Julho de 2002. Uma peça do comboio que regressava de uma confraternização no Iguape. 2 pranchas no bagageiro do teto. Céu alaranjado de 5 da tarde. Pelas laterais dos caminhos, perto ou distantes, vimos sítios, bangalôs, carnaúbas, estrela cadente da Texaco, fábrica de suco de fruta cítrica, o ponto das tapioqueiras, silos graneleiros, hortas, moendas, madeireiras, olarias, maquinário das docas. De volta à capital, os contornos de uma cordilheira de edifícios já insinuantes, as janelas indiscretas, as luzes rubras das antenas de telecomunicação. Os tripulantes do veículo digeríamos recordações de bons momentos, barcos contra a corrente, rumo ao passado. O CD player afiado na seleção musical, Spy vs Spy tocando Clarity Of Mind. Na dianteira, o Thiago - ao volante - e o Lu. A meu lado, Debbie, estudante de Biologia e morena mais linda da turma. Dona da risada explosiva que me embargava o estômago, pensem em duas lagostas, as danadas brigando no meu bucho. Em nosso recém-concluído episódio de férias, fotografaram-na a jogar vôlei e pingue-pongue, a fingir-se de vesga, a mergulhar na imensa colcha azul-turquesa e a esquivar-se de lambidas da cachorrinha malhada Sigourney, mascote local cujas fileiras de tetas emprestavam-lhe a aparência da estátua da loba amamentando Rômulo e Remo. Dançou (biquininho letal, cabelo solto), com requebros de sacerdotisa balinesa, Superstylin', do Groove Armada, segurando uma lata de refrigerante com a canhota - o indicador e o polegar da direita em L espetando ritmicamente o alto - e usando grandes óculos escuros que lhe deixavam com ares de mulher-inseto de gibi dos 50s. Eu era caidão por ela. Garota nos trinques, de conversa magnetizante. Descemos na calçada do North Shopping, que fervilhava numa agitada lotação de gafieira. Debbie saboreava um copinho de sorvete. Em meio ao zunzum daquele templo de compre-e-parcele, eu disfarçava minha ansiedade contando piadas corrosivas sobre carecas safenados que xavecavam vendedoras. Declara logo para a diva as intenções, tanga frouxa. Quem quer passar além do Bojador tem que passar além da dor. Pigarreei e lancei a abordagem, meu anzol. Eu encerraria a história agora. Só que o intrometido de um demoniozinho interno, que preza pela veracidade - também senta na primeira cadeira da fila, adora o gestinho de abre aspas e gosta de apagar a lousa para o professor -, puxa-me uma orelha e sopra: colidi com um arrecife de evasivas em que se destacavam cortantes um Não e um Apenas amigos. Náufrago.

domingo, 6 de março de 2011

Entrevista com o vampiro

Na edição de julho de 1997, a extinta revista Bizz (à época, Showbizz) publicou uma entrevista com Ozzy Osbourne. O título dizia Besteirozzy.

Ozzy Osbourne é assim: 47 anos com corpinho de 30. "Duas horas de bicicleta e 500 abdominais todo dia", gaba-se ele, bem à vontade na varanda do quarto do Ritz Carlton Hotel, um dos mais caros em West Palm Beach, Flórida. Ozzy folheia uma revista com mãos trêmulas, resultado “de muitos anos de álcool e cocaína”, segundo o próprio, e os pés pra cima, antes de iniciar a entrevista. O ar blasé desaparece assim que o papo besteirol começa. “Quem bolou aquela entrevista com a princesa Diana, onde você aparece com um pênis na mão?”, pergunto, mencionando um dos famosos vídeos-sátira exibidos antes dos shows de Ozzy. "Ah, isso é coisa minha e da Sharon (esposa e empresária), que adora ferrar com os outros", conta, antes de garantir que a princesa viu e gostou. O cantor inglês, que vive seis meses por ano em Los Angeles, passa longe do que se pode chamar de educação britânica. A palavra que começa com F é sua favorita. "F... isso", "F... aquilo"! Sem falar nos conselhos que dá aos seus cinco filhos. "Já falei pra eles que escola não leva a nada. Eu nunca fui e olha quem eu sou hoje", desafia. Não é à toa que a filharada sempre que pode acompanha os shows do pai no jatinho particular da família. Em West Palm Beach não foi diferente! Todos estavam lá para conferir a segunda edição do Ozzfest, que, como atração principal, contava com a reunião de quase todos os integrantes do Black Sabbath, com Tony Iommi e Geezer Butler. "Todo mundo sempre me pediu uma reunião com os caras e minha resposta nunca deixou de ser sim. Só que eu não ia pegar o telefone e ligar pra ninguém. Aí já é coisa empresarial."

SHOWBIZZ: Por que o baterista Bill Ward ficou de fora e foi substituído por Mike Bordin, do Faith No More?
Ozzy Osbourne: Por mim, Bill seria chamado. Mas parece que Tony Iommi andou excursionando com ele e disse que o cara não toca mais como antigamente.

Durante o Ozzfest você toca quase duas horas com a sua atual banda e depois se junta ao Black Sabbath por mais de uma hora...
É, eu sei que é bastante difícil fazer isso, especialmente quando não estou bem preparado. No show de ontem, por exemplo, perdi a voz na hora do Black Sabbath. Ainda bem que meus fãs sabem todas as letras. Mas o pior foram os mosquitos, que me foderam de tanta mordida.

Antes de começar o show você disse que "eles" pediram pra você não ficar muito louco. Quem são eles?
Minha mulher, Sharon, falou que todo mundo estava ficando puto comigo, porque eu passo dos limites no palco. Daí eu falei: "Sharon, você quer que eu fique com a minha bunda sentada sem fazer nada? Eu sou o que sou, não sigo regras e as pessoas têm que me aceitar desse jeito". Você viu que eu mostrei a bunda no palco?

Imagina... nem reparei! Mas fala, como foi tocar com os velhos companheiros?
É que nem andar de bicicleta! A gente nunca esquece.

Existe a possibilidade de gravarem um álbum juntos?
A gente ainda não conversou sobre isso, mas tudo pode acontecer. Eu agora estou trabalhando numa coletânea minha que deve sair até o fim do ano.

Vocês ensaiaram muito para a volta?
Nós tentamos, mas, ao invés de tocar, começamos a falar dos velhos tempos. A diferença é que agora, em vez de cocaína e maconha, a gente toma chá.

E é melhor assim?
Muito melhor! Eu não podia fazer mais aquilo. Era muito doido! Agora, pelo menos, eu não preciso me tocar quando acordo de manhã pra saber se estou vivo.

Era brabo assim?
O quê? Você não imagina quanta cocaína, álcool e maconha eu botei pra dentro. Parei geral há alguns anos. Não foi uma decisão. Eu simplesmente não penso mais em drogas.

Agora então você acorda numa boa?
Hoje em dia meus filhos me acordam. Eu tenho cinco filhos: de 25, 21, 13, 12 e 11. E eles brigam o tempo todo.

É verdade que o professor de um deles já contou na sala de aula que, em um de seus shows, você pediu para todo mundo cuspir numa tigela e depois bebeu?
Sim. Fiquei puto, é um absurdo um professor dizer uma coisa dessas.

Mas você certamente já explicou a eles como foi que arrancou a cabeça de um morcego, durante a turnê de Diary Of A Madman?
Sim, expliquei essa - achei que o bicho era de plástico - e a do pombinho também. A do pombinho foi numa festa da gravadora CBS (agora Sony Music), acho que em 1981. Eu estava doidão e tinha que soltar dois pombinhos da paz. Soltei um e, não sei por que diabos, resolvi morder o pobrezinho do segundo. Ninguém achou bonito, foi uma vergonha.

Algum de seus filhos já mostrou aptidão musical?
Eu não quero que eles se envolvam com música. Minha filha de 13 anos é a fim do vocalista do Silverchair. Eu vivo dizendo pra ela que ele é gay. Ela fica puta. Mas é brincadeira! Na verdade, eu admiro bastante a banda. O vocalista tem um potencial incrível.

Então você está por dentro das novidades do rock?
Não. É claro que eu tenho uma noção, mas pra mim o rock hoje não tem mais melodia. Eu gosto mesmo é de coisa antiga, tipo Cream, Deep Purple e Beatles, de quem sou fã número um.

O Ozzfest é supergrande! Mais de catorze bandas...
É isso que me deixa louco em festival. É tanta gente no backstage que enche o saco. O pior é aquela galera que fica o tempo todo "aí, Ozzy, vamos fumar um?", e eu não tô mais a fim. Não estou dizendo que sou contra as drogas, mas acho que todo mundo tem poder de escolha.

Você está pensando no futuro? Quais são os seus planos daqui pra frente?
Eu vou voltar pra Inglaterra... Ah, eu acabei de lembrar a primeira vez que fui ao Brasil, que eu não sabia que era tão longe. Não chegava nunca! Eu perguntava pra todo mundo: "Será que pegamos o vôo errado, ou o caminho errado? Não é possível!" Eu achei que estava bêbado, porque foram as horas mais longas que eu já passei num avião.

É isso o que você lembra do Brasil?
Tocar no Rock In Rio foi uma das melhores coisas que já aconteceram na minha vida. Os brasileiros amam música. Eu nunca vou esquecer.

Voltando aos próximos passos...
Eu não vejo a hora de voltar pra Inglaterra e cuidar dos meus animais. Eu tenho um cachorro, Baldrick, que se eu pudesse levava pra todos os lugares. Ele é um poodle inglês muito engraçado. Toda vez que ele me vê, começa a peidar. É um horror... Ele fede pra cacete!

Depois de rever o cachorro, alguma possibilidade de o Ozzfest passar pelo Brasil?
A gente vai tentar levar o festival para o seu país ano que vem. Mas não se preocupe, que o meu cachorro peidão fica.

segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Zé Barbeiro Mãos de Tesoura

O Zé Barbeiro corta meu cabelo desde o tempo em que ruínas da Grécia tinham a ver com Partenon e não com esgotamento financeiro. É herdeiro de uma tradição local de mestres das lâminas. Observo sua efígie grisalha, sua geografia de rugas, seus óculos de cientista louco do expressionismo alemão, sua impecável bata branca, suas mãos quadradas sem perder a leveza jamais, outra de suas calças cáqui, seus antediluvianos mocassins e uma palavra me acerta como um cruzado de Julio César Chávez: Resistente. Ascensoristas, caixeiros-viajantes, instrutores de caligrafia gótica, linotipistas, sósias das Paquitas, foguistas de locomotiva, motoristas de marinete, AOL, N-Gage. E os velhotes acendedores de poste a gás, solitários, magoados pela demissão e inconformados com a extinção das colunas - aposentadas pelo mistério dos watts da energia elétrica - que lhes garantiam o magro salário.

Vejo novamente a cadeira reclinável e de altura ajustável e me lembro da aborígene da tribo Fu estacionada logo atrás de mim ontem numa vagarosa fila do supermercado, tagarelando a mancheias (e eu desarmado, sem meus fones de ouvido), A Fazenda, Justin Bieber, planos para a merreca da pensão alimentícia, pagodão no Cumbuco, tatuagem de henna, gatinho do Facebook, quem me dera, imitando os desenhos animados, amarrar a desclassificada no assento, projetá-la para o alto e avante, furar o teto com a tampa do crânio da estrupício, elevá-la à estratosfera e torcer para que ela fosse atropelada por um meteoro ou por um satélite.

O de sempre, confirmo. Antiga espelunca, um cenário que insiste em desafiar a divindade devoradora de progênie. O soalho pelo qual a vassoura já recolheu incontáveis tufos crespos lisos ondulados. O cilindro do talco com ursinho afrescalhado no rótulo. Os múltiplos espelhos, retângulos fanáticos que não mentem, complicado aturar - supondo-me longevo - o que eles estarão alcagüetando acerca de minha figura daqui a décadas. A caneca com pincelzinho mergulhado no creme de barbear. Maquininhas aparentadas dos ceifadores de grama, vai no 1, 2 ou 3? Apenas laterais? Tudo? Navalhas na carne. Frascos de loção. Pentes. O vidrinho bojudo e de gargalo com mecanismo de bico para borrifar água nos cocurutos. O ritmo de castanhola no ataque da tesoura. Um radinho AM com antena em 45º. Nas paredes, um calendário, um relógio, imagens aleatórias com perfis esnobes, queixos aristocráticos, topetes arranha-céu, um registro P&B da Praça dos Mártires e, o orgulho da casa, a cópia ampliada de um retrato autografado de Dalva de Oliveira ("a melhor cantora do mundo! pode ir nas Zoropa e nas Califórnia que não acha uma para competir!", exclama, com gestos mussolínicos; eu diria Amália Rodrigues, Aretha, Blanca Iris, ah, tantas). Envolve-me o ritual pano. Fecha-se um velcro na nuca.

Com uma destreza de decapitador de cristãos do Império Otomano, começa o serviço de tosa. E zás. Em vez de cabeças devotas, caem fios rebeldes, um outono de madeixas. Ele é do tipo que puxa conversa. Tem voz de tenor este cidadão que conhece de orelhada Beaumarchais, Rossini e Fígaro. Recordo ter percorrido com ele tópicos tão díspares quanto a confusão com as tabelas de URV e minha aprovação na 2ª tentativa de vestibular. Em tais palestras, descobri que ele não gosta, por motivos óbvios, 1) na Bíblia, da história de Sansão & Dalila e 2) da mania de chamar péssima direção de veículos de "barbeiragem". O 2) incomoda também porque ele pensa no neto que teve a trajetória interrompida por um Renault Clio guiado por playboy chapado de lisérgico e abraçado por ninfas com ovários em fúria a exigir demonstrações de masculinidade numa noite da avenida Washington Soares, fugindo sem prestar socorro, deixando pelos ares um rastro sonoro de pancadões estilo Benny Benassi e Fatboy Slim. Vieram amedrontadas testemunhas com uma generosa amnésia para número de placa. Não houve punição. "O rapaz era mofino que só um sibite baleado. Gente molenga desse jeito atrai desgraça, igual córrego atiça boi com sede. Mimado demais..." e segue a costumeira ladainha, repleta de símiles rurais, de Dona Val nas visitas ao fardo tetraplégico.

Zé conquistou sua esposa, Dona Val, com um Soneto Do Pedido De Casamento rabiscado em papel que exalava perfume de gardênia. Missão cumprida. Do Você aceita... ao vôo célere do buquê. Na verdade, as estrofes foram compostas por um colega ébrio e poeta desempregado - em troca de 1 litro de Sapucaia; acabou sendo o padrinho - que lia muito Antero Bilac, Olavo de Quental, coisas assim, rimava nastro com alabastro, camafeu com apogeu. O casal permanece por aí, agora compartilhando erosões da memória e cartelas de comprimidos da pressão arterial, com um cansado e fiel companheirismo que parece afeto. Aliás, foi enquanto dava um trato no visual para um encontro decisivo com minha mãe que o pai recebeu do tesoureiro valiosas dicas. Com aroma de patchuli, gel fixador escorrendo pela testa, precários sapatos de solas calafetadas com betume, camisa involuntariamente psicodélica e acessórios afins, o jovem irrelevante funcionário dos Correios formou par com a moça do sorriso de anúncio de sabonete em uma sessão de Os Girassóis Da Rússia no Cine Diogo. Ela ficou doidinha com as frases encantadoras e os modos de galã dele. Refiro-me ao Marcello Mastroianni.

Cultivei felpuda e emaranhada juba por 2 anos, e era uma piada, comparecia ao salão exclusivamente na condição de turista, para resmungar um olá. Quando resolvi encerrar a brincadeira, terminada a operação de poda ele até comprou dois iogurtes de morango na mercearia ao lado e brindamos pela volta do filho pródigo. É um gaiato. Abominou a época dos arbustões afro de discoteca, argumentando que representavam evasão de lucro e eram indício de cafetão ou de integrante de gangue.

E como andam os negócios?, pergunto. De muletas em campo minado no escuro, replica. Em dias de Freddie Mac, de fraude no PanAmericano e de rumores de falência da leonina MGM, normal. É uma fase, vai passar, engano-o. É esperar em Deus, arremata. Ele retira a alva coberta das aparas com uma pompa de mágico que revela à platéia um avestruz onde antes estava um coelho. Entrego-lhe o punhado de cédulas da tartaruga marinha no verso. Inspirado pelas notas, sinto vontade de almoçar um quelônio cozido e trinchá-lo com pedantismo artístico numa bandeja. Despeço-me. Bancando o prestidigitador veterano, ele acena com uma platitude bonitinha mas ordinária a respeito de quão insondáveis são os caminhos de azares que nos põem de monociclo na corda bamba ou atados na mira do atirador de facas. De que revista barata ele roubou isso? Sobram clichês e faltam clientes.

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Another landmark

 

Mensagem da grande rainha Elizabeth II para o Natal de 1957, palavras ainda totalmente válidas para 2010. De acordo com a própria, do alto de suas heráldicas 31 primaveras, tratava-se de outro marco ("another landmark"). Pela primeira vez, o recado teve uma transmissão televisionada.

sábado, 30 de outubro de 2010

Secret agent man

Segunda-feira e acordo com uma preguiça tão concreta que poderia ser confundida com peça de mobília do meu modesto e semi-árido quarto. Hora de ir para o batente. Recordar a rotina do escritório é passear pela mente do Manoel Carlos, um sortimento de cacarecos de 2ª mão comparável a um bazar de caridade. A máfia das cercanias da cafeteira, o grupo de fumantes reduzindo o banheiro a uma sauna de alcatrão, a turma de RH comentando a matéria do gênero Pai Rico, Pai Pobre exibida no Fantástico de ontem à noite, a faxineira demorando em lugares estratégicos à espera de colher farelos de conversas que rendam excitantes fuxicos, as pilhas de exemplares da INFO Exame, os confrontos das nerd-facções: FAT32 versus EXT3, eu revirando o Tom's Hardware, a voluptuosa secretária cinturinha de pilão cujos sonhos de ascensão geralmente causam ondas e maremotos de divórcios.

Envergo uma camisa azul-Orkut, com gola discreta e disciplinada fila de botões. Devoro o leite com sucrilhos na tigela. Não se iludam, a vida de espião da área de TI - Tecnologia da Informação - é dura. Esqueçam a cliente loira fatal de tailleur e com voz felina. Esqueçam o Dick Tracy, o reloginho-comunicador, o chapéu de feltro e o manteigáceo figurino amarelo em cima do elegante terno preto. Dou partida no spymóvel e lá vou de novo.

No assento ao lado, um volumezinho, enfeixado por espiral de plástico, em que se lê Apostila de MySQL. É o disfarce do relatório de arapongagens da semana passada. O tema de Hawaii Five-O rola solto no MP3 player.

É quando olho por acaso para o retrovisor. Uma cena, antiga como a serra da Meruoca, se repete. Percebo que estou sendo seguido. Não tem erro. O filho da mãe dirige um Alfa Romeo prata, o nome de cor que os mercenários adoram. O manjado pigarro fingido. Entre a via engarrafada e o nevoeiro com cheiro de óleo diesel, ele crê que vai conseguir, o pilantra. Amador total, sequer de óculos escuros está. Lembro-me de Smarienberg, um comercial de Smirnoff.

A tática é proceder sem embromação. Deslizo por um cruzamento e puxo a alavanca turbo. Voooooosh, coma poeira, Rubinho. Longe do stalker, pondero sobre as cidades grandes, mosaicos gaudianos de criminalidade. Os boatos imbecis de ataques simultâneos com gás H2S a lojas da Cecomil, da Nagem e da E-Byte. As remessas ilegais de nitrogênio líquido encomendadas por lunáticos que gostam de brincar de overclocking. Os ladrões de senha de rede wireless. Fora da minha alçada, há os nigerianos com cocaína no aeroporto Pinto Martins, seqüestros, invasão de delegacia, os netos de desembargador que abastecem de ecstasy caríssimas festas VIP. Submundo, escória, alma no lodo. Fatos desagradáveis como colostomia e hemodiálise. E o combate a essa guilda de contravenções não está livre de equívocos. Como no incidente em que o alvo era o corrupto sobrinho de um rajá, envolvido até o bigodão de schnauzer com um esquema de contrabando de carcaças de Compaq Presario (ridículo; quase relíquias macabras) nas redondezas da rua Perboyre e Silva. Os desastrados deletaram foi um inofensivo carioca figurante de novela da Glória Perez. O vilão continua por aí, rindo de seu escuso lucro e deitado em coxins no salão de um palácio milenar, com escravas de sari a abaná-lo com um enorme penacho, a lixar suas unhas, a enchê-lo de cafunés, a pôr-lhe ameixas na boca. Uma patifaria.

Cantando pneu, chego ao QG. Apressado para reportar logo o caso do perseguidor frustrado. Quem seria? Incomodamos gente graúda ultimamente. Distribuímos dados inclusive para a ABIN. Caminho alguns metros e sou abordado pelo estranho que eu julgava despistado, um brutamontes com físico de estivador do Pecém. Não faz sentido. O que preciso é de apólice de seguro, não de verossimilhança. Deve ser sujeito da pesada. A clássica mão por dentro do blazer. Com certeza, não uma Tommy gun safra Chicago 1928. Uma 9mm com silenciador, talvez. É o fim. Sabemos os riscos do nosso trabalho, não reclamo. Vacilou, calça um cubo de cimento e termina jogado pelos colegas thugs do Frank Sinatra nas profundezas do lago Veronica ou da lagoa de Messejana. Um corvo fantasma pousa em meu ombro esquerdo e crocita Nunca mais. A escrivaninha em desalinho, canetas que tiram fotos, carimbos, grampeador, mata-borrão, livro oco para esconder gravador, caixa de lenços descartáveis para a sinusite catarrenta provocada pelo sopro glacial do condicionador de ar, os avisos em folhas de bloco de notas grudadas com chiclete nas beiradas do monitor LCD, atendendo telefonemas e com os pés apoiados na mesa sob um balouçante cone de luz, ouvindo uma lista no Winamp com as melhores de Lalo Schifrin, os tikis polinésios em forma de arquivo de metal enferrujado com as gavetas abarrotadas, as pastas, os dossiês em papel A4, os prazos, as caças à ponta da fita durex, os limpadores de janela, a venenosa atmosfera de CC vencido no elevador lotado, o código de batidinhas nas baias para repassar fofocas, a tremelicante máquina xerox, a sinuca depois do expediente, a parede com o gigantesco mapa de Fortaleza cravado de alfinetes nas chamadas zonas críticas. Nunca mais. Reminiscências que se esgarçam numa bruma sinistra, tal qual fumaça saindo do cachimbo do Simenon. "Ainda que eu ande pelo vale da sombra e da morte...", ah, droga, não funciona. Homem de pouca fé. Para usar uma expressão do Raymond Chandler, acho que estou rumo ao sono eterno. Ature minha muda carranca de ódio, meliante. Atire, seu bosta.

Ele estica o caluniado braço e me entrega um envelope com uma flor-de-lis pixelizada no verso. A marca registrada d'O Chefe. Para recados extraordinários, o Nº 1 sempre age desse jeito. Nada de Skype, e-mail ou SMS. Bilhetinhos manuscritos levados por mensageiros da tropa de elite, capazes de atravessar um deserto a nado. Pura questão de frescura estilo. Lacônico, dizia, em prosa telegráfica: "Permaneça em casa. Serviço especial para você. Próximo contato às oito e quinze. Carta se destruirá 30 segundos após desdobrada."

Corneta de fail, por favor. O estafeta some. Testemunhas do ocorrido, as linhas brancas e os paralelepípedos no chão do estacionamento zombam da minha cara. Sentados em uma nuvem, Kojak, Farrah Fawcett e outros anjos da lei guardam suas lunetas bisbilhoteiras e coram de vergonha. O trânsito não se aliviou. Resignado, preparo-me para voltar e assovio o refrão daquela música. They've given you a number and taken away your name.