domingo, 17 de dezembro de 2017

Jerusalém

Trechos de Jerusalém: A Biografia (2011), de Simon Sebag Montefiore.


Em 28 de junho de 1914, terroristas sérvios assassinaram o herdeiro austríaco, arquiduque Francisco Ferdinando, e então as Grandes Potências, mesmo titubeando, fizeram eclodir a Primeira Guerra Mundial. Enver Paxá estava ávido por lutar, forçando uma aliança com a Alemanha para prover o necessário respaldo militar e financeiro. O Kaiser Guilherme, lembrando-se de sua viagem para o Oriente, apoiou a aliança otomana. Enver se nomeou vice-generalíssimo sob o sultão fantoche, e entrou na guerra bombardeando portos russos a partir de seus recém-fornecidos navios de guerra germânicos.

Em 11 de novembro, o sultão Mehmet V Rashid declarou guerra à Grã-Bretanha, França e Rússia - e em Jerusalém foi proclamado um jihad na mesquita de al-Aqsa. No início houve algum entusiasmo pela guerra. Quando chegou o comandante das tropas otomanas na Palestina, o general bávaro barão Friedrich Kress von Kressenstein, os judeus de Jerusalém deram boas-vindas às suas unidades com um arco triunfal. Os alemães assumiram a proteção dos judeus contra os britânicos. Enquanto isso, Jerusalém aguardava a chegada de seu novo senhor.

Em 18 de novembro, Wasif Jawhariyyeh, o tocador de oud, ainda com apenas dezessete anos, assistiu a Ahmet Kemal, ministro da Marinha e um dos Três Paxás, adentrar Jerusalém como ditador efetivo da Síria Maior e comandante supremo do Quarto Exército Otomano. Kemal estabeleceu seu quartel-general no Augusta Victoria, no monte das Oliveiras. Em 20 de dezembro, um xeque idoso chegou ao portão de Damasco numa pomposa carruagem trazendo de Meca o estandarte verde do Profeta. Sua entrada na cidade causou "indescritível comoção" quando "uma ordeira e pitoresca formação de soldados seguiu a bandeira através da Cidade Velha, enquanto aspergiam água de rosas. Toda a população de Jerusalém seguiu o cortejo "cantando Allahu Akhbar na mais bela parada já vista", escreveu Wasif Jawhariyyeh. Do lado de fora do Domo, Kemal declarou o jihad. "O júbilo se apoderou da população inteira", concordou Kress von Kressenstein - até que o ancião xeque de Meca morreu subitamente pouco antes do Natal, um augúrio constrangedor para o jihad otomano.

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Quando Kemal reuniu suas forças - comandadas principalmente por oficiais alemães - para a ofensiva contra o Egito britânico, descobriu que a Síria estava fervilhando de intrigas, e que Jerusalém era "um ninho de espiões". A política do paxá era simples: "Para a Palestina, deportação; para a Síria, aterrorização; para o Hejaz, o exército." Em Jerusalém, sua abordagem foi enfileirar "patriarcas, príncipes e xeques, e enforcar notáveis e delegados". Enquanto sua polícia secreta perseguia traidores, ele deportava qualquer pessoa suspeita de agitação nacionalista. Apoderou-se de sítios cristãos, tais como a igreja de Santa Ana, e começou a expulsar os hierarcas cristãos, enquanto se preparava para atacar o Egito.

A caminho do front, o paxá desfilou seus 20 mil homens através de Jerusalém. "Vamos nos encontrar do outro lado do canal [de Suez] ou no céu!", vangloriou-se; mas o conde de Ballobar notou um soldado otomano empurrando suas rações de água para dentro de um carrinho de criança, o que certamente não era a marca de uma temível máquina de guerra. Kemal, por outro lado, viajava com "magníficas tendas, porta-chapéus, cômodas". Em 1º de fevereiro de 1915, comovido ao ouvir seus homens cantando "A bandeira vermelha tremula sobre o Cairo", Kemal atacou o canal de Suez com 12 mil homens; eles foram facilmente repelidos. O paxá alegou que o ataque tinha sido apenas um reconhecimento de forças, mas fracassou novamente no verão. Derrota militar, bloqueio ocidental e a crescente repressão de Kemal provocaram um sofrimento desesperado e um feroz hedonismo em Jerusalém. Não demorou muito para que começassem as matanças. [...]

Em agosto de 1915, após descobrir evidências de conspirações nacionalistas árabes, Kemal escreveu: "Eu decidi tomar medidas implacáveis contra os traidores." Enforcou quinze árabes proeminentes perto de Beirute (inclusive um Nashashibi de Jerusalém), e depois, em maio de 1916, outros 21 em Damasco e Beirute, ganhando a alcunha de Carniceiro. Fez piada com o espanhol Ballobar, dizendo que poderia enforcá-lo igualmente.

Kemal também suspeitava de traição dos sionistas. Todavia, [David] Ben-Gurion, com um fez na cabeça, recrutava soldados judeus para os otomanos. [...] Mais tarde, porém, Kemal deportou quinhentos judeus estrangeiros, prendeu líderes sionistas e baniu seus símbolos.

Ben-Gurion foi deportado, mudando suas esperanças para o lado dos Aliados. Os árabes acabaram recrutados para o exército; judeus e cristãos foram mandados à força para batalhões de trabalho na construção de estradas, muitos deles perecendo de fome e insolação. Depois vieram enfermidades, insetos e carestia. "Os gafanhotos eram espessos como nuvens", lembrava-se Wasif, zombando das tentativas de Kemal para eliminar a praga: ele ordenou "a cada pessoa com mais de doze anos trazer três quilos de ovos de gafanhotos", o que provocou apenas um absurdo comércio deste item.

Wasif viu "a fome se espalhar por todo o país", junto com "o tifo e a malária; e muita gente morreu". Em 1918, devido a epidemias, fome e deportações, a população judaica de Jerusalém havia caído em 20 mil habitantes. Todavia, a voz de Wasif, seu oud e sua habilidade de arregimentar convidadas bonitas para festas selvagens nunca foram tão valorizados.

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Kemal, seus oficiais e os figurões das famílias desfrutavam de uma vida de prazer febril enquanto Jerusalém simplesmente lutava para sobreviver às calamidades da guerra. A miséria era tal que jovens prostitutas, muitas delas viúvas de guerra cobrando apenas duas piastras por programa, percorriam a Cidade Velha.

Cada noite de Wasif era uma aventura: "Eu só ia para casa para trocar de roupa, dormindo cada noite num lugar diferente, meu corpo totalmente exausto de beber e farrear. Pela manhã, piqueniques com as famílias notáveis de Jerusalém, depois uma orgia com rufiões e bandidos nos becos da Cidade Velha." Certa noite, Wasif Jawhariyyeh viu-se num comboio de quatro limusines contendo o governador, sua amante judia de Salônica, vários beis otomanos e figurões das famílias, incluindo o prefeito Hussein Husseini, sendo levado para Artas, perto de Belém, para um "piquenique internacional" no mosteiro latino: "Foi um dia delicioso para todos durante o difícil período em que a fome e a guerra faziam as pessoas sofrer. Ninguém fez cerimônia, todos tomaram vinho e as damas estavam tão lindas naquela noite; não havia hora de comer e todas cantaram como um coro em uníssono."

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Mesmo com Jerusalém sendo deteriorada, os jantares do conde de Ballobar para Kemal continuaram sendo banquetes: o menu para uma ceia em 6 de julho de 1916 incluía sopa turca, peixe, filé, tortas de carne e peru recheado, seguidos de sorvete, abacaxi e frutas. [...] Em seus banquetes, Kemal provocava jovialmente Ballobar e o cônsul grego, dizendo "que os enforcaria no Santo Sepulcro" se a Espanha ou a Grécia entrasse na guerra.

Enquanto Kemal cuidava de sua evanescente Jerusalém, seu colega, o vice-generalíssimo Enver, perdia 80 mil homens em sua inepta ofensiva contra a Rússia. Ele e Talaat lançaram a culpa do desastre nos armênios cristãos, que foram sistematicamente deportados e mortos. Um milhão de pessoas pereceu num crime bárbaro.

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Lawrence conhecia o segredo do retalhamento do Oriente Médio elaborado por Sykes e Picot, que o envergonhava: "Estamos chamando-os para lutar por nós com base numa mentira, e eu não posso suportar isso."

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Em Jerusalém, a polícia de Kemal caçava outro espião judeu - Alter Levine, um poeta, empresário e organizador nascido na Rússia -, que, segundo alegavam, havia montado uma cadeia de bordéis e ninhos de espionagem.

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Em junho de 1917, um cabisbaixo Kemal encontrou-se com Falkenhayn na estação de Jerusalém e posaram embaraçosamente juntos nas escadarias do Domo da Rocha. Falkenhayn estabeleceu seu quartel-general na Augusta Victoria. Os cafés da cidade encheram-se de soldados alemães do Asienkorps e seus oficiais tomaram posse do Fast Hotel. "Estávamos na Terra Santa", escreveu um típico jovem soldado germânico na cidade, Rudolf Höss. "Os velhos nomes familiares da história religiosa e as histórias dos santos estavam ao nosso redor. E quão diferentes dos meus sonhos de juventude!" As tropas austríacas marchavam pela cidade; soldados austríacos judeus rezavam no Muro Ocidental. Kemal Paxá deixou a cidade e governou suas províncias a partir de Damasco. O Kaiser finalmente controlava Jerusalém - mas já era tarde demais.

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Em Jerusalém, aviões britânicos bombardearam o monte das Oliveiras. O ajudante de ordens de Falkenhayn, coronel Franz von Papen, organizou as defesas e planejou o contra-ataque. Os alemães subestimaram [Edmund] Allenby e foram tomados de surpresa quando, em 31 de outubro de 1917, ele desfechou sua ofensiva para capturar Jerusalém.

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Enquanto Allenby atacava em massa com seus 75 mil homens de infantaria, 17 mil de cavalaria e um punhado de tanques novos, Arthur Balfour, secretário do Exterior britânico, negociava uma nova política com um cientista nascido na Rússia chamado dr. Chaim Weizmann.

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O sionismo era uma ideia germano-austríaca, e até 1914 os sionistas estavam baseados em Berlim. Quando Kemal Paxá, o tirano de Jerusalém, visitou Berlim em agosto de 1917, reuniu-se com sionistas alemães, e o grão-vizir otomano, Talaat Paxá, concordou relutantemente em promover "um lar nacional judaico". Nesse meio-tempo, nas fronteiras da Palestina, o general Allenby preparava em segredo sua ofensiva.

Estas, e não o charme de Weizmann, foram as verdadeiras razões que levaram a Grã-Bretanha a abraçar o sionismo.

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Mark Sykes: "com a Grande Judiaria contra nós, não há possibilidade de fazer a coisa passar" - sendo "a coisa" a vitória na guerra.

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Em 9 de novembro, Balfour emitiu sua Declaração, endereçada ao lorde Rothschild. [...]

A Declaração destinava-se a desvincular os judeus russos do bolchevismo, mas na mesma noite em que foi publicada, Lênin tomou o poder em São Petersburgo. Houvesse Lênin avançado alguns dias antes, a Declaração Balfour talvez nunca tivesse sido emitida.

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Quando Allenby irrompeu Palestina adentro, Lloyd George exigiu extravagantemente a captura de Jerusalém "como presente de Natal para a nação britânica".

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Allenby tomou Gaza em 7 de novembro de 1917; Jaffa caiu no dia 16. Houve cenas desesperadas em Jerusalém. Kemal, o Carniceiro, governando suas províncias a partir de Damasco, ameaçou um Götterdämmerung em Jerusalém. Primeiro ordenou a deportação de todos os padres cristãos, e então os edifícios cristãos, inclusive o mosteiro de São Salvador, foram dinamitados. Os patriarcas foram mandados para Damasco, mas o coronel Von Papen, católico, resgatou o patriarca latino e o manteve em Nazaré.

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Aviões britânicos bombardearam o quartel-general germânico na Augusta Victoria e o chefe da inteligência de Allenby lançou cigarros de ópio para as tropas otomanas, na esperança de que ficassem drogadas demais para defender Jerusalém. Refugiados extravasavam para fora da cidade. Removendo o retrato do Kaiser na capela da Augusta Victoria, Falkenhayn finalmente deixou ele próprio a cidade e mudou seu quartel-general para Nablus. Aviões britânicos e alemães travaram rápidos combates aéreos sobre Jerusalém. Obuses bombardearam posições inimigas; os otomanos contra-atacaram três vezes em Nabi Samuel; combates furiosos duraram quatro dias. "A guerra estava no auge", escreveu o professor [Khalil al-]Sakakini, "bombas caindo por toda parte, pandemônio total, soldados correndo de um lado a outro, e o medo tomando conta de tudo." Em 4 de dezembro, aviões britânicos bombardearam o quartel-general otomano no Complexo Russo. Os turcos começaram a desertar. Carroças carregadas de soldados feridos e corpos mutilados troavam pelas ruas.

Na noite de 7 de dezembro, as primeiras tropas britânicas avistaram Jerusalém. Um nevoeiro denso pairava sobre a cidade; a chuva escurecia os morros. Na manhã seguinte, o governador Izzat Bei arrebentou seu telégrafo com um martelo, estendeu sua carta de rendição ao prefeito, "tomou emprestada" uma carroça com dois cavalos da Colônia Americana, que ele jurou devolver, e fugiu galopando rumo a Jericó. Durante toda a noite, milhares de tropas otomanas se arrastaram através da cidade para fora da história. Às três horas da manhã do dia 9, as forças germânicas se retiraram da cidade num dia que o conde de Ballobar chamaria de "um dia de impressionante beleza". O último turco passou pelo portão de Santo Estêvão às sete horas da manhã. Por coincidência, era o primeiro dia da festa judaica de Chanuká, o festival das luzes que celebra a libertação de Jerusalém pelos macabeus. Saqueadores assaltaram as lojas na estrada de Jaffa. Às 8h45, soldados britânicos se aproximaram do portão de Sião.

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Em Londres, o primeiro-ministro ficou eufórico: "A captura de Jerusalém causou profunda impressão em todo o mundo civilizado", ele anunciou numa bravata alguns dias depois. "A cidade mais famosa do mundo, após séculos de conflito e contenda vã, caiu nas mãos no exército britânico, para nunca mais ser restituída àqueles que tiveram tanto êxito em mantê-la longe das combativas hostes da cristandade."

O Ministério do Exterior telegrafou a Allenby para evitar qualquer grandiosidade ou pretensão ao estilo do Kaiser quando ele adentrasse a cidade: SUGERE-SE VEEMENTEMENTE DESMONTAR! O general entrou pelo portão caminhando, acompanhado de legados americanos, franceses e italianos e observado por todos os patriarcas, muftis e cônsules, para ser saudado pelo prefeito de Jerusalém, que pela sétima vez rendia a cidade.

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Allenby subiu as escadas da plataforma para ler sua proclamação sobre "Jerusalém, a Bendita", que foi então repetida em francês, árabe, hebraico, grego, russo e italiano - tendo o cuidado de não mencionar a palavra que todo mundo tinha em mente: Cruzada. O prefeito Husseini finalmente entregou as chaves da cidade.


Mais:
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