domingo, 30 de julho de 2017

Gramsci

Trechos de artigos de Antonio Gramsci.


(29 de Abril de 1917)

Por que é que a Revolução Russa é uma revolução proletária?

Pela leitura dos jornais, pela leitura do conjunto de notícias que a censura deixa publicar, não se compreende muito bem. Sabemos que a revolução foi feita por proletários (obreiros e soldados), sabemos que existe um comitê de delegados operários que controla o trabalho das entidades administrativas que foi necessário manter para solução dos assuntos ordinários. Mas basta que uma revolução seja feita por proletários para ser uma revolução proletária? A guerra é feita também por proletários e não por isso se considera um fato proletário. Para que tal aconteça é necessário, portanto, que intervenham outros fatores, fatores de ordem espiritual. É preciso que o fato revolucionário demonstre ser, além de fenômeno de poder, de fenômeno de costumes, um fato moral. Os jornais burgueses têm insistido sobre o fenômeno do poder, têm-nos dito que o poder da autocracia foi substituído por outro poder, ainda não bem definido e que eles esperam seja o poder burguês. E imediatamente fizeram o paralelismo: Revolução Russa, Revolução Francesa, concluindo que os fatos se assemelham. Mas só superficialmente os fatos se assemelham, tal como um ato de violência se assemelha a outro ato de violência e uma destruição se assemelha a outra destruição.

[...] A Revolução Russa destruiu o autoritarismo e substituiu-o pelo sufrágio universal, estendendo-o também às mulheres. Substituiu o autoritarismo pela liberdade, a Constituição pela voz livre da consciência universal. Por que é que os revolucionários russos não são jacobinos, isto é, não substituem a ditadura de um só pela ditadura de uma minoria audaciosa e decidida a tudo para fazer triunfar o seu programa?

Os jornais burgueses não deram qualquer importância a este outro fato. Os revolucionários russos abriram os cárceres não só aos presos políticos, mas também aos condenados por delitos comuns. Numa prisão, os condenados por delitos comuns, quando lhes comunicaram que estavam livres, responderam que não tinham o direito de aceitar a liberdade porque tinham de expiar as suas culpas. Em Odessa reuniram-se no pátio da prisão e voluntariamente juraram que iam ser honestos e viver do seu trabalho. Esta notícia tem mais importância para os objetivos da revolução do que a expulsão do czar e dos grão-duques. [...] Devem ter sentido que o mundo mudara, que também eles, os recusados da sociedade, eram qualquer coisa, que também eles, os segregados, podiam escolher.

[...] É o advento duma ordem nova, que coincide com tudo o que os nossos mestres nos tinham ensinado. E mais uma vez a luz vem do Oriente e irradia sobre o velho mundo ocidental, o qual fica assombrado e não sabe opor-lhe senão as banais e tolas anedotas dos seus escribas venais.

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(24 Novembro de 1917)

A revolução dos bolcheviques inseriu-se definitivamente na revolução geral do povo russo. Os maximalistas que até há dois meses foram o fermento necessário para que os acontecimentos não se detivessem, para que a marcha em direção ao futuro não terminasse, dando lugar a uma forma definitiva de organização - que seria uma organização burguesa -, apoderaram-se do poder, estabeleceram a sua ditadura e estão a elaborar as formas socialistas em que a revolução deverá enquadrar-se para continuar a desenvolver-se harmoniosamente, sem excesso de grandes choques, partindo das grandes conquistas já realizadas. [...]

Marx previu o previsível. Não podia prever a guerra europeia, ou melhor, não podia prever que esta guerra duraria o tempo que durou e os efeitos que esta guerra teve. Não podia prever que esta guerra, em três anos de sofrimento e miséria indescritíveis, suscitaria na Rússia a vontade coletiva popular que suscitou. Uma vontade deste tipo precisa normalmente, para se formar, de um longo processo de infiltrações capilares, duma longa série de experiências de classe. Os homens são preguiçosos, precisam de se organizar, primeiro, exteriormente, em corporações, em ligas; depois internamente, no pensamento, nas vontades de uma incessante continuidade e multiplicidade de estímulos exteriores. [...] E nesta corrida caem muitos, tornando mais compulsório o desejo dos que ficaram. A massa do caos-povo está sempre em ebulição.

Na Rússia, a guerra serviu para despertar as vontades. Estas, através dos sofrimentos acumulados ao longo de três anos, unificaram-se com muita rapidez. A carestia estava iminente, a fome, a morte de fome podia tocar a todos, esmagando de um momento para o outro milhares de homens. As vontades unificaram-se, mecanicamente primeiro, ativamente, espiritualmente, depois da primeira revolução.

[...] Por que deveria esperar esse povo que a história de Inglaterra se repetisse na Rússia, que na Rússia se formasse uma burguesia, que surgisse a luta de classes para que nascesse a consciência de classe e se desse finalmente a catástrofe do mundo capitalista? O povo russo passou por estas magníficas experiências com o pensamento, embora pelo pensamento duma minoria. Ultrapassou estas experiências. Serve-se delas para se afirmar.

[...] Tem-se a impressão que os maximalistas são neste momento a expressão espontânea, biologicamente necessária, para que a humanidade russa não caia no abismo, para que, entregando-se completamente ao trabalho gigantesco, autônomo, da sua própria regeneração, possa ser menos solicitada pelos estímulos do lobo esfomeado, de modo a que a Rússia não venha a ser uma enorme carnificina de feras que se devoram umas às outras.

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(2 de Março de 1918)

A comoção de ideias, provocada pela guerra, revelou duas forças novas: o presidente Wilson e os maximalistas russos. Ambos representam o último elo lógico das ideologias burguesas e proletárias.

O presidente Wilson arrecada nestes dias os testemunhos da maior simpatia. É ele um homem do fato consumado. A sua obra é de correção, de integração dos valores burgueses. É um chefe de Estado, dirige um organismo social que existia já antes da guerra, que se reforçou e se disciplinou mais na guerra.

No entanto, o reconhecimento da sua utilidade demorou três anos a afirmar-se. Os seus programas foram escarnecidos, vituperaram-no, chamaram-lhe hipócrita, oco. Agora começa a revisão das opiniões. [...]

Entre as ideologias médias da burguesia italiana, francesa, inglesa, alemã e o maximalismo russo há um abismo; mas a distância foi encurtada, aproximou-se do último elo lógico burguês, do programa do presidente Wilson. O presidente Wilson será o triunfador da paz; mas para triunfar foi necessário o martírio da Rússia. Wilson sentiu-o e prestou-lhes homenagem a aqueles que, no entanto, são também os seus adversários.

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(16 de Março de 1918)

Já passou um ano sobre o dia em que o povo russo obrigou o czar Nicolau II a abdicar e a partir para o exílio. A comemoração do aniversário é pouco alegre. Dor, ruína, aparente dissolução, contraofensiva burguesa com as baionetas e as metralhadoras alemãs.

Terá acabado a revolução russa? Terá fracassado na Rússia o proletariado na maior das tentativas de insurreição que jamais tentara na história? As aparências são desanimadoras: os generais alemães chegaram a Odessa, segundo se diz, os japoneses, estão prontos a intervir; cinquenta milhões de cidadãos foram afastados da revolução, e com eles as terras mais férteis, as saídas para o mar, as estradas da civilização e da vida econômica. A revolução, nascida da dor e do desespero, continua na dor e no sofrimento, oprimida por um anel de potências inimigas, mergulhada num mundo econômico refratário aos seus ideais, aos seus objetivos.

Em Março de 1917, o telégrafo anunciou-nos que um mundo ruíra na Rússia: um mundo já efêmero, inanimado espectro de um poder.

[...] A ordem nova tarda a realizar-se. Tarda? Não tarda, não, homens céticos e perversos, porque não se refaz uma sociedade num fiat, porque o mal do passado não é um edifício de papelão que arda num instante. A vida é um doloroso esforço, luta tenaz contra os costumes, contra a animalidade e contra o instinto primitivo que ladra continuamente. Não se cria uma sociedade humana em seis meses, quando três anos de guerra deixaram um país exausto, privado dos meios necessários à vida civil. Não se organizam dum momento para outro milhões de homens em liberdade, simplesmente, quando tudo é adverso e apenas subsiste o espírito indomável. A história da revolução russa não está encerrada e não se encerrará com o aniversário do seu início.

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(25 de Julho de 1918)

A guerra é a máxima concentração da atividade econômica nas mãos de poucos (os dirigentes do Estado); a que corresponde a máxima concentração de indivíduos nos quartéis e nas trincheiras. A Rússia em guerra era realmente o país da utopia: com homens do tempo das invasões bárbaras o Estado julgou poder fazer uma guerra de organização, técnica, de resistência espiritual, como só seria capaz uma humanidade temperada pela fábrica e pela máquina. A guerra era a utopia e a Rússia czarista patriarcal desintegrou-se sob a altíssima tensão do esforço que impôs a si própria e que lhe impôs o belicoso inimigo. Mas as condições provocadas pelo imenso poder do Estado despótico produziram as consequências necessárias: as grandes massas de indivíduos socialmente isolados, juntos, reunidos em um pequeno espaço geográfico, desenvolveram sentimentos novos. [...]

A ditadura é a instituição fundamental que garante a liberdade, que impede os golpes-de-mão das minorias facciosas. É garantia de liberdade porque não é um método a perpetuar, mas permite criar e consolidar os organismos permanentes em que a ditadura se há-de dissolver depois de ter cumprido a sua missão.

Após a revolução, a Rússia não era livre, porque não existiam as garantias da liberdade, porque a liberdade não estava organizada ainda. [...]

O caos russo organiza-se em torno destes elementos de ordem: começa a ordem nova. Constitui-se uma hierarquia: da massa organizada e sofredora passa-se aos obreiros e camponeses organizados, aos Sovietes, ao partido bolchevique e a um homem: Lênin.

[...] a vida social será mais rica de conteúdo socialista do que é agora, e o processo de socialização intensificar-se-á e aperfeiçoar-se-á continuamente. Porque o socialismo não se instaura em data fixa, mas é um devir contínuo, um desenvolvimento infinito em regime de liberdade organizada e controlada pela maioria dos cidadãos, isto é, pelo proletariado.


Fonte:
http://www.marxists.org/portugues/gramsci/index.htm

Mais:
http://docs.google.com/file/d/0BxwrrqPyqsnIVHJ1TWx3MFpUams
http://www.olavodecarvalho.org/livros/negramsci.htm