domingo, 22 de novembro de 2015

Desilusão

Trechos de A Desilusão Causada Pela Guerra (1915), de Sigmund Freud.


Apanhados no torvelinho desse tempo de guerra, informados de maneira unilateral, sem distanciamento das grandes mudanças que já ocorreram ou estão para ocorrer e sem noção do futuro que se configura, ficamos nós mesmos perdidos quanto ao significado das impressões que se abalam sobre nós e quanto ao valor dos julgamentos que formamos. Quer nos parecer que jamais um acontecimento destruiu tantos bens preciosos da humanidade, jamais confundiu tantas inteligências das mais lúcidas e degradou tão radicalmente o que era elevado. Até mesmo a ciência perdeu sua desapaixonada imparcialidade; profundamente exasperados, seus servidores buscam extrair-lhe armas, para dar contribuição à luta contra os inimigos. O antropólogo tem que declarar o adversário um ser inferior e degenerado, o psiquiatra tem que diagnosticar nele uma perturbação espiritual ou psíquica. Mas provavelmente sentimos o mal desse tempo com intensidade desmedida, não tendo o direito de compará-lo com aquele de tempos que não vivenciamos.

O indivíduo que não se tornou um combatente e, portanto, uma partícula da enorme máquina da guerra, sente-se perplexo quanto à sua orientação e inibido em sua capacidade de realização.

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Entre os fatores responsáveis pela miséria psíquica dos não combatentes, contra os quais é tão difícil eles lutarem, gostaria de destacar dois e de abordá-los aqui. Eles são: a desilusão provocada pela guerra e a diferente atitude ante a morte, à qual ela - como todas as guerras - nos obrigou.

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Estávamos então preparados para ver que ainda por longo tempo a humanidade estaria às voltas com guerras entre os povos primitivos e os civilizados, entre as raças que estão separadas pela cor da pele, e mesmo guerras contra ou em meio a nacionalidades europeias que pouco se desenvolveram ou que retrocederam culturalmente. Mas nós nos permitíamos outras esperanças. Esperávamos, das nações de raça branca que dominam o mundo, às quais coube a condução do gênero humano, sabidamente empenhadas no cultivo de interesses mundiais, e cujas criações incluem tanto os progressos técnicos no domínio da natureza como os valores culturais artísticos e científicos, desses povos esperávamos que soubessem resolver por outras vias as desinteligências e os conflitos de interesses. No interior de cada uma dessas nações haviam se estabelecido elevadas normas morais para o indivíduo, segundo as quais ele devia conformar sua vida, se quisesse fazer parte da comunidade civilizada. Tais prescrições, frequentemente severas demais, exigiam muito dele, uma enorme restrição de si mesmo, uma larga renúncia da satisfação instintual.

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Mesmo os grandes povos, podia-se pensar, haviam adquirido tamanha compreensão pelo que tinham em comum, e tanta tolerância por suas diferenças, que "estrangeiro" e "inimigo" não mais se fundiam numa única noção, como ainda ocorria na Antiguidade clássica.

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Não nos esqueçamos também que todo cidadão civilizado do mundo havia criado para si um "Parnaso" e uma "Escola de Atenas" especiais. Entre os grandes pensadores, poetas e artistas de todas as nações ele havia escolhido aqueles aos quais acreditava dever o melhor que obtivera em termos de fruição e compreensão da vida, e em sua veneração os havia posto junto aos antigos imortais e aos familiares mestres de sua própria língua.

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A fruição da comunidade civilizada era ocasionalmente perturbada por vozes que advertiam que graças a antigas, tradicionais diferenças eram inevitáveis as guerras também entre os membros de tal comunidade. Não queríamos crer nisso, mas como imaginar uma guerra assim, caso ela viesse a ocorrer? Como uma oportunidade para mostrar o progresso no sentimento comunitário dos homens desde a época em que as anfictionias gregas proibiram que qualquer dos Estados pertencentes à liga fosse destruído, que suas oliveiras fossem abatidas e seu suprimento de água cortado. Como um prélio de cavaleiros, que se limitaria a estabelecer a superioridade de uma das partes, evitando ao máximo os sofrimentos maiores, que em nada contribuiriam para a decisão, poupando inteiramente os feridos, que deveriam deixar a luta, e os médicos e enfermeiros dedicados à recuperação daqueles. Naturalmente haveria respeito com a parcela não combatente da população.

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Uma tal guerra ainda comportaria bastantes horrores e coisas difíceis de suportar, mas não perturbaria o desenvolvimento das relações éticas entre esses grandes indivíduos da humanidade, os povos e Estados.

A guerra na qual não queríamos acreditar irrompeu, e trouxe... desilusão. Não é apenas mais sangrenta e devastadora do que guerras anteriores, devido ao poderoso aperfeiçoamento das armas de ataque e de defesa, mas pelo menos tão cruel, amargurada e impiedosa quanto qualquer uma que a precedeu. Ela transgride todos os limites que nos impusemos em tempos de paz, que havíamos chamado de Direito Internacional, não reconhece as prerrogativas dos feridos e dos médicos, a distinção entre a parte pacífica e a parte lutadora da população, nem os direitos de propriedade. Ela derruba o que se interpõe no seu caminho, em fúria cega, como se depois dela não devesse existir nem futuro nem paz entre os homens. Ela destrói todos os laços comunitários entre os povos que combatem uns aos outros, e ameaça deixar um legado de amargura que por longo tempo tornará impossível o restabelecimento dos mesmos.

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E até mesmo uma das grandes nações cultas é universalmente tão pouco estimada que se pode tentar excluí-la da comunidade civilizada por ser "bárbara", embora há muito tenha demonstrado sua valia, por contribuições das mais formidáveis. Vivemos na esperança de que uma historiografia imparcial venha trazer a prova de que justamente essa nação, em cuja língua escrevemos, e para cuja vitória combatem os seres que amamos, tenha sido aquela que menos infringiu as leis da moralidade humana; mas quem pode, em tempos como esses, arvorar-se em juiz da própria causa?

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O cidadão individual pode verificar com horror, nessa guerra, o que eventualmente já lhe ocorria em tempo de paz: que o Estado proíbe ao indivíduo a prática da injustiça, não porque deseje acabar com ela, mas sim monopolizá-la, como fez com o sal e o tabaco.

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Tampouco é de surpreender que o afrouxamento das relações morais entre os "grandes indivíduos" da humanidade tenha tido repercussão na moralidade do indivíduo, pois nossa consciência não é o juiz inflexível pelo qual a têm os mestres da ética, é em sua origem "medo social" e nada mais. Quando a comunidade suspende a recriminação, também cessa a repressão dos apetites maus, e as pessoas cometem atos de crueldade, perfídia, traição e rudeza que pareceriam impossíveis, devido à incompatibilidade com seu grau de civilização.

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Na realidade não existe nenhuma "extirpação" do mal. A investigação psicológica - em sentido mais rigoroso, a psicanalítica - mostra, isto sim, que a essência mais profunda do homem consiste em impulsos instintuais de natureza elementar, que são iguais em todos os indivíduos e que objetivam a satisfação de certas necessidades originais.

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Das discussões precedentes retiramos o consolo de que era injustificada nossa amargura e dolorosa desilusão pela conduta incivilizada de nossos concidadãos do mundo nesta guerra. Fundava-se numa ilusão a que nos havíamos entregado. Na realidade eles não desceram tão baixo como receávamos, porque não tinham se elevado tanto como acreditávamos. O fato de os "grandes indivíduos" humanos, os povos e Estados, terem abandonado entre si as limitações morais, tornou-se para eles uma compreensível instigação a subtrair-se por um momento à duradoura pressão da cultura e permitir temporariamente satisfação a seus instintos refreados.

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A cegueira lógica que essa guerra, como que por magia, produziu justamente em muitos de nossos melhores cidadãos, é portanto um fenômeno secundário, uma consequência da excitação de afetos, destinada, assim esperamos, a desaparecer com ela.

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Tínhamos esperança, é verdade, de que a grande comunidade de interesses gerada pelo comércio e a produção representasse o início de uma tal coação, mas no momento os povos parecem obedecer muito mais a suas paixões do que a seus interesses. No máximo, utilizam-se dos interesses para racionalizar as paixões; colocam à frente os interesses para justificar a satisfação das paixões. Por que os povos-indivíduos de fato se menosprezam, se odeiam, se execram, e isso também em períodos de paz, cada nação fazendo o mesmo, é algo certamente enigmático. Eu não sei o que dizer sobre isso. É como se todas as conquistas morais do indivíduo se apagassem quando se junta um bom número ou mesmo milhões de pessoas, e restassem apenas as atitudes mais primitivas, mais antigas e cruas. Talvez apenas desenvolvimentos por vir possam mudar algo nesse lamentável estado de coisas.


Mais:
http://docs.google.com/file/d/0BxwrrqPyqsnIMVRmQ2dOTXBuemM