domingo, 29 de novembro de 2015

A era dos impérios

Trechos de A Era Dos Impérios (1987), de Eric Hobsbawm.


Não são apenas os poucos indivíduos ainda vivos com uma vinculação direta aos anos anteriores a 1914 que enfrentam o problema de como olhar a paisagem de sua zona nebulosa particular, mas também, de modo mais impessoal, todos os que vivem no mundo da década de 1980, na medida em que sua forma foi moldada pela era que nos levou à Primeira Guerra Mundial. Não quero dizer que o passado mais remoto não tenha significado para nós, mas que suas relações conosco são diferentes.

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A necessidade de algum tipo de perspectiva histórica é ainda mais urgente pelo fato de as pessoas do final do século XX ainda estarem, de fato, apaixonadamente envolvidas com o período que se encerrou em 1914, provavelmente porque agosto de 1914 é uma das "rupturas naturais" mais inegáveis da história. Foi sentido como o fim de uma era em seu tempo, e ainda o é. É bem possível rebater essa opinião insistindo-se na continuidade e nas situações inconclusas que se prolongaram através dos anos da Primeira Guerra Mundial. Afinal, a história não é como uma linha de ônibus em que todos - passageiros, motorista e cobrador - são substituídos quando chega ao ponto final. Não obstante, se há datas que obedecem a algo mais que à necessidade de periodização, agosto de 1914 é uma delas: foi considerada o marco do fim do mundo feito por e para a burguesia. Assinala o fim do "longo século XIX" com o qual os historiadores aprenderam a trabalhar.

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[...] autores ainda mais nostálgicos, porém intelectualmente mais sofisticados, que esperam provar que o paraíso perdido poderia não ter sido perdido, se não fosse por erros evitáveis ou acidentes impossíveis de prever, sem os quais não teria havido Guerra Mundial, Revolução Russa ou qualquer dos acontecimentos considerados responsáveis pela perda do mundo anterior a 1914.

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De meados dos anos 1890 à Grande Guerra, a orquestra econômica mundial tocou no tom maior da prosperidade, ao invés de, como até então, no tom menor da depressão. A afluência, baseada no boom econômico, constituía o pano de fundo do que ainda é conhecido no continente europeu como "a bela época" (belle époque).

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As economias modernas amplamente controladas, organizadas e dominadas pelo Estado foram produto da Primeira Guerra Mundial. Entre 1875 e 1914, a parcela dos crescentes produtos nacionais que os gastos públicos consumiam na maioria dos países líderes tendeu a se reduzir: e isto apesar do acentuado aumento dos gastos com os preparativos para a guerra.

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Deflagrada a guerra de 1914, o ministro do Interior francês nem se deu ao trabalho de mandar prender os revolucionários (principalmente anarquistas e anarcosindicalistas) e subversivos antimilitaristas tidos como perigosos para o Estado, embora a polícia houvesse, desde longa data, compilado uma lista precisamente com essa finalidade.

Se, contudo, a sociedade burguesa como um todo não se sentia ainda imediata e gravemente ameaçada (contrariamente ao que sucedeu nas décadas subsequentes a 1917), tampouco seus valores do século XIX e suas expectativas históricas haviam sido irremediavelmente solapados. Esperava-se que o comportamento civilizado, o império da lei e as instituições liberais levassem avante seu progresso secular. Restava ainda muita barbárie, especialmente (segundo os "respeitáveis") entre as ordens inferiores e, é claro, entre povos "não civilizados", mas felizmente já colonizados. Havia ainda Estados, mesmo na Europa, como o Império Otomano e o Czarista, onde bruxuleavam ou nem mesmo se acendiam as velas da razão. Todavia, os próprios escândalos que convulsionavam a opinião nacional e internacional indicavam quanto eram elevadas as expectativas de civilidade, no mundo burguês, em tempos de paz: Dreyfus; Ferrer; Zabern. Nós, situados em finais do século XX, podemos apenas considerar com melancólica incredulidade um período em que massacres, tais como os que diariamente ocorrem no mundo atual, eram tidos como monopólio de turcos e tribos selvagens.

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Embora os contemporâneos não soubessem o que viria depois, sentiam frequentemente, nesses últimos tempos que precederam a guerra, a sensação de que a terra tremia como sob os choques sísmicos que precedem os terremotos. Esses foram anos em que, sobre os hotéis Ritz e as casas de campo, pairavam no ar prenúncios de violência. Sublinhavam a instabilidade e a fragilidade da ordem política da belle époque.

Não os superestimemos tampouco. No que diz respeito aos países do âmago da sociedade burguesa, o que destruiu a estabilidade da belle époque, inclusive a sua paz, foi a situação da Rússia, do Império Habsburgo e dos Bálcãs, e não a da Europa ocidental ou mesmo a da Alemanha.

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É absolutamente inegável que a guerra de 1914, ao ser deflagrada, produziu explosões genuínas, embora curtas, de patriotismo de massas, nos principais países beligerantes. E nos Estados multinacionais, os movimentos operários organizados em toda a extensão do Estado lutaram e foram derrotados, numa ação de retaguarda contra a própria desintegração em movimentos separados, baseada nos operários de cada uma das nacionalidades. O movimento trabalhista e socialista do Império Habsburgo, portanto, desmoronou antes que o próprio império o fizesse.

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A propaganda doméstica de todos os beligerantes, com respeito à política de massas, demonstra em 1914 que o assunto a ser sublinhado não era a glória nem a conquista, mas o de "nós" sermos vítimas de agressão, ou de política agressiva, o de "eles" representarem uma ameaça mortal aos valores da liberdade e da civilização que "nós" representamos.

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As massas alemãs, francesas e inglesas, ao marchar para a guerra em 1914, o fizeram não como guerreiros e aventureiros, mas como cidadãos e civis. E este mesmo fato que, para governos que operam em sociedades democráticas, demonstra a necessidade do patriotismo e igualmente a sua força. Apenas o sentimento de que a causa do Estado era genuinamente a sua, poderia mobilizar com eficácia as massas: e em 1914 os ingleses, franceses e alemães sentiam isso. As massas permaneceram mobilizadas até que três anos de massacres sem paralelos e o exemplo da revolução na Rússia lhes ensinaram que haviam estado enganadas.

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Antes de 1914 a paz era o quadro normal e esperado das vidas europeias. Desde 1815 não houvera nenhuma guerra envolvendo as potências europeias. Desde 1871, nenhuma nação europeia ordenara a seus homens em armas que atirassem nos de qualquer outra nação similar. As grandes potências escolhiam suas vítimas no mundo fraco e não-europeu, embora às vezes calculassem mal a resistência de seus adversários: os boers deram aos britânicos muito mais trabalho que o esperado e os japoneses conquistaram seu lugar entre as grandes nações ao derrotar a Rússia em 1904-1905, surpreendentemente com poucos transtornos.

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A possibilidade de uma guerra generalizada na Europa fora, é claro, prevista, e preocupava não apenas os governos e as administrações, como também um público mais amplo. A partir do início da década de 1870, a ficção e a futurologia produziram, sobretudo na Grã-Bretanha e na França, sketches, geralmente não realistas, sobre uma futura guerra. Na década de 1880, Friedrich Engels já analisava as probabilidades de uma guerra mundial, enquanto o filósofo Nietzsche, louca porém profeticamente, saudou a militarização crescente da Europa e predisse uma guerra que "diria sim ao animal bárbaro, ou mesmo selvagem, que existe entre nós".

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E contudo sua deflagração não era realmente esperada. Nem durante os últimos dias da crise internacional - já irreversível - de julho de 1914, os estadistas, dando os passos fatais, acreditavam que realmente estivessem dando início a uma guerra mundial. Uma fórmula seria com certeza encontrada, como tantas vezes no passado. Os que se opunham à guerra também não podiam acreditar que a catástrofe há tanto tempo predita por eles chegara.

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Após a catástrofe maciça de 1914 e cada vez mais, os métodos da barbárie se tornaram parte integrante e esperada do mundo civilizado, tanto que encobriram os avanços contínuos e notáveis da tecnologia e da capacidade humana de produzir e inclusive as inegáveis melhorias na organização social humana em muitos lugares do mundo [...]. Mesmo se europeus morreram e fugiram aos milhões, os sobreviventes estavam se tornando mais numerosos, mais altos, mais sadios e viviam mais tempo. A maioria vivia melhor. Mas os motivos por que perdemos o hábito de pensar em nossa história como progresso são óbvios.