domingo, 3 de agosto de 2014

Viagem ao fim da noite

Trechos de Viagem Ao Fim Da Noite (1932), de Louis-Ferdinand Céline.


Esses alemães agachados na estrada, teimosos e atiradores, atiravam mal, mas pareciam ter balas para dar e vender, sem dúvida depósitos abarrotados. A guerra positivamente não havia terminado! Nosso coronel, a gente tem que dizer as coisas como elas são, demonstrava uma bravura assombrosa! Passeava em plena estrada, e depois para lá e para cá entre a trajetória das balas, com tanta tranquilidade como se estivesse esperando um amigo na plataforma de uma estação de trem, só que um pouco impaciente.

Eu primeiro o campo, é bom ir logo dizendo, nunca o suportei, sempre o achei triste, com seus atoleiros intermináveis, suas casas onde as pessoas nunca estão e seus caminhos que não levam a lugar algum. Mas quando ainda por cima a ele se soma a guerra, então é mesmo de amargar.

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Seria eu portanto o único covarde nesta terra? pensava. E com que pavor!... Perdido entre dois milhões de doidos heroicos e enfurecidos e armados até a raiz dos cabelos? Com capacetes, sem capacetes, sem cavalos, em cima de motocicletas, berrando, de automóvel, apitando, atiradores, conspiradores, volantes, ajoelhados, cavando, se esquivando, caracolando pelas picadas, estrondeando, escondidos debaixo da terra, como numa choupana, para tudo destruir, Alemanha, França e Continentes, tudo que respira, destruir, mais raivosos que os cães, adorando essa raiva.

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Logo depois, pensei no segundo-sargento Barousse que acabava de explodir, conforme o outro nos informara. Era uma boa notícia. Antes isso!, foi o que imaginei na mesma hora, assim: "É um canalha de menos no regimento!". Ele quis que eu fosse julgado pelo Conselho por causa de uma lata de conserva. "Cada um com sua guerra!", pensei com meus botões. Quanto a isso, é preciso reconhecer, de vez em quando ela servia para alguma coisa, a guerra! Eu bem que ainda conhecia mais três ou quatro no regimento, uns pulhas desgraçados, a quem eu ajudaria de bom grado a encontrar um obus, igual ao Barousse.

Quanto ao coronel, eu não lhe queria mal. No entanto, ele também tinha morrido. Primeiro, não o vi mais. É que fora deportado para cima do talude, deitado de banda por causa da explosão e projetado nos braços do cavaleiro a pé, o mensageiro, igualmente liquidado. Os dois se beijavam, naquele momento e para sempre, mas o cavaleiro não tinha mais cabeça, só uma abertura em cima do pescoço, com sangue dentro que cozinhava em fogo brando fazendo gluglu como geleia no tacho. O coronel estava com a barriga aberta e fazia uma careta horrorosa. Deve ter lhe doído à beça, aquele negócio, na hora em que aconteceu. Azar o dele! Se tivesse ido embora desde as primeiras balas, isso não lhe teria acontecido.

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O entusiasmo do capitão Ortolan, mesmo entre tantos outros estoura-vergas, ia se tornando cada dia mais notável. Ele cheirava cocaína, é o que também se contava. Pálido e com olheiras, sempre agitado em cima de seus membros frágeis, quando botava o pé no chão primeiro cambaleava e depois se reaprumava e calcorreava furiosamente para lá e para cá em busca de um feito de bravura. Teria nos mandado apanhar fogo na boca dos canhões do inimigo.

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Nada restava na aldeia, de vivo, a não ser gatos apavorados. As mobílias bem quebradas primeiro passavam a servir de lenha para a cantina, cadeiras, poltronas, bufês, do mais leve ao mais pesado. E tudo quanto podiam pôr nas costas, eles levavam consigo, meus companheiros. Pentes, pequenos abajures, xícaras, cacarecos inúteis, até grinaldas de noivas, tudo prestava. Como se ainda tivessem anos e anos de vida. Roubavam para se distrair, para dar a impressão de que ainda tinham muito tempo pela frente.

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Os astecas extirpavam correntemente, segundo se conta, em seus templos do sol oitenta mil crentes por semana, oferecendo-os assim ao Deus das nuvens, a fim de que lhes mandasse a chuva. São coisas em que a gente custa a crer antes de ir para a guerra. Mas quando aí estamos, tudo se explica, tantos os astecas quanto seu desprezo pelo corpo alheio, é o mesmo que devia ter por minhas humildes tripas o nosso general Céladon des Entrayes, supracitado, que se tornara por causa das promoções uma espécie de deus infalível, ele também uma espécie de pequeno sol de uma exigência atroz.

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Nos enterros de luxo a gente também fica muito triste, mas mesmo assim pensa na herança, nas próximas férias, na viúva que é bonitinha e que é muito fogosa, dizem, e em ainda vivermos, nós mesmos, por contraste, muito tempo.

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Quanto a mim, eu não tinha mais do que me queixar. Estava inclusive me alforriando graças à medalha militar que recebi, ao ferimento no braço e tudo. Em convalescença, tinham vindo me trazer a medalha, no próprio hospital. E no mesmo dia fui para o teatro, mostrá-la aos civis durante os intervalos. Grande efeito. Eram as primeiras medalhas que se viam em Paris.

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Para mim, que esticava minha convalescença tanto quanto possível e que não fazia a menor questão de retomar meu turno no cemitério ardente das batalhas, o ridículo de nosso massacre me aparecia, barulhento, a cada passo que eu dava na cidade. Uma esperteza gigantesca espalhava-se por toda parte.

Entretanto, minhas chances de escapar eram poucas, eu não tinha nenhuma das relações indispensáveis para me safar da guerra. Só conhecia gente pobre, isto é, gente cuja morte não interessa a ninguém.

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Daqui a alguns anos, aposto com você que esta guerra, tão notável quanto nos parece agora, estará totalmente esquecida... Mal-e-mal uma dúzia de eruditos ainda vão divergir aqui e acolá por causa dela e a propósito das datas das principais hecatombes que a ilustraram...

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Quem pôde escapar vivo de um matadouro internacional em estado de demência tem afinal de contas um aprendizado no que se refere ao tato e à discrição.


Mais:
http://docs.google.com/file/d/0BxwrrqPyqsnIN0RDV012NnRERnc
http://docs.google.com/file/d/0BxwrrqPyqsnIS0ZTa1gwZlAybUk