domingo, 3 de setembro de 2017

Guerra e cinema

Trechos de Guerra E Cinema (1984), de Paul Virilio.


No final do primeiro conflito mundial, quando [D.W.] Griffith chega ao front francês para rodar seu filme de propaganda, a fase arcaica da guerra já havia terminado há muito tempo, desde 1914, com a batalha de Marne, o último combate romântico. Griffith deparou com um conflito que se tornava estático e onde, para milhões de homens, a ação principal consistia em fixar-se nos territórios, camuflando-se por meses - até mesmo durante anos, como em Verdun - em meio à proliferação impressionante de cemitérios e de valas comuns. Cineasta dos antigos combates, Griffith defronta-se bruscamente com a incapacidade de dimensionar os acontecimentos, agora dependentes do desenvolvimento fulminante de novas técnicas e ciências desconhecidas que enfatizam os meios no lugar dos fins.

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Se a nitro-celulose que é utilizada na fabricação de filmes virgens também é empregada na fabricação de explosivos, a divisa da artilharia - o que é iluminado é revelado - não seria a mesma do cinegrafista? Já em primeiro de outubro de 1914, a artilharia antiaérea acopla holofotes aos canhões. Em 1918, além das onze esquadrilhas de caça, a defesa do território britânico conta 284 canhões e 377 holofotes varrendo o céu. Em 9 de janeiro de 1915, quando o Kaiser ordena os primeiros ataques aéreos sobre Londres e suas zonas industriais, o DCA britânico produz filmes notáveis dos bombardeios noturnos realizados pelos Zeppelins alemães.

Pode-se avaliar aqui o impressionante atraso da Cinemática civil, ainda fortemente tributária da iluminação solar quando, desde 1904, as Forças Armadas russas já utilizavam refletores na defesa noturna de Port Arthur. Esses refletores logo seriam acoplados às câmeras-metralhadoras.

Griffith iria mostrar-se "muito desapontado com a realidade do campo de batalha", pois a facticidade da guerra moderna tornou-se realmente incompatível com a facticidade cinematográfica tal como ainda a concebemos e tal como seu público prefere. Apesar disso, Griffith obtém algumas tomadas interessantes na guerra, tendo como operador de câmera o capitão Kleinschmidt. É possível assistir a esses filmes no Imperial War Museum de Londres.

Em seguida, Griffith deixa o continente para recriar na Inglaterra batalhas que realmente se desenrolavam a poucos quilômetros de distância. Hearts of the World (1918) é rodado na planície de Salisbury.

Retornando a Hollywood, Griffith termina o filme no rancho Landsky com o orçamento reduzido, e tendo [Erich von] Stroheim como conselheiro militar. Apesar de seu roteiro banal, o filme alcança grande sucesso nos Estados Unidos e causa um forte impacto sobre a opinião pública.

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Se, no fim do século XIX, o cinema e a aviação surgem simultaneamente, é somente em 1914 que o avião deixará de ser um simples meio de transporte ou de bater recordes para tornar-se um modo de ver ou talvez o último modo de ver. Ao contrário do que se pensa, a aviação de observação encontra-se na origem da força aérea. [...] Jean Renoir, que fez parte de uma dessas esquadrilhas, pediu a Jean Gabin para que em A Grande Ilusão usasse o uniforme que ele próprio vestiu durante a guerra.

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A partir de 1919, Omer Locklear inicia em Hollywood a carreira de "stuntfly" (doublê aéreo) como na França Roland Toutin, o aviador de A Regra do Jogo, de Renoir, ou ainda o antigo piloto de guerra Howard Hawks, que, financiado por Howard Hughes, realiza em 1930 A Patrulha da Alvorada (The Dawn Patrol), baseando-se em suas recordações.

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Os cineastas que sobreviveriam ao primeiro conflito mundial evoluíram continuamente do campo de batalha à produção de cinejornais e, mais tarde, para os "filmes de arte". Dziga Vertov, que estava entre os participantes do primeiro trem de propaganda de Lênin, em 1918, declara a respeito do "olho mecânico do cineasta":

"Eu sou o olho mecânico. Eu [...] corro diante de soldados que atiram, me deito de costas, alço voo ao lado de um aeroplano, caio ou levanto voo junto aos corpos que caem ou que voam..."

Esses cineastas, que parecem "desviar" as imagens assim como os surrealistas "desviavam" a linguagem, só seriam realmente "desviados" através da guerra. No campo de batalha, eles não se transformaram em simples combatentes, pois pensavam, assim como os aviadores, que pertenciam a um tipo de elite técnica. O primeiro conflito mundial lhes revelou a tecnologia militar em ação como um último privilégio de sua arte. É interessante constatar a formidável fusão/confusão criada por esta surpresa tecnológica no conjunto da produção de vanguarda do imediato pós-guerra. Ainda que os documentários de guerra e os documentos cronofotográficos aéreos permanecessem inéditos como segredo militar ou fossem abandonados e julgados desinteressantes, principalmente nos Estados Unidos, os cineastas vão oferecer esses efeitos tecnológicos ao grande público como um espetáculo inédito, um prolongamento da guerra e de suas destruições morfológicas.

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[...] Henny Porten, vedete alemã lançada em filmes de propaganda antifranceses, que se tornaria uma das primeiras pin-ups famosas, tendo suas fotografias afixadas nos alojamentos militares de 1914.

O olhar obsceno que o conquistador militar lança sobre o corpo distante da mulher é o mesmo dirigido ao corpo territorial desertificado pela guerra, precedendo assim ao voyeurismo do diretor, que enquadra o rosto da estrela como se filmasse uma paisagem com seu relevo, lagos e vales que ele deveria iluminar com uma câmera que, segundo [Josef von] Sternberg, o inventor de Marlene Dietrich, atingia à queima-roupa (muitos dos diretores importados pelos americanos depois de 1914 participaram da guerra, principalmente nos exércitos austro-húngaros ou alemães).

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[Griffith] defrontou-se com uma nova e "intolerável" surpresa técnica no campo de batalha militar-industrial: desta vez é a câmera civil que, apesar de sua invenção recente, parece pré-histórica diante dos progressos fulminantes do equipamento militar. A fase áurea de Griffith viria a encerrar-se pouco depois da guerra, por volta de 1922. Abel Gance, grande admirador de Griffith e quatorze anos mais jovem do que este, também trabalhou para o exército durante o primeiro conflito mundial e realizou seu J'Accuse em 1917 - enquanto os soldados se concentravam no front -, beneficiando-se da figuração de combatentes feridos, reformados ou em convalescença (incluindo Blaise Cendrars entre outros). Gance dá ao cinema uma definição próxima daquela da máquina de guerra e sua fatal autonomia: "Mágico enfeitiçador, capaz de proporcionar aos espectadores, em cada fração de segundo, esta sensação desconhecida de ubiquidade em uma quarta dimensão, suprimindo o espaço e o tempo."

[...] O cinema não seria mais do que um gênero bastardo, um parente pobre da sociedade militar-industrial.

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Enquanto, depois de 1914, multiplicam-se em Hollywood os mais extravagantes movimentos de câmera, na União Soviética, Eisenstein fala da série de "explosões" que movem um filme. "O conceito de colisão, de conflito, é a expressão, na arte, da dialética marxista."

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Imediatamente surge uma indústria de massa que processa diretamente o realismo do mundo através da aceleração cinemática, um cinema fundado no desarranjo psicotrópico e na perturbação cronológica. Este novo cinema destina-se especialmente às camadas de espectadores cada vez maiores que, depois de estarem ligadas à vida sedentária, voltaram-se à mobilização militar, ao exílio da imigração, à proletarização nas novas metrópoles industriais e à revolução. Com a guerra, todo o mundo circula, até mesmo os mortos.

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Se, em 1848, Stuart Mill escreve, em seus célebres Princípios de Economia Política, que produzir é mover, a partir de 1914 o cinema se tornará uma potente indústria partindo do princípio de que mover é produzir.

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Significativamente, o star-system triunfará depois de 1914 com o novo cinema industrial, no momento em que a ilusão de ótica se confundirá não somente com a ilusão da vida, mas também com a ilusão da sobrevivência.

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Na última versão de J'Accuse, de Abel Gance, soldados mortos se levantavam e, em frente ao ossuário de Douaumont, desfilavam em meio aos vivos como aterrorizantes hologramas.

Depois de 1914, enquanto a Europa é coberta por cenotáfios e mausoléus indestrutíveis erguidos - como o próprio Douaumont - em homenagem a seus milhares de mortos, os americanos - que sofreram poucas baixas - erguem seus grandes templos de cinema, semelhantes a santuários desativados onde, segundo Paul Morand, o espectador experimenta uma sensação de fim do mundo em um ambiente de missa negra e profanação. Nos últimos anos, alguns estudos foram consagrados a estes palácios de cinema que se espalharam por todo o mundo como moda e vieram a desaparecer rapidamente nos anos sessenta, em um fenômeno que indica claramente a necessidade histórica do cinema no período entre as duas guerras mundiais.

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"Death is just a big show in itself" (A morte em si é exatamente um grande espetáculo), afirmava Samuel Lionel Rothapfel, filho de um sapateiro e ex-fuzileiro alemão que inventou a primeira sala de cinema batizada como catedral, o Roxy.

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"Eu atribuo a origem de Hollywood à Primeira Guerra Mundial", afirmava Anita Loos. A cidade-cinema da era militar-industrial (Cinecittà, Hollywood) sucede à cidade-teatro do Estado-Cidade antigo. No início, os estúdios e as salas de projeção eram construídos nos subúrbios como as antigas necrópoles, pois o teatro ainda era empiricamente reconhecido como detentor da cidadania e fonte de relações vivas, ao passo que o cinema mudo era marginal e destinava-se a uma população ainda não integrada.

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Desde que, em 1914, o cinema tem seu papel cívico evidenciado, passa a existir um regime de liberdade vigiada e instala-se um sistema de regulagem da produção cinematográfica, orientado pelos métodos de desinformação empregados na propaganda de guerra.

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Quando, depois de 1916, os Estados Unidos finalmente decidem participar da guerra, todos que trabalhavam em Hollywood foram tomados por um verdadeiro delírio patriótico, relembra Jesse Lasky. Passa-se facilmente da ficção cinematográfica à ficção da guerra em que Cecil B. de Mille é o capitão improvisado e o contingente do estúdio forma a "Lasky Home Guard". Todas as quintas-feiras à noite, a grande família do cinema desfilava pelo Hollywood Boulevar armada com fuzis cenográficos e usando uniformes retirados da seção de figurinos do estúdio. A senhora De Mille e Mary Pickford transformavam-se em belas enfermeiras e percorriam as ruas da cidade se espantando em não encontrar feridos. Na Wall Street, Fairbanks e Chaplin discursavam para imensas multidões que nem mesmo os ouvia, pois na época só se podia dispor de um simples megafone para falar em público. A ausência do som não incomodava uma multidão habituada tanto ao cinema mudo quanto ao mutismo dos chefes de Estado. Subjugada pela mímica dos atores, a multidão se separava de seus dólares em benefício do Esforço de Guerra como jamais havia feito por qualquer político.

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1904 é o ano da morte de Etienne-Jules Marey, elo essencial entre a arma automática e a fotografia instantânea. Marey foi o inventor do fuzil cronofotográfico, que precedeu à câmera dos irmãos Lumière. [...]

A partir do momento em que nos lembramos de que foi durante a Grande Guerra, trabalhando no aperfeiçoamento da telemetria de artilharia, que o professor de óptica Henri Chrétien descobriu as bases da técnica que, 36 anos mais tarde, viria a chamar-se "Cinemascope", pode-se dimensionar melhor a coerência fatal que sempre se estabelece entre as funções do olho e da arma.

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Pode-se imaginar a importância estratégica da ótica durante o primeiro conflito mundial observando que a fabricação francesa de vidros óticos (lunetas de regulagem de tiro, periscópio, telêmetro, goniômetro, objetivas fotográficas e cinematográficas etc.) passará de quarenta para 140 toneladas por ano, representando apenas a metade da produção total dos aliados.

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É a aviação que ilumina a guerra e torna os locais visíveis em um meio que continuamente confunde as armas e os explosivos de alta potência; mas estes olhos serão, antes de mais nada, os olhos das objetivas das primeiras câmeras de bordo. A realidade da paisagem de guerra torna-se cinemática, pois a partir de então tudo muda, tudo se transforma, as referências desaparecem umas após as outras, tornando inúteis os mapas do Estado-Maior e os antigos relevos topográficos. Somente o obturador da objetiva pode conservar o filme dos acontecimentos, a forma momentânea da linha de frente, as sequências de sua progressiva desintegração.


Mais:
http://www.youtube.com/watch?v=PCWkgA4ZKhE
Broken Lullaby
The Shopworn Angel
http://www.filminquiry.com/german-expressionism
Universal Horror