domingo, 20 de agosto de 2017

Homens em guerra

Trechos de 'Batismo De Fogo', um dos contos de Homens Em Guerra (1917), de Andreas Latzko.


A companhia descansou por meia hora na divisa do bosque. Então o capitão Marschner deu o comando para começar. Estava pálido, apesar do calor mortal, e desviou os olhos quando deu instruções ao tenente Weixler de que, em dez minutos, todos os homens deveriam estar prontos para a marcha, sem falhas.

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Logo no início, quando estava a poucos quilômetros da fronteira russa, o tifo o pegou antes que ele tivesse disparado um tiro sequer. Agora, afinal, ele iria encarar o inimigo!

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E agora ele iria conduzir rumo ao fogo e aos estilhaços homens que ele próprio treinou para serem soldados e ter sob sua vigilância por meses, homens que ele conhecia como a seus próprios bolsos. [...] Apenas dois dias antes ele tinha-os visto cercados pelos filhos pequenos, dizendo adeus a esposas que soluçavam.

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Esses homens tristes e silenciosos, que haviam sido tão cruelmente arrancados de suas vidas, eram cada um deles muito mais para ele do que um mero rifle para ser mandado para a oficina se quebrado, ou para ser descartado de forma indiferente se esmagado além de reparação. Qualquer um que tivesse olhado a vida de todos os lados e refletido sobre ela não poderia se transformar tão facilmente em um simples soldado, como seu tenente, que ainda não fora humanizado, nem vira o mundo sob qualquer ponto de vista, exceto o da escola militar e dos quartéis.

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Para esses pobres diabos agora a guerra não tinha mais segredos. Cada um deles já havia perdido algum parente ou amigo. Cada um tinha conversado com homens feridos, visto inválidos mutilados e distorcidos, e sabia mais sobre ferimentos de bombas, granadas de gás e fogo líquido que os generais de artilharia ou os médicos de apoio tinham conhecido antes da guerra.

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O próprio capitão deles, com as três estrelas douradas em sua gola, garantiu-lhes que era seu dever e uma ação muito louvável bombardear pedreiros italianos, engenheiros e agricultores até reduzi-los a fragmentos.

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O sol batia abaixo de maneira homicida no declive íngreme e sem árvores. O som de bombas explodindo à distância, do tamborilar de metralhadoras e da artilharia de seu próprio lado rugindo agora se misturava com o som de tiros zunindo pelo ar e aproximando-se cada vez mais. E o topo da colina ainda não tinha sido alcançado!

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"Vocês estão indo para o lado mais engrossado desta sórdida confusão. Há três dias que os italianos vêm tentando romper as defesas naquele ponto."

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De repente, ele parou. No barulho, o estrondo, a explosão de artilharia saltou para um novo tom. Ele ficou claramente acima do resto do ruído, que quase tinha cessado para penetrar a consciência. Aproximou-se com um som estridente, com tal indescritível rapidez, com uma ameaça tão feroz, que o som parecia visível, como se você pudesse realmente ver um semicírculo que gritava a subir no ar, devorando seu caminho até a testa de alguém, e estalar com uma pancada curta e dura, como uma chicotada. A poucos metros de distância, um pequeno turbilhão de poeira adensava-se, e uma saraiva de pedras invisíveis caía sobre a grama.

Era o shrapnel!

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Uma carga de quatro shrapnels zuniu no meio de sua sentença. Os gritos pareciam ter crescido mais alto, mais penetrantes. O capitão sentiu como se uma foice monstruosa e reluzente estivesse deslizando em uma curva íngreme diretamente em seu crânio. Mas desta vez ele não se atreveu a mover uma pestana. Seus membros se contraíram e ficaram tensos, como na cadeira do dentista quando a pinça aperta o dente. Ao mesmo tempo, ele examinou de perto o rosto do tenente, curioso para ver como ele estava lidando com o fogo que tanto desejara. Mas ele parecia não estar percebendo minimamente os shrapnels. Ele estava esticando o pescoço para inspecionar a ala esquerda.

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O ferido estava deitado de costas. Seu cabelo vermelho flamejante emoldurava um rosto cinza esverdeado e fantasmagórico em sua rigidez. Poucos minutos antes o capitão Marschner tinha visto o homem ainda correndo - o mesmo rosto ainda cheio de vitalidade - de calor e excitação. Seus joelhos cederam. A visão dessa mudança, tão incompreensível em sua aparição súbita, agarrou seus sinais vitais como uma mão gelada. Era possível? Poderia todo o sangue da vida retroceder em um piscar de olhos, e um homem forte, robusto desmoronar em ruínas em alguns momentos? Que poderes do inferno dormiam em tais pedaços de ferro que entre duas respirações poderiam realizar o trabalho de muitos meses de doença?

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"Dói, Capitão, dói tanto!" - veio daquele peito quebrado. Para o capitão isso soava como uma censura. Depois de um breve som de dor, ele gritou novamente, espumando pela boca e com um grito agudo de raiva: "Dói!"

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Abaixo, o campo de batalha se estendia para longe, tristemente cinza. Nenhuma árvore, nenhum trecho de verde. Um resíduo pedregoso - cortado acima, esmagado, escavado para fora, nenhum sinal de vida. As trincheiras de comunicação, que começavam no fundo do vale e iam até a beira da colina, de onde os emaranhados de fios projetavam-se, parecendo dedos estendidos para agarrar algo e cravando profundamente a terra estrangulada. Marschner voltou a olhar ao redor involuntariamente. Atrás dele, a encosta verde descia abruptamente até o pequeno bosque onde o equipamento tinha sido deixado. Mais atrás, a estrada branca brilhava como um rio emoldurado em prados coloridos. Uma curva curta - e o verde desaparecia! Toda a vida sucumbia, como se derrubada pelo rugido dos canhões, pelos uivos e golpes que martelavam no vale como o pulsar de uma febre colossal. Uma cratera atrás da outra fumegava lá embaixo. De vez em quando, espessos e negros pilares de terra se erguiam e, por momentos, escondiam pequenas partes deste deserto carbonizado, onde os tocos de árvores, cortados como por canivetes, erguiam-se como um desafio zombador à imaginação impotente. Um desafio a reconhecer, neste campo de morte e entulho, a paisagem que havia sido, antes que a grande loucura a tivesse varrido e semeado de ruínas, deixando-a como uma pista de dança em que dois grupos tinham brigado por uma mulher dissoluta.

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O capitão viu-os apressados, viu as nuvens das explosões se multiplicarem acima de suas cabeças, e na encosta diante dele viu fardos azul-esverdeados espalhados aqui e ali, como mochilas deixadas pelo caminho, algumas imóveis, algumas espasmódicas como grandes aranhas - e ele correu.

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Ele viu os traços de poças de sangue a seus pés e pisou em pedaços de uniformes esfarrapados e encharcados de sangue, em conchas vazias, sacudindo latas de conserva, fragmentos de balas de canhão. As crateras dos bombardeios abriam-se de repente, com tábuas semicarbonizadas servindo precariamente como pontes.

Em todos os lugares viam-se os traços de furiosa devastação, restos enegrecidos de uma imensidão de fios, vigas, sacos, ferramentas quebradas, uma desordem que tirava o fôlego e deixava qualquer um desorientado - todos mergulhados no fedor sufocante da combustão, fumaça de pólvora, a respiração mordaz e pungente das bombas de ecrasite. Onde quer que se pisasse, a terra havia sido dilacerada por gigantescas explosões, remendada laboriosamente, mais uma vez rasgada até as próprias entranhas, e nivelada uma segunda vez, de modo que um sujeito cambaleava inconsciente, como num furacão.

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Entrando na trincheira, ele viu uma pilha de uniformes sujos e esfarrapados amontoados em camadas e com estranhos contornos rígidos. Levou algum tempo para que compreendesse o horror total daquilo que se erguia diante dele. Soldados caídos estavam deitados ali como troncos recolhidos, nas formas contorcidas da última agonia da morte. Abriram-se tendas sobre eles, mas haviam escorregado e revelado as caricaturas sombrias, cinzentas e pedregosas, as mandíbulas caídas, os olhos fixos. Os braços daqueles que estavam no topo ficavam pendurados na direção do chão, como partes de uma treliça e agarrados aos rostos dos que se encontravam abaixo, e já estavam marcados pelas manchas lívidas de decomposição.

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"Você sabe quantos cartuchos de munição ainda me restam? Metralhadoras? Telefone? - Esmagado desde ontem à noite! Enviar um grupo para consertá-lo? Impossível! Precisamos de cada homem na trincheira. Nós éramos cento e sessenta e quatro no início. Agora eu tenho trinta e um, onze deles tão feridos que não podem segurar um rifle. Trinta e um companheiros para manter a trincheira. Na noite passada estavam lá ainda quarenta e cinco de nós quando eles atacaram. Nós os mandamos para o inferno, é claro, mas perdemos quatorze dos nossos homens. Nós ainda não tivemos a chance de enterrá-los. Você não os viu caídos lá fora?"

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Ele apoiou os cotovelos na primitiva mesa, segurou a cabeça entre as mãos e ficou em silêncio. Seus olhos vagaram pela cova escura e mofada, cheia do fedor de uma pequena lâmpada de querosene. Ele viu palha moída no canto, o telefone desconectado na entrada, uma caixa vazia de comida enlatada sobre a qual um mapa amassado estava largado. Ele viu um amontoado de rifles, fardos de uniformes, cada um marcado. E ele sentiu como, pouco a pouco, um horror mudo e gelado surgiu dentro dele e paralisou sua respiração, como se a terra acima, sustentada apenas por um fino andaime de tábuas rachadas e ameaçando cair a qualquer momento, já tivesse sucumbido a seu peso intolerável. E aquele fantasma, aquele sorridente retrato da morte, que apenas uma semana antes talvez ainda fosse jovem, afetou-o como um pesadelo. E o pensamento de que agora tinha chegado a sua vez de ficar naquela abóbada sepulcral por cinco ou seis dias ou uma semana, e experimentar os mesmos horrores dos quais o homem estava falando aos risos, intensificou seu desânimo em uma indignação apaixonada e palpitante que ele mal podia continuar a controlar. [...] Tudo o que ele viu foi aquele buraco na terra, aqueles cadáveres apodrecendo lá fora, e nas proximidades, mas um passo afastada de toda aquela loucura, sua própria Viena, como ele a deixara apenas dois dias antes, com seus trilhos de bondes, suas vitrines, suas pessoas sorridentes e seus teatros iluminados.

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Havia uma indiferença sobre esses cadáveres, uma solidão, um isolamento acerca de seus pés descalços. Uma emaranhada rede de lembranças surgiu, uma multidão de rostos fugazes cintilava na alma do capitão - gondoleiros de Veneza, motoristas volúveis, a esposa de um desdentado dono de pousada em Posillipo. Duas viagens em férias na Itália trouxeram um exército de figuras pesarosas através de sua mente.

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Às vezes desapareciam inteiramente e então saltavam alto, e se aproximavam, seus rifles contorcendo-se no ar como os tentáculos de um pólipo. Gradualmente, seus gritos tornavam-se audíveis e cada vez mais altos, como o latido de cães. Quando eles diziam "Avanti!" era com um grito penetrante, e quando o chamado "Coraggio!" passava por suas linhas, transformavam-se em um estrondoso rolo compressor.

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Ele ouviu o tiroteio infernal que os italianos estavam dirigindo novamente à trincheira, e avançou lentamente como um homem a passear.

"Estão jogando minas pesadas em nós, capitão" - anunciou o velho cabo, olhando desesperado para Marschner. Mas Marschner permaneceu impassível. Tudo aquilo já não lhe importava.

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O capitão tinha que ver! Ele direcionou a cabeça para mais longe, embaixo do montículo - e soltou um grito rouco, um grito de horror infinito. O miserável homem estava arrastando atrás dele suas próprias entranhas!

"Weixler!" - exclamou ele com um arrepio de compaixão.


Mais:
http://carambaia.com.br/homens-em-guerra
http://modoabstrato.com/2015/11/30/resenha-de-livro-homens-em-guerra