domingo, 4 de dezembro de 2016

Tempestades de aço

Trechos de Tempestades De Aço (1920), de Ernst Jünger.


O trem parou em Bazancourt, uma cidadezinha da Champagne. Desembarcamos. Com reverência incrédula, ouvimos o compasso lento do rolo compressor do front, melodia que haveria de se tornar costumeira para nós naqueles longos anos. Bem ao longe, desintegrava-se a bola branca de uma metralha no céu cinzento de dezembro. O hálito da batalha soprava até onde estávamos e nos deixava estranhamente arrepiados. Pressentiríamos, por acaso, que quase todos seríamos engolidos nos dias em que os resmungos sombrios ao longe se incendiassem, transformando-se num trovejar incessante - alguns mais cedo, outros mais tarde?

Havíamos deixado salas de aula, bancos de escola e mesas de trabalho e, em curtas semanas de treinamento, estávamos fundidos em um grande e entusiasmado corpo. Criados em uma época de segurança, todos sentíamos a nostalgia do incomum, do grande perigo. E então a guerra tomou conta de nossas vidas como um desvario. Em uma chuva de flores, saímos de casa, inebriados com a atmosfera de rosas e sangue. A guerra, por certo, nos proporcionaria o imenso, o forte, o solene. Ela nos parecia uma ação máscula, uma divertida peleja de atiradores em prados floridos e orvalhados de sangue. "Não há no mundo mais bela morte..." Ah, só não queríamos ficar em casa, queríamos poder participar!

"Formar colunas!" A fantasia aquecida se acalmava durante a marcha pelo solo argiloso e pesado da Champagne. Mochila, cartuchos e fuzil pesavam como chumbo. "Aproximar! Parar ali atrás!"

Enfim chegamos ao povoado de Orainville, base do 73º. Regimento de Fuzileiros, um dos lugarejos mais miseráveis daquela região, formado por cinquenta casinhas de tijolo ou pedra de calcário em volta de uma herdade feudal cercada por um parque.

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Parecia que ali a vida se passava um tanto apática e vagarosa. A impressão ficava mais forte com o despontar da decadência daquele lugarejo.

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Nosso primeiro dia de guerra não passaria sem deixar em nós uma impressão decisiva. Estávamos sentados na escola que nos havia sido designada como alojamento e tomávamos o café da manhã. De repente, uma série de tremores surdos ecoou nas proximidades, enquanto soldados tomavam a frente e saíam das casas, indo em direção à entrada da aldeia.

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Logo em seguida, apareceram grupos sombrios na estrada deserta do povoado, arrastando sacos pretos sobre lonas de barraca ou, dois a dois, com as mãos e os braços cruzados. Com uma sensação esdruxulamente angustiante de irrealidade, eu fixava os olhos em um vulto coberto de torrentes de sangue, com a perna dobrada de maneira estranha e pendurada, frouxa, no corpo, que não parava de lançar um rouco "Socorro!", como se a morte repentina ainda estivesse agarrada a seu pescoço. Ele foi carregado para dentro de uma casa em cuja entrada tremulava a bandeira da Cruz Vermelha.

O que era aquilo? A guerra havia mostrado suas garras e jogado fora a máscara acolhedora. Era tão enigmático, tão impessoal. Mal se pensava no inimigo, esse ser misterioso, traiçoeiro, escondido em algum lugar, na retaguarda. O acontecimento totalmente fora do comum para nossa experiência causava uma impressão tão forte que foi preciso muito esforço para perceber o que estava acontecendo. Era como uma aparição fantasmagórica à luz do meio-dia.

Uma granada explodira no alto do portal do castelo e catapultara uma nuvem de pedras e estilhaços sobre a entrada, justo no momento em que os internos, assustados com os primeiros tiros, saíam pelo portão. Ela fez treze vítimas, entre elas Gebhard, o mestre da banda de música da companhia, uma figura que eu conhecia muito bem dos concertos de rua em Hannover. Um cavalo amarrado farejou o perigo antes dos homens, conseguiu arrebentar a corda a que estava preso poucos segundos antes e galopou, sem ser ferido, pelo pátio do castelo adentro.

Ainda que o bombardeio pudesse se repetir a qualquer instante, um sentimento opressor de curiosidade me carregou até o palco da desgraça. Ao lado do local atingido pela granada, balançava uma plaqueta com as palavras "Bar da Granada", escritas por algum gaiato. O castelo já era conhecido, pois, como um lugar perigoso. O chão da estrada estava vermelho de poças de sangue, havia capacetes e cinturões esburacados jogados por ali. O pesado portão de ferro do portal estava destroçado e peneirado de estilhaços, o marco da entrada ficara salpicado de sangue. Uma força quase magnética prendia meus olhos a esse instante; ao mesmo tempo, algo se modificava profundamente dentro de mim.

Conversando com meus camaradas, percebi que o incidente havia amortecido o entusiasmo de alguns com a guerra. Que ele também agira sobre mim de maneira contundente, comprovava-se por numerosas alucinações que transformavam o rolar de qualquer carro que passava no farfalhar fatal da granada infeliz.

Isso, aliás, acabaria por nos acompanhar durante toda a guerra, esse estremecimento a cada ruído repentino e inesperado. Fosse um trem que passasse sacolejando, um livro que caísse no chão, ou um grito ecoando na noite - o coração sempre estacava por um instante sob a sensação do perigo, grande e desconhecido. Era um sinal de que, durante quatro anos, estávamos todos na sombra da morte. Tão profundamente agia a vivência no solo escuro da consciência que, a cada perturbação da normalidade, a morte saltava à soleira como um porteiro admoestador, semelhante aos relógios em que aparece a cada hora, munido de foice e ampulheta.

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Fomos recebidos, distribuídos em grupos e em pouco tempo já estávamos no meio do círculo de companheiros barbados, cobertos por uma crosta de lodo, que nos cumprimentavam com uma simpatia um tanto irônica. Perguntavam-nos como estavam as coisas em Hannover e se, por acaso, a guerra não estaria por acabar. Logo em seguida, a conversa, que ouvíamos com avidez, mudou e passou a tratar, com palavras concisas e sempre no mesmo tom, de valas abertas na terra, cozinhas de campanha, ataques de granada e outras circunstâncias da guerra de trincheiras.

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Fazia meses que suas águas banhavam os mortos de um regimento colonial francês, com rostos que pareciam ser feitos de pergaminho negro. Um lugarejo sinistro para se ficar, quando, à noite, o luar lançava sombras cambiantes por entre as nuvens rasgadas, e sons estranhos pareciam se misturar ao murmúrio da água e ao chapinhar dos juncos.

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Vivíamos na fasanerie ou na florestinha de Hiller, em choupanas de taipa cobertas de galhos de pinheiro, cujo chão repleto de esterco proporcionava, pelo menos, um calor agradável de fermentação. Às vezes, acordávamos em uma poça de água de uma polegada de profundidade. Ainda que até então eu só conhecesse reumatismo pelo nome, depois de poucos dias daquela umidade sem fim passei a sentir dores em todas as juntas. Em sonhos, eu tinha a sensação de que bolas de ferro entravam e saíam de meus membros.

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Ao abrir o caldeirão, se espalhava um cheiro delicioso de ervilhas com toucinho ou de outras coisas maravilhosas. Mas até nisso havia algo desagradável: os legumes desidratados, apelidados pelos apreciadores da boa mesa, decepcionados, de "arame farpado" ou de "pasto estragado".

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Depois de curta passagem pelo regimento, nós já não tínhamos mais as ilusões com as quais saíramos de casa. Em vez dos perigos ansiados, encontramos sujeira, trabalho e noites insones, cuja superação exigia de nós um heroísmo ao qual éramos pouco afeitos. Pior ainda era o tédio, que, para o soldado, é mais enervante do que a proximidade da morte.

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As pequenas operações táticas foram suspensas na mesma medida em que a ampliação das valas das trincheiras se consolidava e o fogo dos defensores inimigos ganhava força aniquiladora. Algumas semanas antes de nossa chegada, uma companhia isolada ainda ousara, depois de uma preparação precária da artilharia, um desses ataques parciais por uma faixa de poucas centenas de metros. Os franceses haviam dizimado os agressores, dos quais apenas alguns chegaram perto de onde eles estavam, como em uma praça de tiro; os poucos sobreviventes esperaram a noite, escondidos em buracos, para rastejar de volta ao ponto de partida sob o abrigo da escuridão.

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Também os esforços no trabalho de manutenção das obras na trincheira se tornavam cada vez mais diversificados. O pior que poderia acontecer era, no início do degelo, as paredes de calcário das valas abertas a dinamite desmoronarem em meio ao solo congelado, em avalanches de terra que mais pareciam mingau.

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A paisagem, na qual os malmequeres-dos-brejos amarelos haviam aberto a floração durante a noite, era decorada pitorescamente pelos muitos soldados nus que, com as roupas sobre o colo, se dedicavam fervorosamente à caça de piolhos às margens de lagos e rios ladeados por álamos.

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No dia 12 de abril de 1915, fomos embarcados em Hal e viajamos, para enganar possíveis espiões, à região do campo de batalha de Mars-la-Tour, fazendo um desvio longo pela ala norte do front. A companhia usou como alojamento um celeiro na aldeia de Tronville, um lugarejo sujo da Lotaríngia, comum e entediante, feito de caixotes de pedra de teto baixo e sem janelas. Devido aos aviões, quase sempre tínhamos de ficar apinhados no centro do lugarejo.

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Éramos atrevidos o suficiente para continuar com nossas brincadeiras por algum tempo durante a noite, antes de tudo ficar em silêncio. Uma esparrela muito praticada, entre outras, era a de despejar a água ou o café de um cantil na boca daqueles que roncavam.

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Todos os indícios apontavam que, no dia seguinte, entraríamos em combate. Recebemos pacotes de ataduras, uma segunda lata de carne e flâmulas de sinalização para a artilharia.

À noite, antes de rastejar sobre as fileiras até a minha tenda, ainda fiquei sentado por muito tempo sobre um coto de árvore coberto de anêmonas azuis, sentindo aquela atmosfera cheia de presságios, acerca da qual os guerreiros de todos os tempos sabem contar muita coisa; e depois tive um sonho confuso cujo protagonista era uma caveira.

Priepke, a quem contei sobre o sonho pela manhã, disse esperar que se tratasse de um crânio francês.

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Enfim, veio a ordem tão almejada. Avançamos em longa fileira para o lugar onde o fogo difuso dos fuzis pipocava. A coisa ficou séria. Ao lado da trilha da floresta, reboavam golpes surdos na mata espessa de pinheiros, galhos e terra caíam fazendo estardalhaço. Um medroso se atirou ao chão sob as gargalhadas forçadas de seus companheiros. Em seguida, o chamado de alerta da morte resvalou entre as fileiras: "Enfermeiros à frente!".

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No meio do caminho, havia um cavalo morto com ferimentos gigantescos; ao lado dele, entranhas fumegantes. Entre as imagens imensas e sanguinárias, imperava uma serenidade selvagem, insuspeita.

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"Enfermeiros!" O primeiro morto tombou entre nós. Uma bala de metralha havia rasgado a carótida do fuzileiro Stölter. Três pacotes de ataduras ficaram empapados num instante. Ele se esvaiu em sangue em poucos segundos. Ao nosso lado, dois canhões caíram de seus armões, atraindo fogo ainda mais intenso. Um tenente da artilharia, que procurava por feridos no terreno adiante, foi catapultado ao chão por uma coluna de fumaça que se levantou diante dele. Ergueu-se devagar e voltou demonstrando tranquilidade para onde estávamos.

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Um cheiro adocicado e uma trouxa pendurada na cerca de arame despertaram minha atenção. Saltei para fora da vala na neblina da manhã e fiquei em pé diante de um cadáver francês todo encolhido. Carne decomposta e pisciforme brilhava verde-esbranquiçada nos buracos do uniforme em frangalhos. Ao me virar, dei logo meia-volta, horrorizado: a meu lado, havia uma figura acocorada junto a uma árvore. Ela vestia os trajes de couro brilhantes dos franceses e ainda tinha às costas a mochila abarrotada, coroada por uma marmita redonda. Órbitas vazias nas quais havia olhos e poucos chumaços de cabelo sobre o crânio marrom-enegrecido revelavam que eu não teria de me haver com um vivo. Outro estava sentado, o tronco dobrado para a frente, sobre as pernas, como se tivesse acabado de desmaiar. Em volta, havia ainda dúzias de cadáveres, decompostos, calcinados, mumificados, paralisados em uma dança macabra. Os franceses tiveram de suportar meses ao lado dos camaradas tombados em batalha sem enterrá-los.

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Com certo calafrio, recordo que, durante essa pausa do lanche, tentei desmontar um aparelho estranho e diminuto, que jazia à minha frente no fundo da vala, e no qual acreditei reconhecer sem motivos explicáveis uma "lanterna de ataque". Só bem mais tarde vim a descobrir que aquele objeto que eu havia manuseado era uma granada de mão ativada.

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Com a sensação de não estar sendo visto, eu também não podia acreditar que apontavam armas para mim, e que poderia ser atingido. Assim, contemplei com grande indiferença, ao voltar para meu grupamento, o terreno à minha frente. Era a coragem da inexperiência.

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Logo descobrimos que a floresta havia pegado fogo por causa dos tiros. Grandes chamas lambiam as árvores, estalando.

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De repente, vi um relâmpago nas raízes longas de uma árvore e um golpe na coxa esquerda me jogou ao chão. Acreditei ter sido atingido por um torrão de terra, mas o calor do sangue que brotava em abundância logo me fez ver que eu estava ferido. Mais tarde, vi que um estilhaço afiado como um punhal havia aberto uma ferida em minha carne, depois de o impacto ter sido amenizado pela minha carteira. A incisão estreita causada pelo estilhaço que, antes de ferir o músculo, havia cortado não menos do que nove camadas de couro cru parecia feita com a precisão de uma navalha de barbear.

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Outro, com um naco triangular de cérebro pendurado no crânio, não parava de berrar de forma estridente e tocante. Ali imperava a grande dor, e pela primeira vez eu vislumbrava as profundezas de seu reino através de uma fresta demoníaca. E as explosões não paravam.

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Ao ver a montanha do Neckar coroada pelas cerejeiras em flor, fui tomado por um forte sentimento patriótico. Sim, como era belo aquele país, por certo digno de que se sangrasse e morresse por ele. Eu jamais havia sentido sua magia daquele jeito. Pensamentos bons e sérios me vieram à mente e eu pressenti pela primeira vez que a guerra significava mais do que uma grande aventura.

A batalha de Les Eparges fora minha primeira. E bem diferente do que eu havia imaginado. Participara de uma grande ação de guerra, sem ter inimigo algum cara a cara. Só bem mais tarde eu vivenciaria o choque, o ápice da batalha na aparição das hordas que atacavam em ondas no campo aberto, e que interrompe por instantes decisivos e fatais o vazio caótico do campo de batalha.


Mais:
http://docs.google.com/file/d/0BxwrrqPyqsnIc3BTQlJLMGNMZjA
http://editora.cosacnaify.com.br/Loja/PaginaLivro/926/paginalivro.aspx?id=926